TERUEL E OS DUENDES - CAPÍTULO SEGUNDO

CAPÍTULO SEGUNDO

Os dias foram passando e, em breve, o jovem Teruel atingira quase o porte de um duende adulto, um tom esverdeado lhe colorindo as faces como prenúncio da barba que estava para despontar. Embora Miraflores buscasse protegê-lo o tempo todo, o rapazinho aproveitava qualquer oportunidade para subir pelas hastes ou se aventurar no que lhe pareciam longas caminhadas por entre as raízes da relva, para investigar as covas que se abriam no chão, ou movendo pedrinhas e pauzinhos para testar e desenvolver sua força. Muito poucas criaturas agridem um duende adulto. Praticamente só os louva-a-deuses e os escorpiões, nenhum dos quais ele ainda havia encontrado e só conhecia de nome. Mas Miraflores não cessava de preveni-lo contra o maior de todos os perigos, que ainda eram as vespas.

A cada dia, Teruel chegava em casa um pouco mais tarde, ao retornar de seus passeios. Miraflores se preocupava como se fosse sua própria mãe, enquanto lhe preparava os melhores petiscos que conhecia. Mas Teruel quase nunca tinha fome. Tinha bebido néctar das corolas, comera pólen, mascara folhas verdes, mastigara a polpa de frutinhas. Instintivamente sabia o que era nutritivo e o que poderia ser venenoso. Ficava horas observando as longas carreiras das formigas, os grandes animais de seis patas, plácidos mas velozes, transportando pesadas cargas aparentemente sem esforço.

Algumas vezes, um couraceiro se aproximava e o apalpava com as antenas. Teruel sabia como ficar imóvel e logo os guardas das carreiras se acostumaram com ele. A mensagem de que ele era inofensivo foi repassada por meio de feromones, os odores com que as formigas se comunicam e por meio dos quais sabem onde se encontram alimento ou inimigos, tocando as antenas umas da outras: essa criatura não é inimiga e tampouco deve ser comida. Isso porque, apesar das lutas constantes para a eliminação de formigueiros, quando existe uma espécie de armistício, também as formigas respeitam os duendes e só carregam para suas adubeiras aqueles que já encontram mortos.

*** *** ***

Um desses dias, Teruel só regressou ao entardecer. Havia caçado uma drosófila, uma mosquinha-das-frutas e a vinha arrastando, como um petisco para oferecer a Miraflores, embora o sabor de sua linfa ele mesmo não apreciasse. Para sua surpresa e horror, divisou uma aranha negra, muito maior do que Miraflores, postada diante da toca, suas patas dianteiras tocando as patas douradas. Teruel inteiriçou-se: a agressora era enorme! Deixou cair a mosca e apanhou a maior pedra que podia levantar, sopesou-a, concentrou-se no arremesso e...

“Não!...” gritou sua protetora. “É amigo!...” “Amigo...?” Teruel aproximou-se desconfiado, cheio de suspeitas... “Mas nunca vi ninguém contigo...” “Este é Barañano, meu Teruel. Digamos que ele é... o meu melhor amigo.”

O macho girou nas patas traseiras e seus oito olhos verdes fitaram Teruel com indiscutível bondade.

“Então é este? Bem, meu jovem, não precisa de ter medo de mim...” “Medo? Mas quem disse que eu estou com medo?” “Ora, meu jovem amigo, não há razão para se ofender. Naturalmente, você não tem medo de mim, mas tenho certeza de que, há alguns minutos, sentia receio de que eu pudesse fazer algum mal à sua “mãe.” A palavra soava estranha nos palpos do enorme macho. “Como ela disse, nós somos, digamos... velhos amigos... Bem, já está ficando tarde e devo retirar-me. Mas não esqueça do que eu lhe disse...” Teruel não entendeu se o macho negro falava com ele ou com Miraflores...

Mas não teve ocasião de perguntar, porque Barañano moveu as longas patas peludas e negras com dignidade e vigor, logo desaparecendo por entre as hastes desnudas das papoulas ressequidas. Por um instante, Teruel pensou no que poderia ter feito se ele não fosse, “digamos... um amigo”. Seria difícil enfrentar uma criatura tão grande.

“O que ele... esse Barañano, não é? O que ele queria?” Miraflores parecia distraída. “Ora, nada, nada... Foi só uma visita, para ver como eu... como nós estávamos passando...” “Não foi. Ele veio por alguma coisa importante.” “Não foi nada, Teruel... Queres comer alguma coisa?”

