Conto de fadas moderno - Animus Tristifico

Ele se apaixonou. Sabia que era a maior de suas paixões. Quando via aquela garota de pele tão alva, sombreada por cabelos negros, quase se perdia quando seu olhar era atraído pela escuridão dentro de seus olhos azuis. Aqueles olhos tinham pouco brilho, mas eram parecidos com o mar sob a noite. Um azul puro, porém denso, que encobria sentimentos tão variados quanto as sensações que tinha perto dela.

Puxava a mão dela enquanto corriam. Ouvia seus perseguidores a poucos passos. Tinham pisadas firmes. Eram diferentes daqueles pés delicados que não faziam barulho quanto tocavam as folhas caídas das árvores que os cercavam. Desviava-se dos troncos tendo apenas a luz da lua cheia, uma lua tão linda e tão prateada que o fazia se lembrar da garota ainda mais apaixonadamente.

Ele estava amando. Amara-a desde a primeira vez e parecia que sempre havia a amado. Olhou para trás e viu as lágrimas descendo do rosto dela. Parecia que seu coração ia parar quando percebia que sua amada sofria. Puxou-a para mais perto e a encobriu. Retirou uma faca que trazia na cintura. Os passos se aproximaram. Chegaram ainda mais perto.

Suas roupas já estavam rasgadas. O rosto se cortou quando um galho raspou em sua bochecha. Não parou. Sua correria só teve fim quando chegaram em frente a um penhasco. Ela chorava enquanto via aquele lugar. Lá embaixo, as ondas batiam contra as pedras. Gritavam com eles. Ele a abraçou.

- Não se preocupe. Vamos dar um jeito – falou, apertando-a e mostrando a faca.

- Eles vão me levar de volta – disse ela.

O garoto limpou as lágrimas dela. Beijou-a na testa, disposto a lutar até o fim para tê-la. Fora difícil demais achá-la. Nunca tivera alguém que amasse tanto. Mesmo tendo tantas amigas na escola, mesmo já conhecendo várias mulheres, foi ela quem o atraiu. Aquele tom ácido em que falava, aquela melancolia havia tomado seu coração e o enchido de vontade de mudá-la, de torná-la feliz e ampará-la como nenhum homem havia feito.

O primeiro dos cães chegou. Era negro e grande como um bezerro. Tinha os olhos púrpuras brilhantes e um pêlo tão eriçado nas costas que parecia um monte de espinhos. Rosnou para o garoto, como se o mandasse se afastar. Moveu-se para tentar cercá-los. Parecia tentar ficar entre eles e o penhasco. Não pretendia deixar que saltassem.

- Vá embora! – gritou o garoto.

O cão rosnou.

- Vá embora! – gritou de novo, mostrando a faca. Estava suando e apertando com força a garota.

O cão rosnou.

Ela se encolheu em seus braços e suas lágrimas molharam a camisa suada dele.

Outro rosnado, agora vindo de outro cão recém-chegado. Esse tinha pêlo vermelho e as mesmas patas grandes e grossas do outro. A saliva escorria continuamente de sua boca e os olhos estavam quase em chamas.

- Saia de perto dela – disse uma voz, saindo do meio das árvores.

A garota se apertou ainda mais nele.

- Saia daqui. Eu já falei para sair.

Ele continuou lá. Sempre estava onde os cães estavam. Os cães e ele eram um em sua missão. Apenas eles e mais ninguém. Mas sua missão era apenas uma e apenas ela ele cumpria. Havia uma rima para ele, como havia para todos e cada um vivia com seu próprio verso e sua própria rima. Se não havia mais ninguém quem rimasse ali, então mais ninguém executaria outra missão.

- Deixe-a – repetiu ele, com uma voz densa, porém encoberta.

Ele parecia vestido em um sobretudo, com abas longas em volta do pescoço. Um chapéu deixava-o com tantas sombras que ocultava sua aparência. Estava descalço. Tinha pés de homem, no entanto eram peludos e com unhas grandes. Suas mãos grandes estavam no bolso.

- Não vou deixá-la.

