O Mirabolante Encontro de Tio Firmino Com o Anjo da Morte

I

Desde que me entendo por gente que eu ouço tio Firmino afirmar que já fora muito bom em algumas coisas. Citava como seus maiores exemplos certos prazeres e afazeres de que mais gostava e se orgulhava nessa vida: um jeito de balançar o corpanzil enquanto desfilava de braços dados com tia Augusta pelas ruas da nossa comunidade; o toque sutil de umas mãos masculinas na cintura elegante de uma dama bem conduzida numa pista de dança; o sapateado no pé e o gingado da capoeira em terreiro de umbanda.

No entanto - disse-me ele certa vez num particular particularíssimo que então tivemos - como sabes, fui de fato muito bom em tudo isso de que lhe falei, mas mestre mesmo eu me tornei foi nas artes do amor e da malandragem. Foi nesses ramos do conhecimento que acabei me fazendo especialista e onde logrei conquistar reconhecimento e prestígio.

Vede o leitor que além de se considerar um mestre naquelas referidas artes, tio Firmino trazia ainda em si uns rasgos de homem culto e letrado: gostava de citar certos autores que lera na juventude e criar suas próprias frases de efeito. Não foram poucas às vezes em que dissera:

- Ela, a malandragem, é a mãe de todas as artes - amantíssimo sobrinho - assim como a preguiça é madrasta de uma série de evoluções que aparentemente surgem do nada e alteram muitos aspectos na vida. E – creia-me ou não! - não raro terão sido essas zelosas damas quem hão de ter dado impulso a muitos dos grandes engenhos empreendidos pela humanidade...

Tio Firmino sempre fizera questão de destacar dos demais o seu entendimento sobre esse assunto. Para ele a malandragem era um dom e o malandro o sujeito que sabia se aproveitar da boa fé e da tortuosidade dos desejos alheios para pregar peças ou obter vantagens de seus semelhantes.

- Que se conceba, entretanto – concluiu tio Firmino – a existência de um claro limite ao malandro. Seu objeto primeiro deve ser apenas o de fazer com que o sujeito ludibriado se sinta o mais tolo possível no momento exato em que se puser a refletir sobre como pode se deixar enganar com tanta facilidade.

Mas meu tio não fora apenas este malandro de que vos falo. Havia sido também um grande namorador, um amante visceral e romântico. Ilustrarei esse aspecto apontando duas situações que nos esclarecerão por que as maneiras de tio Firmino tanto agradavam às mulheres.

Com elas meu tio era de um capricho e uma delicadeza sem iguais. Lembro-me que em várias ocasiões pus-me a observar a maneira como tio Firmino tratava minha tia Augusta ou a alguma de suas antigas namoradas.

A impressão que eu tinha naqueles momentos era a de que meu tio conseguia por arte de encantamento e mágica fazer com que sua amada se sentisse alçada além do solo demasiado humano da realidade. Uma de suas mãos erguia a sua companheira – que no presente caso estaria representada pelos cento e treze quilos de tia Augusta – até um reino de sonhos, enquanto que com a outra retirava caprichosamente do bolso da calça um lenço de cambraia e punha-se a espanar qualquer grão de poeira que acaso tivesse se acumulado sobre a cadeira à qual convidara sua dama a descansar.

Outro ponto curioso era que - embora não tivesse formação em nenhum curso de graduação superior – tornara-se costume de meu tio apresentar-se da seguinte forma ao lidar com o belo sexo:

- Dr. José Firmino Amoroso da Conceição Dantas à inteira disposição de Vossa Senhoria, dizia o homem cheio de dengo. Tio Firmino considerava de uma beleza insensata tanto o seu primeiro nome quanto o sobrenome “Amoroso”. Este último era para ele a prova cabal de sua predestinação às artes do amor. E Amoroso – prosseguia ele – era como continuaria a ser pelos tempos afora, mesmo após ter-se unido em núpcias com minha tia.

Devo confessar que nessa época eu ainda acreditava que poderia um dia me fazer igual ao meu tio em relação ao jeito peculiar que este possuía no tratamento das senhoras e senhoritas. Mais tarde, porém, conclui que aquilo não se adquiria nem se aprendia: era uma espécie de dom ou predestinação.

Já em relação à arte da malandragem, posso afirmar que só uma vez percebi em tio Firmino certo temor diante de uma ocorrência a partir da qual viria ele a realizar grandes alterações em sua vida. É a respeito desse fato que versaremos. A realidade é que toda essa segunda parte desse enredo só veio a se esclarecer dias atrás, após uma conversa que tivemos. Vou lhes contar o que aconteceu na esperança de que o relato sirva como lição ou expectativa de que cada um de nós pode proceder a muitas mudanças em si mesmo.

II

A primeira coisa que meu tio me disse foi que sua “conversão” se dera em virtude de sua morte. Assustei-me diante de tão fúnebre palavreado e fiquei a observá-lo. Buscava encontrar no seu rosto um indício qualquer de galhofa ou o brilho da loucura. Cheguei ainda a imaginar uma terceira possibilidade: seria possível que eu me encontrasse diante do espectro de tio Firmino?!

Conclui que não: tão certo quanto dois e dois são quatro fora que meu tio se achava presente em carne e osso e vivinho da silva diante de mim! Talvez se apresentasse com um tanto mais de carnes que o normal, mas não me restavam dúvidas de que era ele!