Teruel deu de ombros e voltou até onde tinha deixado a mosquinha, arrastando-a facilmente e entregando o presente para Miraflores.

“Veja o que eu lhe trouxe...” “Ai, que linda! E está fresquinha... Foste tu que a mataste?” “Claro que fui. Taquei-lhe uma pedrada...” “Estás me saindo um caçador de primeira... Coloque lá na toca...” “Não vai querer?” “Depois, meu querido, depois...”

Teruel levou a caça para dentro. Miraflores estava realmente estranha. Sempre se desmanchava em elogios e sugava imediatamente as caças que lhe trazia, mesmo que fosse apenas uma meia dúzia de micuins. Mas desta vez... Teruel insistiu um pouco, só para ver o que acontecia, mas a aranha permaneceu muito quieta fora da toca, só retornando quando a noite já ia lá pelo meio. Enrolado em seu casulo macio, Teruel fez de conta que não escutava.

*** *** ***

Os dias se passavam e Teruel sentia um impulso de ir cada vez mais longe. Andava sempre armado com um espinho de corunilha, os mais duros e pontiagudos que conhecia. Assim matou a abelha, quando ele se banhava no orvalho coletado na corola de uma açucena e o inseto aparecera em busca de pólen ou néctar. Sabia que não o atacaria, mas dispôs-se a feri-la no impulso do momento. Foi uma boa preparação, embora o inseto fosse pesado demais para que o pudesse arrastar até a toca como presente para Miraflores...

Mas a experiência lhe serviu para ferir sem o menor medo uma lacraia que se preparava para entrar na toca em que Miraflores dormia. Seu exoesqueleto de quitina era duro demais para ser perfurado, mas enfiou o espinho repetidas vezes nos intervalos entre os anéis de que surgiam os pares de patas, até que o bicho, após levantar a cabeça e as patas da frente para tentar defender-se em vão, girou nas patas traseiras e fugiu, enquanto ele ainda o perseguia, tendo o cuidado de evitar os dois ferrões que se projetavam de seu último segmento. Sabia que não eram venenosos, destinados mais a desencorajar os pássaros que apreciavam muito a carne das lacraias, mas eram pontudos o bastante para o machucar.

E usava ainda a mesma lança improvisada para bater ao lado da cabeça dos couraceiros, quando algum se demonstrava mais curioso ao ver Teruel à beira da carreira laboriosa que se dirigia ao formigueiro, provavelmente algum que eclodira há pouco de seu ovo e não recebera os feromones em quantidade suficiente para reconhecê-lo ao primeiro farejar. Então o inseto o cheirava e o apalpava com as antenas, reconhecia o odor cuja memória fora levemente inserida em seus nódulos nervosos e determinava que era amigo ou, pelo menos, inofensivo. afastando-se sem insistir mais.

Certo dia, Teruel deparou com uma teia gigantesca. Nela o orvalho brilhava congelado, formando um colar de pérolas enfiadas em fios de prata, que reluziam à primeira luz da manhã. Miraflores já tivera o cuidado de lhe mostrar teias antes, embora muito menores do que aquela, rasgadas e abandonadas, recomendando-lhe que nunca se aproximasse de uma delas, explicando-lhe que pertenciam a criaturas inferiores, incapazes de caçar sozinhas e que se serviam delas para capturar seu alimento. Teruel reparara que, embora uma ponta rebentada oscilasse ao vento, a teia ainda estava presa entre folhas de relva, cortando o que seria uma passagem natural e que não poderia simplesmente ser jogada para prender qualquer criatura, como as redinhas que ele mesmo tecia com fibras de capim para caçar os insetos minúsculos que levava para Miraflores.

Tão logo fez essa observação, sua protetora o olhou apreciadoramente. “É isso mesmo, essas teias ficam sempre paradas aqui, esperando que alguém venha caminhando ou voando distraído e se embarace nelas... Você se está tornando um bom observador...” “Quer dizer que a criatura presa é então atacada pela dona da teia...? “Sim, meu querido, mas não é preciso que ela venha em seguida. Esses fios são pegajosos e quanto mais a vítima procurar se libertar, mais emaranhada fica...” Para demonstrar, ela tocou os fios com as patas dianteiras. “Hum... já está muito ressequida pelo vento... Mas experimenta tocar aqui...”

