A TORRE INVERTIDA (em prosa)

A TORRE INVERTIDA (em prosa)

William Lagos — 24 jul 11

(Antiga narrativa popular prussiana, apud Chris Willrich)

Muitos milênios atrás, um mago chamado Assetodoro construíra uma torre que descia para baixo, ao invés de subir, como o fazem todas as torres sensatas. Por força da magia, ela surgira na face de um penhasco, não à beira-mar, mas abaixo da superfície das ondas. A entrada era por um túnel aberto através da rocha, que levava a um vestíbulo quase tocando o leito do oceano. Mas a característica mais estranha é que o teto ficava do lado de baixo e o assoalho mais para cima, de modo que, quando alguém entrava pelo túnel, de repente ficava de cabeça para baixo, com os pés tocando no que lhe parecia ser o teto, o que causava vertigem na maioria dos visitantes.

Logo que a pessoa se acostumava, ia descendo por uma escada (que de fato subia), passando pelos andares inferiores (que ficavam cada vez mais para cima), até chegar no gabinete de Assetodoro, que ficava na parte inferior da escada, mas de fato era o andar mais elevado... Mais ainda, pela força de sua mágica, o piso dessa última peça era transparente e dava para a superfície do oceano, separado apenas por um meio metro de água... Quando a maré subia ou havia uma tempestade, as ondas se encrespavam sob os pés das pessoas e a sensação de vertigem voltava. Assetodoro se divertia muito, vendo as reações de seus visitantes.

Enquanto subiam/desciam a escada em caracol, podiam ver pelas janelas os peixes nadando, aparentemente de barriga para cima, o que aumentava a sensação de estranheza e deixava as pessoas desarmadas e confusas, podendo assim ser facilmente manipuladas pelo feiticeiro. Mas Assetodoro não era absolutamente mau, muito pelo contrário, ele se afastara dos demais bruxos porque, em sua época, os feitiços só eram feitos com derramamento de sangue e os grandes encantamentos exigiam o sacrifício de seres humanos, coisa que ele nunca se animara a fazer. Assim, limitava-se a pequenas mágicas, sem realizar os portentos executados por seus colegas.

Assetodoro era um estudioso e dedicara a vida a comprar ou obter de outro modo os mais arcanos livros de magia, aprendendo os segredos desses alfarrábios para executar seus encantamentos de forma menos cruel. Aos poucos, aprendera a ler as mentes das pessoas e animais, a dominar os ventos e a chuva, a lançar raios, a domar dragões e monstros e a submeter elementais a suas ordens; mesmo neste caso, sua boa índole se manifestava, pois sempre lhes dava algo em troca, salvo quando os capturava durante a execução de alguma má ação, quando as leis que os regiam os tornavam escravos de quem impedisse tais malfeitos, enquanto a pessoa assim o quisesse.

Desse modo, Assetodoro fora reunindo alguns servos, um golem feito de barro animado por um encantamento, um espírito que puxara de um espelho, um silfo, outro espírito feito de ar mas que podia se materializar e até mesmo um demônio de pequena importância na hierarquia dos infernos. Estes quatro o obedeciam sempre, mas quando Assetodoro precisava de uma tarefa especial, invocava outro tipo de elemental, um gnomo, um duende, uma fada, até mesmo um anão, o último uma criatura totalmente material e conseguia sua ajuda para a tarefa desejada, despedindo-os depois com uma recompensa, o que os predispunha a ajudá-lo quando necessitasse deles novamente.

Ora, acontece que as pessoas ao entrarem na antessala, tinham a sensação de ter dado uma reviravolta no ar (o que de fato acontecia) e da primeira vez se estonteavam, tinham vertigens e, algumas vezes, sentiam enjoo e passavam mal. Na verdade, isto era uma precaução tomada por Assetodoro contra a possível chegada de inimigos ou criaturas malevolentes. Mas algumas experiências desagradáveis o levaram a tomar outra providência: é que algumas pessoas enjoavam e sujavam os pisos. Inicialmente, seu servo golem limpava, mas suas mãos de barro se foram desmanchando com a água e sabão e o mago levara quase uma semana para as restaurar. O silfo passou a executar essa tarefa desagradável e se desempenhava bem, mas sua aura captava o cheiro do alimento devolvido pelos visitantes e passava dias levando o mau odor por toda a torre, até que Assetodoro se sentisse incomodado o bastante para executar nele um encanto de limpeza.

