Por tua Glória, Senhor! (Templários)

Esse conto é na verdade o prólogo do meu romance Templários: a Batalha de Hattin. foi publicado originalmente na revista Dragão Brasil número 120 e teve gande receptividade. Agora disponibilizo aqui com permissão do editor.

Por tua glória, Senhor!

O deserto estava quente como era de se esperar. Era mais um daqueles dias em que o ar não parece se mover. Apenas um vento rasteiro passava pela areia quente, levantando poeira e ainda mais calor, se é que era possível esquentar mais. As testas molhadas refletiam a luz, gerando ainda mais sensação de calor quando se olhava nos rostos daquela série de guerreiros que se acumulava sobre as areias. Eram cento de quarenta cavaleiros e ainda mais trezentos homens de infantaria. Daqueles montados, noventa tinham a honra de pertencer à Ordem dos Pobres Cavaleiros do Templo de Salomão. Apenas eles, os templários, vestiam os mantos brancos com a cruz vermelha estampada sobre o ombro esquerdo.

Jacques de Mailly, marechal do Templo, já cavalgava pelas areias do Oriente há tempo suficiente para saber que nada adiantava reclamar do calor. Deus criara aquelas terras assim, talvez para aumentar a glória de seus fiéis lutando para salvar a santa Jerusalém das mãos dos pagãos. Era maio de 1187. O sultão Saladino unira os povos árabes para a batalha e agora os cristãos uniam-se desesperadamente para se defender.

Os templários faziam parte das forças que se uniam contra os muçulmanos há décadas e Jacques se sentia orgulhoso por ter uma posição tão alta entre os cavaleiros de Cristo. Debaixo da cota de malha e do manto, ele suava, mas mantinha o sorriso no meio da barba loira. A felicidade só desaparecia quando encarava seu líder, Gerard de Ridefort, eleito grão-mestre do Templo há poucos anos, mas com ações tão ignóbeis que atrasara tudo que os cavaleiros haviam feito em décadas. E atrasaria ainda mais.

Gerard tinha toda a aparência de um guerreiro de porte, dos mais nobres e poderosos. Barbado e de cabelos curtos como todo templário deveria ser, tinha uma compostura de rei na sela do garanhão. Os olhos aguçados observavam o deserto à espera dos mensageiros. Ele estava feliz por ter encontrado quarenta cavaleiros seculares, nobres não filiados às ordens religiosas, para ajudar nos combates. Haviam acabado de passar por Nazaré.

Jacques lamentava por aquela notícia ter chegado aos ouvidos do grão-mestre. Aquela figura com porte de rei tinha alma tão pobre quanto as fossas dos castelos. O marechal sabia que surgiriam problemas e baixou a cabeça lamentoso quando um homem a cavalo chegou para confirmar a notícia. Havia um grupo de egípcios perto de Cresson. Estavam dando água a seus cavalos nas fontes.

- As notícias foram confirmadas... – disse Gerard, aproximando-se do marechal, que se mostrava obediente como todo templário deveria ser; honrado como todo cavaleiro deveria ser. Fiel como todo cristão deveria ser, Jacques de Mailly apenas assentiu com a cabeça. Perto deles, Rogério des Moulins, o grão-mestre dos cavaleiros do Hospital de São João, os hospitalários, aproximou o cavalo para saber o que estava acontecendo.

- Os infiéis estão próximos, Des Moulins. É hora de mostrarmos a força de Cristo para eles – falou De Ridefort. As palavras poderiam ser de coragem ou fé se saídas de outra boca, mas, vindas de Gerard, eram pouco mais do que frases vãs e orgulhosas geradas pela língua bifurcada de uma víbora.

- Quantos são? – perguntou Rogério des Moulins, observado por Jacques. O marechal templário esperava que o hospitalário pudesse convencer Gerard a ter bom senso naquele dia. O sol já os castigava demais para serem forçados a alguma ordem desastrosa vinda do grão-mestre.

- Pouco mais de cinco mil. Talvez cheguem a sete mil – disse Gerard, já olhando para os cavaleiros e pensando como seria o avanço para derrotar os muçulmanos. Eles venceriam e ninguém poderia disputar o poder do Templo. Os templários já haviam vencido batalhas em grande desvantagem. Já haviam salvado o rei Balduíno IV em uma luta contra Saladino dessa maneira. Porém, naquela época, Gerard não era o grão-mestre; para a sorte dos templários e infortúnio da ganância dele.

- Melhor recuarmos – declarou Des Moulins, para o alívio de Jacques. Mas o marechal suspirara cedo demais.

- Não.. Por Deus, homens. Podemos derrotá-los. Temos o Senhor do nosso lado.

- Senhor, por meu cargo, tomo a liberdade de dizer que concordo com o senhor Des Moulins. Precisamos poupar os homens para uma batalha maior. Será inútil travarmos uma batalha que mais parece fadada à derrota.