Teruel obedeceu e, para seu espanto, não conseguiu desgrudar a mão. Tentou livrar-se com a outra, que ficou igualmente presa. “Viste só?” disse Miraflores, cuspindo nas mãos dele, que se soltaram com um certo esforço. “Nós, aranhas, não caímos nas teias umas das outras, mas tu ficarias preso e não conseguirias te soltar. Foi por isso que te mostrei, para que nunca te deixes prender em uma dessas armadilhas covardes...” “Mas espere, Miraflores, você disse, “umas das outras”? Foi uma aranha que criou esta teia?”

“Claro, meu amor, você não viu como eu fabriquei o seu casulo de dormir? É o mesmo material que a gente cospe da boca...” “Mas então, a senhora...” “De jeito nenhum, meu filho, eu sou uma caçadora!” disse Miraflores, com orgulho. “Você já deveria saber disso muito bem!...” “Desculpe, é que...” “É claro que desculpo, é um engano natural e, para falar a verdade, eu até poderia tecer uma teia... se me rebaixasse a tal ponto. Mas nós, as caçadoras, só usamos teias para proteger nossos filhotes, para fabricar casulos como esse que eu lhe fiz, para proteger a entrada de nossas tocas... São essas preguiçosas miseráveis que tecem teias e depois ficam paradas no centro ou num canto, meio escondidas em um casulo, esperando que a comida lhes caia na boca...”

Teruel ficou olhando a teia arruinada, bastante pensativo... Miraflores falou então: “É bom mesmo que preste atenção nisso, porque eu posso não estar por perto para libertá-lo. E o que você fará, quando uma dessas infelizes chegar, lhe der uma picada e o enrolar para guardar como alimento para o inverno?”

Teruel sentiu um arrepio lhe percorrer a corda nervosa que descia ao longo de suas costas... E agora, toda a cena lhe voltou à memória, estacando a uma distância segura dos fios pegajosos. Então percebeu que, ao pé da teia, estavam as carcaças de criaturas mortas, secas e vazias, somente esqueletos de quitina, baços e sem vida, ainda enrolados parcialmente em restos de teia podre e acinzentada. Embora Miraflores falasse com tanto desprezo das aranhas de teia, vagabundas que se limitavam a ficar encolhidas em um canto até que a comida lhes caísse ao colo, ele reconhecia muito bem o perigo.

Dentro da mente, escutou a voz de sua protetora: “Pior ainda, elas desperdiçam alimento!... Apenas sugam a linfa dos animaizinhos e deixam o resto para as formigas pegarem, que em geral, nem querem, só em fim de estação, quando já recolheram todas as folhas caídas nas redondezas. E se comportam tão mal quanto as vespas: enrolam as vítimas em casulos de seda, incapazes de um só movimento de defesa e então, as sugam lentamente, um pouquinho hoje, outro pouco amanhã, os bichinhos sentindo a vida se esvair deles lentamente e sem poderem fazer nada, exceto esperar outro dia de tortura...”

“Ah, elas são aranhas, é triste reconhecer... Mas não são como nós, de jeito nenhum: nós caçamos, matamos e comemos. É uma morte limpa e praticamente sem dor, porque desde o começo anestesiamos as presas com um líquido que temos. Aranhas não devem se portar feito vespas!...”

Teruel recordava ainda que, nessa ocasião, de fato sem saber porquê, indagara se Barañano tinha uma teia muito grande. Para sua surpresa e ressentimento, Miraflores o esbofeteara na mesma hora com uma de suas patas dianteiras. “Nunca mais diga isso! Barañano é um caçador e o melhor de todos nós!” Teruel, magoado e furioso pelo golpe, que de fato só lhe doera na alma, quis saber mais, porém a aranha loura não ajuntou uma só palavra ao que já antes lhe dissera.

*** *** ***

E agora reparou que uma criatura se debatia na teia. Tinha um corpo alongado e verde, olhos imensos, as garras das patas dianteiras unidas como se estivesse fazendo uma oração. Uma feia aranha cinza, de corpo obeso e patas muito finas, ocupava o centro da teia e observava a luta da vítima, sem se aproximar muito dela, limitando-se a cuspir um novo fio de vez em quando, acertando certeiramente a fim de enlear a presa ainda mais. Mas aquela era uma criatura muito grande, forte e resistente e até mesmo conseguia rebentar alguns fios, somente para emaranhar-se de novo, enquanto a aranha feia aguardava o desfecho com paciência.