Tentou se aproximar com a faca. Queria abrir caminho. Os cães rosnaram. Ela não se moveu.

- Venha comigo – disse ele, agora falando com ela.

A garota chorou mais. Soluçou e se apertou ainda mais contra o peito de seu protetor.

- Deixe-a em paz. Ela quer ficar aqui.

- Não pode ficar. Para o seu bem, deixe-a ir.

- Ele vai me levar embora. Eu não quero sofrer de novo lá. Não quero ser prisioneira – choramingou ela.

O desespero da garota era tão grande e vidente que suas lágrimas pareciam veneno que quase paravam o coração daquele que a protegia. Ele começou a chorar também, contaminado pela aura de tristeza que ela exibiu.

Os cães se afastaram. O caçador também se afastou.

- Pare com isso. Venha conosco ou cortarei suas pernas e a levarei do mesmo modo.

O garoto se encheu de ira. Chorou e gritou algo que ninguém entendeu, a não ser outros corações apaixonados. Pena que não havia mais nenhum ali para compreendê-lo.

- Há quem possa fazer as pernas dela crescerem de novo – disse o caçador, ainda que não fosse sua rima se desculpar ou justificar. Sentiu uma pontada no coração, devido à falta de entonação naquele ritmo que não pertencia a sua música.

O caçador deu um passo a frente. O garoto recuou com ela.

- Não deixe que ele me leve – ela chorou.

Foi mais uma facada no peito do garoto. Ele recuou ainda mais.

- Não quero sofrer tanto. Prefiro morrer a sofrer! – ela gritou, soltando-se dele e indo para a borda do penhasco.

O cão negro saltou sobre ela e abocanhou usa perna. O garoto pulou sobre ele e enfiou a faca em suas costas. O animal a soltou e recuou. Havia sangue pingando de seus dentes.

Abraçaram-se de novo. Ela chorava ainda mais.

- Você não vai me levar viva! – gritou e o beijou com carinho. Havia lágrimas em seus lábios. – Vou embora para onde ninguém mais pode me pegar. Vou te amar de lá onde estarei. Para aquele lugar eu não volto!

Ela se aproximou do penhasco e ele foi junto. Ainda abraços.

Ele a beijou e olhou para o caçador. Cuspiu nele como um herói diante da decisão final. Era um herói em um conto de fadas.

Apontou a arma como um príncipe. Estufou o peito como um herói diante da decisão final. Era um herói em um conto de fadas.

Vociferou sua ira e cantou sobre sua honra. Seu grito foi ouvido longe como um herói diante da decisão final. Era um herói em um conto de fadas.

Então eles pularam para serem abraçados pelas ondas. Seus corpos cortaram o ar frio e chocaram-se contra as pedras. As ondas saltaram para cima deles, lambendo-os como uma mãe com suas crias feridas.

O caçador olhou para o garoto. Não lamentou, mas teve a visão de um herói em uma tragédia grega.

Os cães farejaram a morte no ar e a arma de um amor perdido. Sentiram o sacrifício inútil de um herói em uma tragédia grega.

Um dos corpos se levantou. Ela se aproximou do corpo quebrado e beijou-o na boca, sujando de sangue o rosto alvo. Toda a pele se enegreceu por alguns segundos. Então ela se levantou e chorou. Caminhou pela escuridão chorando. Derramava lágrimas pelo amado que morrera como um herói em uma tragédia grega.

O caçador observou tudo aquilo e desapareceu em névoa, enquanto os cães partiam. “Ela está ficando mais forte”, pensou. Houve uma época em que não podia morrer assim. Tinha que poupar o corpo. Agora já morria de outras maneiras. Outro suicídio. Outra vida. Outra alma. Em breve haveria mais um amor. Outro suicídio. Outra vida. Outra alma. Outro conto de fadas triste para ser contado, conto de fadas que alimentaria a lenda dela.

Mais lenda, mais forte, mais terrível, mais maligna. A rima dela era morrer por uma vida sem lucidez em que o coração se perdia na embriaguez de sentimentos sem pausa em um mundo em que nem toda tragédia tem causa, a não ser para a alma perdida após uma vida aflita.