BASILEU E SUA ALMA

Se Basileu não fosse tão teimoso...

Basileu era um homem de uma palavra só. Não havia meias-verdades nem meias-mentiras. Com ele ou era ou não era. O redondo, se discutido, até poderia ficar oval, mas quadrado, nunca. Assim levava sua vida, o pobre Basileu: muita festa, pouco trabalho. Os vizinhos já diziam que até a alma de Basileu estava viciada em folia, jogatinas e zona do meretrício.

Mas Basileu "nem aí pra eles". Contudo, o tempo passa e traz a verdade na mala: Basileu foi envelhecendo e seu corpo e sua mente já não mais agüentavam sua rotineira vagabundice. Ao amanhecer, tomava seus dois tradicionais martelos na cantina do Gordo e refletia sobre a vida: nunca se casara, não tinha filhos, o pai já havia morrido e a mãe morava com um irmão, na capital, mas já estava cega, surda e louca (embora para Basileu o estado de saúde da mãe nunca houvera feito diferença). O irmão só não era mais distante pelo simples fato de ser irmão: se fosse primo, cunhado, ou algo assim, nunca viria atrás de notícias. Porém, agora, Basileu estava sensível: achava-se culpado destas incoerências que seu cotidiano semeou, tinha pena da mãe, saudades do irmão e amava, com todas as suas forças, a mulher que nunca teve.

Andou a esmo, mais uma vez, por aquela manhã. Sentou-se no bar da Zuca e pediu seu costumeiro almoço: feijão, arroz, um ovo e uma salada de alface. Carne? Só no fim de semana, e olhe lá! Até o malogro cachorro da dona Zuca, o Biscoito, com suas costelas sobressaltadas, suas famintas e inquietas pulgas e sua coleira apertada, era mais feliz que ele: tinha uma cadelinha, com a qual se roçava quando em vez, uma casa, pela qual não pagava aluguel, comida servida todo santo dia e, principalmente, ninguém (além de dona Zuca) que lhe cobrasse atitudes e comportamentos “corretos”.

Voltou, Basileu, à casa naquela noite sem ter vendido um porta-retratos sequer. Abriu a geladeira e tomou o último gole daquela purinha que comprara pela manhã. Procurou por comida no armário, mas nada havia. Procurou dentro de si, tampouco. Estava vazio de lógica, de ímpeto, de ânimo e de esperança. Havia terminado também sua força e sua vontade de sorrir. Seu sono? Este há tempos havia sumido. Agora, assim como as baratas enchiam sua devoluta moradia, a culpa irradiava em seu interior. Nem cigarro, nem bebida, nem comida. O companheiro de Basileu, naquele fim de tarde em que até a lua se esconde e as nuvens parecem largos véus, foi Biscoito, que se chegou de manso, abanando freneticamente o rabo, e se sentou, com suas pulgas, a mirar o ermo deprimido.

- Vou me matar...- Pensou Basileu. Iria, efetivamente, pôr um fim naquele marasmo.

- Não fala bobagem, Basileu.

Repentinamente, surgiu, por detrás da velha ameixeira, um homem já velho, de terno cinza, com um cigarro na mão e aparentemente embriagado.

- Quem és tu? Perguntou Basileu, aproximando-se lentamente do estranho.

- Sou a tua alma, Basileu. Mas pode me chamar de Itô. - Respondeu o velho.

- Itô, de Itamar?

- Não. De 'espíritô'. Mas isso não importa. O que importa é que sou a sua alma e não vou te deixar cometer uma loucura destas, Basileu.

- Loucura? Acho que a morte é minha única saída.

- Saída do quê, homem? Veja como você é feliz. Você tem tudo aqui na Terra, não reclama não. Estes dias eu encontrei por aí uma família de espíritos desempregados: eles morreram lá na Bósnia, aquilo sim é que é sofrer, sabe como é, a Bósnia é uma 'bósnia' (hehehe). Ô, Basileu, dá um sorriso pra sua alma.

- Como é que eu vou ter certeza que você é mesmo minha alma.

- Pô, Basileu. Ta me ofendendo. Olha só que alma elegante. Puxei pelo seu pai... Ah, ele ta te mandando um abraço lá de cima. Disse que é pra você tirar estas besteiras da cabeça e ajudar a tua mãe.

- Ããã... Isso não me prova nada...- Falou, hesitoso, Basileu.

- Ô, Basileu, o que é isso? Além do mais, quem, neste universo inteiro, quem, Basileu, além de mim, se importaria com a sua vida?

Desta vez Basileu acreditou. Aquele homem desconhecido era, na verdade, sua alma. Velha, bêbada, com ares de galã de cancha de bocha, fumando a todo minuto... Aquela era mesmo a sua alma. Basileu sentiu mais culpa, que logo foi substituída por um alívio: ao menos havia com quem dividir seus remorsos.

- Ô, Basileu... Eu te conheço desde que você era minguado assim. Olha a vida que a gente leva, malandro. Se eu te contar a minha noite de ontem... Isso sem falar que nós somos sócios, ou seja, se você sair, o negócio acaba, rapaz. Entendeu? Claro... Eu sou teu amigo, sabe? Sabe ou não sabe, Basileu?

- Sei. Quer dizer... Acho que sei.

- Então, Basileu. Eu não quero te forçar a nada: o que você quiser fazer, que faça. E tem mais: se você quiser sair, eu também saio. Nós somos um time, Basileu. Um time.

- É? Um time? E onde você esteve este tempo todo que eu ando sofrendo?

- Eu tava por aí... Só observando... Quer dizer... Eu estava... Hospitalizado. É isso aí, Basileu, eu estava hospitalizado. Fiquei em coma três dias e passei meu aniversário na UTI, Basileu. Mas isso não importa mais. O que importa agora é que eu to aqui contigo e tudo vai dar certo.

Basileu olhou durante alguns segundos à figura, entrou em sua casa e saiu com uma corda. Subiu na ameixeira e começou a preparar seu derradeiro nó.

- Ô, Basileu. Desce daí, rapaz. Você pode se machucar, Basileu. Basileu!? Não me obrigue a subir aí.

- Eu já cansei dessas suas atitudes! Você é a alma mais egoísta que eu já conheci. Além disso, é muito vigarista e fica me usando a seu bel-prazer. Pra mim chega!

- Não Basileu. Não faz essa besteira, Basileu. Depois não vai ter volta. Desce daí, Basileu. Vamos tomar a saideira ali no Gordo. Eu pago!

- Não. Eu já me decidi. - falou Basileu, colocando a corda em torno do pescoço. Você só apareceu por que se eu morrer, você também morre. Nunca ligou pra mim. Mas agora é o fim. Diga adeus.

Basileu pulou do alto da árvore e morreu em poucos segundos. Sentiu sua língua rapidamente abandonar a boca, a falta de ar e a distância do solo a seus pés. E ainda pôde ver, enquanto seu corpo circundava pendurado à velha corda, o bêbado de cinza sair rindo pela ruela.

Duda Keiber
Enviado por Duda Keiber em 16/11/2006
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