De Ridefort olhou de volta para o marechal com o rosto vermelho oculto pela espessa barba negra. Os olhos castanhos saltavam repletos de cólera vindas de um orgulho ferido. Qualquer um diria que ele estava prestes a sacar a espada e atacar, mas a espécie das cobras humanas não usa essas armas. Essas criaturas preferem combater fogo com fogo, aproveitando-se da língua venenosa que é seu dom natural.

- Ora... De Mailly... Você louva em demasia essa cabeça loura para querer perdê-la em batalha.

As palavras machucaram como uma adaga, mas o tom de deboche em meio aos cavaleiros foram como sal e vinagre na ferida que se abriu na honra e no orgulho de De Mailly. Outros templários ouviram. Cavaleiros seculares ouviram.

- Não pretende obedecer a seu grão-mestre? – continuou Gerard.

Des Moulins olhou embaraçado para o marechal. Outros cavaleiros tinham uma expressão de expectativa.

- Morrerei em batalha como um homem corajoso, e você... você, meu grão-mestre... é você quem fugirá como um traidor – disse Jacques, dando as costas para Gerard. Agora não havia mais volta. Desobedecer a Gerard, por pior que aquele homem fosse, ia contra tudo o que De Mailly acreditava. Ele fizera votos quando entrara no Templo. Jurara dar sua vida por Cristo e obedecer ao grão-mestre. A essência dos templários estava na disciplina e na fé, na honra perfeita do cavaleiro. Não, ele não poderia desobedecer a seu grão-mestre, mesmo que aquela alma parecesse mais esculpida pelo Diabo do que abraçada por Deus. Talvez aquilo fizesse parte dos planos do Senhor. Era o teste derradeiro para sua alma.

Jacques foi rezar com os outros templários. Ele precisava daquele alento. Pediu misericórdia ao Senhor e o perdão a Cristo pelas palavras ásperas feitas contra o superior. Ele sabia que aquela fala lhe causaria a perda do cargo e talvez a perda das armas durante algum tempo, quem sabe castigos físicos. Isso se sobrevivesse aquele dia.

- Cavaleiros, montar!

Jacques olhou para trás e viu a vitória orgulhosa e a ambição pungente pregadas no rosto de Gerard. Des Moulins o acompanhava com o rosto resignado. Jacques supôs que ele também fazia suas últimas orações.

Alguns cavaleiros seculares discutiram e reclamaram, mas a maioria teve medo de ter sua coragem questionada. Também havia o exemplo dos templários, que eram maioria. Aqueles cavaleiros de branco cavalgavam silenciosamente, sem questionar as ordens. Se o grão-mestre os enviava para encarar a morte na batalha, eles verificavam as armas para ter certeza de que enviariam os pagãos para o fogo do Diabo antes de encontrarem a luz de Cristo.

Cavalgaram deixando a infantaria para trás quando Gerard avistou pela primeira vez os egípcios. Eles estavam dando de beber aos cavalos, como fora informado. De Mailly analisou os muçulmanos. Eram pelo menos seis mil, com certeza. O marechal sabia que aquele grupo era perigoso. Colhera informações sobre eles ainda em Jerusalém. Os egípcios estavam aliados a Saladino e ajudariam o sultão a acabar com as forças cristãs. Graças ao entendimento da cultura e língua locais, Jacques entendera parte do ódio que aqueles muçulmanos, que também consideravam os cristãos infiéis, tinham para com os europeus, chamados por eles de francos. O marechal conhecia a religião deles e sabia que muitos ali estavam lutando pelo mesmo motivo que ele, apenas por fé e honra. Certo, havia ambição como em qualquer grupo, mas, no fundo, eles eram todos iguais, cada um matando pelo que acreditava.

“É hora de morrer pelo que eu acredito”, pensou Jacques, fazendo sinal para que os cavaleiros preparassem suas montarias.

- Vamos atacar com os cavaleiros primeiro. Vamos pegá-los de surpresa. A infantaria apenas nos atrasará – disse Gerard, ao que Jacques preferiu não ouvir plenamente. Era melhor apenas cumprir a ordem e não analisá-la. Não queria morrer irritado ou praguejando a estupidez alheia.

O marechal chamou os templários e falou o lema da ordem:

- Non nobis, Domine, non nobis, sed Nomini tuo da gloriam – disse e os outros repetiam as mesmas palavras. “Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu Nome se dê toda a glória”.

A cavalgada começou. Eles avançaram como os cavaleiros francos sempre faziam, com violência, com coragem, sem hesitação, sem recuo. As patas dos cavalos espalhavam a areia e os olhos guerreiros miravam o enorme exército inimigo. Quanto mais próximos, mais Jacques notava que a morte pairava. Muitos deles ainda deveriam pensar que o Senhor os protegeria e que eles venceriam a batalha, mas o marechal já lutava havia tempo demais para que sua fé lhe permitisse essa ilusão. Eram muitas cabeças, muitas armas que os egípcios agora sacavam desesperados e ainda tentando entender o que acontecia.