Transferiu então a tarefa para seu servo demônio, que a realizava de má-vontade, mas não se podia recusar; contudo, como também era dotado de alguns poderes mágicos, ao invés de simplesmente limpar o chão, transferia a sujeira através das paredes para a água do oceano que rodeava a torre. As paredes ficavam limpas e intocadas, mas aquilo atraía muitos peixes e estes atraíam predadores maiores, que por sua vez, atraíam tubarões, agitando o mar e criando problemas para os pescadores da aldeia mais próxima, o Porto dos Caranguejos. Então o mago contemplou seu grande Espéculo, o espelho mágico, até divisar uma criatura especular praticando um ato de maldade; rapidamente a capturou, puxou-a para seu mundo e a transformou em seu porteiro. Cada vez que se aproximava um visitante, após Assetodoro verificar que não vinha mal intencionado, o porteiro o aguardava na entrada e invertia o efeito da reviravolta, de modo que a pessoa não chegava a sentir vertigem. E na saída, quando novamente se achavam sob o poder normal da gravidade, a criatura especular os projetava para muito além do túnel, de modo que, se enjoassem e passassem mal, o fariam bem longe da entrada da torre.

Contudo, seus visitantes habituais eram os aldeães do pequeno porto e já estavam acostumados há gerações com a estranha inversão do piso, de tal modo que nem as crianças sentiam qualquer tontura: ao contrário, achavam muito divertida a tal reviravolta e logo corriam escadas abaixo/acima, em busca do gabinete do mago, ansiosas para ver as ondas do mar correndo por debaixo de seus pés. E Assetodoro atendia a todos, mansamente, sem nada pedir em troca. Mas era gente humilde e seus pedidos eram fáceis de atender: que a pesca fosse boa, que o tempo não prejudicasse, que chovesse na quantidade exata para suas pequenas hortas produzirem alimento... ou para que lhes fizesse brinquedos mágicos capazes de andar ou de falar sem precisar de corda ou para os consertar após terem sido estragados por um motivo ou outro.

Assetodoro era muito velho, nem gostava de pensar há quanto tempo construíra sua torre... porque, de fato, já era velho quando escolhera aquele lugar, na época em que os avós dos avós das atuais crianças ainda eram crianças... Mas seu aspecto não mudara em nada desde que passara a habitar na estranha torre e não se sentia nem um século mais velho... Vivia estudando os seus pergaminhos, papiros e alfarrábios, aperfeiçoando-se em todos os segredos da magia branca, como é chamada aquela que só se destina a fazer o bem e a combater os necromantes, praticantes da magia negra, como é chamada aquela que executa portentos por meio da morte e do derramamento de sangue. E teria continuado a viver assim por mais alguns séculos, melancólico, mas satisfeito com sua vidinha monótona, se não tivesse recebido a visita de um estranho casal.

A mulher disse chamar-se Alecrim e era jovem e cheia de alegria, irradiando uma inconfundível pureza, mas o homem, que se apresentou como Antimônio, era velho, velho... não tanto quanto Assetodoro, mas com séculos de idade, embora aparentasse somente uns quarenta anos e fosse muito magro, mas musculoso e dotado de ossos fortes e grossos. Ao observá-lo através de um cristal mágico, percebeu que a aura da jovem estava respingada pela maldade que ressumbrava da aura escura do homem e lamentou profundamente que fosse assim, porque com a convivência, a sua pureza iria desaparecendo lentamente, substituída pela malícia que já a estava enlameando aos poucos. Contudo, ainda era fresca como as flores de um jardim primaveril, ainda cobertas por gotículas de orvalho rebrilhando como pequenos diamantes ou pérolas rosadas sob a ação dos primeiros raios do arrebol.

E uma coisa muito estranha aconteceu com o mago, mais estranha que o casal de visitantes, mais estranha ainda que a torre que construíra para viver ao abrigo das tribulações do mundo. Assetodoro sentiu uma luzinha se acender em seu velho coração, que foi aos poucos acalentando uma emoção que não sentia há séculos. Para seu espanto, percebeu que se estava enamorando daquela moça!... Santo Arquiteto do Universo! Seu velho vulcão ainda era capaz de produzir lava... Mas logo afastou o pensamento, divertido com o que lhe pareceu uma ilusão transitória e sem deixar transparecer nada em seu rosto.

O cristal mágico que refletia as auras também lhe revelou que Antimônio se encontrava há muito tempo sob o efeito de uma estranhíssima maldição. Ele obtivera aquela juventude inatural e sua longa vida através de um pacto com um demônio: quanto mais mal praticasse, mais tempo viveria sobre a terra, mas caso seu caráter se modificasse, toda a velhice o assaltaria em questão de momentos: não só seu corpo se ressecaria e esvairia em pó, como sua alma encarquilhada se tornaria escrava daquela criatura maligna a quem tão bem servira e a quem pior teria de servir no plano atemporal em que habitava. Interrogado, Antimônio confessou exatamente isso, mas acrescentou que já sentia sua alma se esticando e enrugando ao mesmo tempo, tal como se estivesse a esgarçar-se e logo fosse começar a se rasgar.