Tomado por um impulso inexplicável, Teruel estendeu a sua pequena lança de espinho de corunilha e partiu alguns dos fios com a ponta aguçada. Não precisava da saliva de Miraflores, já aprendera como, pois não se criara com uma aranha? Em ocasiões anteriores experimentara mais uma vez nas teias abandonadas, em que deixara grudada mais de uma de suas lanças improvisadas, até que pegara o jeito. Com um arrepelão, a criatura caiu ao solo e, meio se arrastando, pôs-se em fuga. A aranha cinza, furiosa, chiou para Teruel seu despeito e desapontamento:

“Traidor! Eu sei quem tu és!... És a cria bastarda de Miraflores, alimentada com leite de uma aranha e que agora está roubando o alimento de outra! Tinha comida para um mês! Besouro! Besouro bastardo! Vou me queixar ao Barañano! Só quero ver o que o namoradinho da tua mãe vai fazer contigo!...”

Teruel afastou-se, perturbado. Besouro? Namoradinho? Não podia voltar para casa agora, tinha de pensar muito antes de poder voltar. Subitamente, uma sombra projetou-se sobre ele e viu-se preso nos braços cobertos de farpas da mesma criatura que havia socorrido, o rosto largo e triangular, os olhos protuberantes e maus muito próximos dos seus, a boca que se abria verticalmente... toda ela irradiando malícia e falsidade. Por um momento, pensou haver chegado sua hora. Os braços fortes o prendiam, tentou em vão erguer a lança, enquanto as mandíbulas famintas se aproximavam de sua face... Mas o momento passou!

“Não temas, pequeno duende. Só quero abraçar-te...”

Teruel sentia-se tremer da cabeça aos pés. O contato nojento da criatura lhe causava arrepios. Fez um enorme esforço e libertou-se, ou, muito mais provavelmente, o outro deixou-o livre.

“Quem é você?” Teruel recuou três passos, a lança em riste. “Calma, meu jovem senhor... Aqui como me vê, sou Frei Custódio, Superior da Ordem dos Louva-a-Deuses. Quero agradecer-lhe por me haver salvo a vida e libertado de uma morte horrível, depois que estava voando com a cabeça nas nuvens e cometi a estupidez imperdoável de me deixar prender naquela teia...”

Teruel baixou a lança. “Pensei que fosse me devorar...” “Confesso, meu jovem senhor, que o projeto me passou pela mente, quando o vi caminhando assim, incauto e distraído pela trilha... Tão distraído como eu, faz pouco... Afinal, não como há dias... Mas então percebi quem você era, foi justamente a sua distração que me recordou da minha e depois de sua corajosa ação para me salvar... Estou faminto, mas como iria devorar quem salvou minha triste vida? Que não o permitam os deuses!...”

A pergunta lhe atravessou a mente: Deuses? Mas o que eram deuses? Empurrou-a para um canto de sua mente e falou o que era mais importante nesse momento. “Você devora duendes.” Era uma afirmação, não uma pergunta. “Ora, vida é vida. Eu cá me alimento com o que as borboletas me dão...”

“Pensei que nossos inimigos fossem as vespas...” “Ah, as vespas! Como são deliciosas! Não há iguaria melhor que o abdômen das vespas, meu jovem amigo!... Mas como são difíceis de caçar... Acho que é o perigo que aumenta o seu sabor, pois facilmente eu posso me transformar de caçador em caça, se não planejar o meu ataque com todo o cuidado... Mas agora, meu querido, vá-se embora de uma vez, que estou com fome e ainda tenho de esperar até encontrar outra presa. Queira dignar-se a aceitar os meus mais sinceros agradecimentos e, caso algum dia precisar de Frei Custódio, eu muito certamente o ajudarei, especialmente se for contra essas vespas tão nojentas quanto saborosas... Mas agora vá embora, ande! Você me libertou, salvou-me a vida, mas eu também salvei a sua... Parta agora, antes que minha fome aumente...”

Teruel não precisou de novo convite. Furtou-se logo ao alcance da estranha criatura, que na mesma frase lhe agradecia e o ameaçava. “Ora, mas como ele pôde dizer que me salvou a vida também?” Nem bem pensara no assunto, percebeu que o louva-a-deus se referia a si mesmo. Teria facilmente devorado Teruel, se o não tivesse reconhecido...

VEJA TAMBÉM O CAPÍTULO PRIMEIRO NESTA ESCRIVANINHA

William Lagos
Enviado por William Lagos em 22/07/2011
Código do texto: T3111041
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