- Decerto - prosseguiu tio Firmino – decerto que não cheguei mesmo a bater as botas. Mas vede que às vezes é complicado separar a verdade da mentira: estive de fato e frente a frente com a impiedosa, aquela-que-nos-leva-de-vez. E hoje - simpático sobrinho – se hoje aqui estamos um diante, devo isso a um capricho do destino ou ao acaso da minha boa estrela.

- Mas tio – perguntei diante daquele palavrório recheado de voltas, idas e vindas – conte de uma vez o que aconteceu!

- Digo-lhe que aquela foi a ocasião em que mais senti medo em toda a minha existência. E afirmo ainda sem nenhum pudor nem receio d’alma que tremi da cabeça aos pés e cheguei a molhar a calça e as roupas de baixo.

- Que deprimente, meu tio! Mas continue, sou todo ouvido...

- Está bem. Alguns anos atrás - na época em que eu ainda ostentava com orgulho os títulos de grande namorador e maior dos malandros - quis o destino que numa de minhas aventuras amorosas viesse a topar nada menos do que com a Morte, a personagem-principal-logo-depois-da-luz-no-fim-do-túnel. Isto mesmo! Só que ela não se mostrou da maneira como usualmente a vemos representada. Refiro-me àquela figura que muito nos assustava quando crianças: uma caveira envolta em capa negra e esvoaçante, amparando numa das mãos uma ameaçadora foice. Ao contrário: ela me surgiu da maneira mais formosa, travestida com rosto e o corpo da mais bela mulher a quem já tive o prazer de conhecer. Posso lhe assegurar - adorável sobrinho - aquela morena parecia um anjo esculpido pelas mãos de Deus no mármore da eternidade.

- E ai?

- E ai?! Bem – continuou ele – apesar de sua bela roupagem corporal, a tal dona se apresentara a mim sob aquele terrível codinome. Dizem, no entanto, que a enxovalhada às vezes se disfarça mesmo na pele de uma beldade com o objetivo de enganar àqueles a quem a beleza física representa o ponto fraco. Então imaginei ter sido este o caso que havia se dado comigo.

- E o que aconteceu em seguida?

- Logo nos primeiros momentos a maldita abriu o verbo e se revelou. Fiquei sem voz e sem pernas. Meus joelhos dobraram-se como varas verdes e as mãos suavam tanto que era possível colher rapidamente dois ou três copos. Então, quando ela afirmou que viera com a intenção de me levar de vez na viagem-sem-volta, foi ai que ensopei as calças. A realidade é que naquele momento eu só sabia clamar por Jesus e Nossa Senhora e São José. E requeri ainda, humildemente, que a “abençoada” me permitisse continuar vivendo. E, afinal - meu suspiroso sobrinho – chorei igual criança. Você precisava ver! Nunca em minha vida havia derramado tão melindrosas lágrimas. Pense bem: eu era jovem e tinha muito que viver na minha caminhada...!

- E então? E então?

- Não sei mesmo qual terá sido o motivo que afinal tenha abrandado o coração da esmorecida. Mas o fato foi que aquela que-põe-ponto-final-nas-nossas-dívidas pareceu mesmo sentir um bocado de dó dessa alma perdida que vos fala. Virou-se na minha direção e me afiançou o prazo de alguns dias para que eu me emendasse daquela vida de amores vadios – bem como do mau hábito da enganação dos meus semelhantes - ou então seria sumariamente transferido para o terrível-lugar-donde-ninguém-jamais-voltou.

- Jesus, Virgem Santíssima: Piedade!

- Piedoso sobrinho: devo confessar que nesse ponto fiquei sem entender a coisa. Se a tal era de fato a morte e viera para me levar de vez naquele passeio-sem-volta, que diacho de nova oportunidade era essa que a infeliz vinha me conceder? E olhe que naquele momento senti até uma desconfiança! Mas a realidade é que a felicidade oriunda daquela nova chance superou em muito qualquer suspeita que eu pudesse ter. Assim – como nessa época eu já andava enrabichado pela Augusta – nem pestanejei! Aproveitei a ocasião, anunciei o casório e me juntei de vez a ela. E – devo confessar – o dia do meu casamento foi o segundo dia mais feliz de toda a minha vida. Depois – é claro! - daquele em que aquela temível criatura me presenteara com uma oportunidade novinha-novinha de construir tudo de novo de um jeito diferente.

III

Dias depois Firmino me revelaria o teor de sua desconfiança. Tivera naquela ocasião o pressentimento de que a jovem que tanto o encantara e que se apresentara a ele sob o apelido da Morte, talvez não fosse em verdade nem uma coisa nem outra, mas um ser de luz e encantamento destinado a proteger e a transformar a vida de cada um de nós: um dos Anjos de Deus.

- Porém – remendou ele - malandro que é malandro sabe a hora de por as barbas de molho. Apesar do medo que senti, “aquilo” não me pareceu mesmo ser a infeliz-que-nos-leva-feito-bobos! Ao contrário: sua aparência era a de uma moça viçosa e cheia de vida. E saiba você que para mim a mulher é o ser que mais se aproxima da perfeição dos Anjos. Então – encarando tudo como uma equação matemática – conclui que aquele ser divino se transmutara de fato diante de mim utilizando-se do invólucro carnal daquela bela senhorita. Agora: se anjo tem ou não tem sexo e se essa classe celestial se divide entre anjos femininos ou masculinos, isso já é outro problema! Mas que aquela anjinha era um pedaço de mau caminho, lá isso era...!

Com essas palavras tio Firmino encerrara de vez a sua narrativa!