Para evitar isso, cometera muitos assassinatos, torturara vítimas inocentes com requintes de maldade e traíra muitas vezes a sua jovem esposa, a quem tomara num impulso de malignidade, com a intenção de a corromper; mas ao contrário, se apaixonara por ela e se algo lamentava de sua vida, era perceber que ela já não era mais tão pura e fresca como quando a conhecera, mas que estava inconscientemente absorvendo a sua maldade, sua ingenuidade e gentileza maculadas pela convivência com ele mesmo. Mas sua natureza egoísta não lhe permitia afastar-se dela, enquanto outro aspecto de seu egoísmo era justamente querer conservar sua aparência e sensação física de juventude, mas livrar-se da contraparte da maldição, para não ter de servir a seu demônio após a morte que, segundo percebia, já se aproximava, a não ser que executasse a maior perfídia de todas, justamente o assassinato de Alecrim.

Ou porque o amor nascente o dominasse ou porque a maldade de Antimônio era tanta que até mesmo atravessou suas defesas e o atingiu, ou, como preferiu dizer a si próprio, porque não podia suportar o mal que ele estava fazendo e ainda faria à sua esposa, Assetodoro concebeu um feio plano, bem diverso de sua natureza habitual. Pois ele sentia que inconscientemente, para que seu marido fosse curado, Alecrim lhe prometia deixar o marido e ficar com ele; dessa proposta de sedução nem ela sabia, era apenas a parte corrompida de sua alma que a propunha ao mago; este viu tudo e tudo compreendeu, sentindo o desejo lhe crescer no próprio peito e sabendo que, se manipulasse bem as circunstâncias, poderia realmente fazer com que ela deixasse Antimônio e se apaixonasse por ele, como um consolo para os dias finais de sua longa vida solitária.

Mas justamente porque essa promessa era inconsciente, tão logo Antimônio fosse curado, ela partiria com ele e só retornaria quando a longevidade inatural do outro finalmente se extinguisse... Isso levaria ainda meio século, talvez sessenta anos e Assetodoro não estava disposto a aguardar tanto tempo, mesmo sabendo que ele mesmo não se modificaria em nada, protegido por sua torre mágica; mas ela não comprara qualquer juventude falsa, seria uma velha no fim de tantas décadas e quem sabe sequer se lembraria da promessa ou teria condições físicas de retornar para a cumprir? Não, se Assetodoro quisesse ter o amor dessa mulher, teria de obtê-lo muito em breve. E instantaneamente uma imagem se formou em sua mente, de como poderia dar a Antimônio exatamente o que queria e, ao mesmo tempo, livrar-se dele e conseguir Alecrim para si.

Por um instante considerou também que poderia simplesmente encantar a jovem e fazê-la esquecer do marido; e que poderia facilmente expulsar a este e impedir que jamais retornasse; mais ainda, poderia perfeitamente esperar a sua morte e atrair de volta Alecrim. Por mais velhinha e alquebrada que estivesse, seu poder era mais do que suficiente para restaurá-la... Mas de que lhe serviria isso? Se quisesse uma mulher por encantamento, poderia ter qualquer uma das aldeãs, que eram muito belas enquanto não envelheciam pelos maus tratos. Ou ainda, poderia criar uma mulher perfeita por suas artes de magia, a partir de um espírito elemental ou mesmo de um objeto, uma maçã ou até de uma flor. Mas nada disto lhe servia, porque o que sentia não era desejo, mas ânsia de amor.

Então se decidiu e falou a mentira dentro da verdade. A única forma de Antimônio quebrar o feitiço sob o qual se achava era rompendo um antigo encantamento que nada tivesse a ver com ele. Ao executar essa ação meritória, o mal que o dominava se dissiparia e ele poderia viver ainda várias décadas, mantendo sua aparência e a sensação de juventude até o final; salvo um acidente, seria imune a todas as doenças e morreria pacificamente durante o sono. Antimônio disse que nada poderia ser melhor, o que teria de fazer? Assetodoro lhe respondeu com toda a sinceridade que teria de enfrentar muitos perigos e que o teria de fazer sozinho. Mas teria de seguir à risca as suas instruções, sem se afastar uma polegada para a esquerda ou a direita. Só com obediência total e absoluta conseguiria atingir seu objetivo.