A investida tinha a disciplina característica dos templários. Jacques seguia à frente, cavalgando junto a Rogério des Moulins. Não olhava muito para os lados para evitar ver De Ridefort ou para evitar não vê-lo.

Os egípcios foram pegos de surpresa. Sim, isso era certo. Jacques derrubou o primeiro com uma espadada no pescoço. Nem bem o sangue da vítima jorrava pelo ar, outro corpo já caía ensangüentado nas areias do deserto. Dois mortos enquanto o cavalo continuava avançando, seguido pelo barulho dos outros guerreiros. Ele olhou de relance para ver Des Moulins decapitar um egípcio. A distração o fez errar um ataque. O golpe que deveria acertar o rosto de um inimigo bateu no turbante de raspão. Graças à força do cavaleiro e ao peso da espada, o egípcio paralisou-se tonto, sem reação, permitindo que um segundo ataque finalizasse a terceira morte do dia.

Investiram a um ponto em que estavam cercados de corpos e a massa de inimigos à frente era tão compacta que não era mais possível continuar. Precisavam matar aqueles que tentavam se organizar e formar uma parede de defesa. Jacques deu ordem para o grupo pressionar a primeira fila inimiga. Mais egípcios foram ao chão quando as espadas recomeçaram a baixar. Chegaram a um ponto em que os cavalos quase escorregavam nos corpos, e foi o último ponto que alcançaram. Jacques olhou para trás e viu os primeiros cavaleiros caindo. Era o final se aproximando.

O marechal não parou de lutar. O escudo branco defendia golpes de espada e lanças e a lâmina templária, sem adornos, simples como todo pobre cavaleiro de Cristo deveria ser, continuou matando. Em determinado momento, Jacques viu Rogério des Moulins ser jogado do cavalo. O hospitalário levantou-se zonzo, procurando recompor o equilíbrio. Defendeu um golpe, que o fez perder o pouco da postura que recuperara. Depois disso, o caminho da morte se abriu para ele. Os egípcios atacaram como uma matilha. Foram tantas lâminas que não deveria haver sangue suficiente para escorrer por todas aquelas feridas.

Jacques pensou em tentar ajudar, negando-se no último segundo. Era óbvio que os egípcios já haviam se recuperado. Por mais que os templários os surpreendem-se, aquela vantagem numérica estupenda permitia muitos deles prepararem-se plenamente para vingar os amigos caídos. Já estavam fazendo o cerco. Jacques evitou o golpe de uma lança. Partiu-a com a espada e fez o cavalo recuar. O processo engatou um ataque contra um egípcio que se aproximava. Deixou o homem sangrando enquanto imaginava como conseguira chegar aos outros templários. Todos que estavam perto dele já haviam caído. Cavalos sem cavaleiros se perdiam na confusão. Guerreiros de manto branco jaziam em poças de sangue.

Duas lanças atingiram o cavalo do marechal templário. O animal relinchou e despencou na areia, quase caindo por cima da perna do guerreiro. Jacques firmou os pés na terra fofa e olhou em volta. O primeiro ataque foi fácil de defender. Escudo na frente, desvio da arma, abertura da guarda do oponente, golpe dilacerante com a espada. Mais um corpo no chão e uma outra vítima já estava estendida pouco depois. Ele conhecia o estilo de luta dos inimigos. Sabia como se defender. Um muçulmano tentou passar por ele para atacar um templário ferido e acabou com as pernas cortadas. Outro idiota cometeu o mesmo erro e perdeu a face esquerda. Então chegou o fim.

A lança enfiou-se entre as espátulas como se houvesse um alvo nas costas do templário. O golpe o atordoou e quase o pôs de joelhos. A espada se levantou mais uma vez, porém o inimigo que apareceu desviou-a com facilidade. Agora uma espada estava atravessando a cota de malha, destruindo a pele e afogando-se no sangue e nos intestinos do templário. Ele não sentiu os outros golpes. A mente restava ocupada pedindo perdão a Deus, os olhos enxergavam seus irmãos caindo aos montes e ele pensava no desperdício. Um dia seriam chamados de burros pelo ataque suicida, seriam acusado de corruptos por causa da ação de homens como De Ridefort, no entanto, cavaleiros corajosos morriam pela fé e por seus juramentos naquele dia. Que a história e Cristo fossem testemunhas de que eles tentaram... pena que alguns homens pudessem cobrir a glória daqueles outros. Mas... no fim... Non nobis, Domine, non nobis, sed Nomini tuo da gloriam... Esse era o lema.

A batalha acabou rapidamente. Os templários sobreviventes foram sacrificados, como os muçulmanos sempre faziam com aqueles cavaleiros, que pediam a morte pela espada após a derrota. Os guerreiros seculares foram presos. Apenas três nobres saíram ilesos, um deles, para a desgraça dos cristãos e sorte dos muçulmanos era Gerard de Ridefort.