Alecrim afirmou então que cuidaria para que ele não o desobedecesse em nada, mas o mago repetiu que não seria possível. Antimônio teria de adquirir o mérito por si mesmo e às suas próprias custas. Havia um castelo dentro de uma ilha distante, protegido por um fogo mágico que queimava ininterruptamente há muitos séculos, muito mais tempo do que Antimônio e ele mesmo haviam vivido, mesmo que somassem todos os seus anos. Se o visitante conseguisse apagar esse fogo, apagaria simultaneamente o fogo da maldade que o consumia. Mas que visse bem se era o que queria, porque era uma tarefa muito difícil de empreender. Não somente a ilha era protegida por outros charmes e glamores, como o mar que a rodeava demonstrava grande ressentimento para com quaisquer humanos que o ousassem atravessar.

Quando Alecrim falou que não queria separar-se do marido, por piores que fossem os perigos, Assetodoro concedeu que isso só seria necessário no momento de executar o desencantamento. Que ele mesmo os acompanharia para os proteger e abriria o caminho para a ilha; mas a partir de então, Alecrim teria de ficar com ele, enquanto Antimônio prosseguia sozinho a enfrentar os perigos do caminho... E então o advertiu, com o máximo de sinceridade, mas escondendo a armadilha, que dentro do castelo o aguardavam ainda maiores perigos: que ele jamais ousasse entrar! Que a sua maldição se quebraria quando o fogo fosse apagado e que então deveria retornar, sem procurar qualquer tesouro dentro do castelo. E ao dizer isso, lançava-lhe a isca, porque sabia que a natureza de Antimônio, independentemente da maldição, era ambiciosa e cheia de curiosidade e que ele muito certamente o desobedeceria, expondo-se à ratoeira que o aguardava no interior do antiqüíssimo castelo.

Destarte, o mago saiu de sua torre pela primeira vez em décadas, deixando seus quatro servos místicos de guarda e seguiu até uma parte isolada da costa, longe do Porto dos Caranguejos, em que invocou uma embarcação. Prontamente as águas se foram abrindo e um veleiro antigo aflorou à superfície, naturalmente sem tripulação. Mas os corpos astrais dos marujos afogados ali permaneciam e Assetodoro já de há muito os dominara, servindo-lhes ilusões imateriais como recompensa, a cada um segundo seu caráter; uns visitavam as famílias, outros se banqueteavam, outros jogavam e se embebedavam, outros sonhavam estar visitando mulheres belas e havia um, inclusive, que se imaginava vivendo em um mosteiro.

Embarcaram os três, sem água ou provisões, como determinara o mago e velejaram durante sete dias. Assetodoro tinha um longo cachimbo, cuja fumaça enfunava as velas e modificava o curso do veleiro segundo o seu querer. Mas figuras invisíveis ferravam ou soltavam as velas e Alecrim sentia arrepios lhe percorrerem os braços, enquanto Antimônio se acovardava, sem sair da cabine que lhes fora designada. Ao fim dos sete dias, mãos incorpóreas giraram o cabrestante e lançaram a âncora ao mar. Assetodoro ergueu os braços e murmurou palavras incompreensíveis e uma espécie de película se rompeu, permitindo o acesso fácil à praia. Conforme ele esperava, o encanto muito se enfraquecera desde que fora inicialmente lançado.

Os três desceram à praia e o mago repetiu novamente as instruções que já dera a Antimônio várias vezes durante a viagem. “Sei muito bem que és um ladrão e assassino, falsário e torturador e que já traíste a Alecrim muitas vezes; de fato, não a mereceste até agora. Segues apenas teus próprios interesses, mas desta vez terás de mudar de tino, pois só triunfarás se me obedeceres totalmente. Terás de enfrentar três perigos no caminho, mas sobretudo, depois que apagares o fogo, não deves tentar de forma alguma penetrar no castelo – ou no que resta dele – se quiseres retornar para tua esposa. Lá está o maior perigo e, se entrares, talvez não saias mais.”

O amaldiçoado prometeu outra vez que obedeceria. “Recorda, então: durante a viagem, providenciei para que não as sentisses, mas agora estás com sede e fome. No caminho irás encontrar uma lagoa aprazível: sentirás sede, mas não ouses beber, porque se transformará em um fosso e te engolirá; sentirás fome e encontrarás três árvores carregadas de frutos deliciosos; colherás apenas um de cada uma delas, mas não lhes darás nem a mais leve mordida; a seguir, enfrentarás uma serpente gigantesca, que te encarará fixamente, tentando te fascinar como a um pássaro; jogar-lhe-ás um dos frutos e, após o ter comido, ela te servirá fielmente. Irá deslizando pelo solo à tua frente para te indicar o caminho até a fogueira. Entendeste bem?”

Antimônio garantiu que nada esquecera. “Pois bem, ao chegares ao castelo, encontrarás a fogueira, cujo clarão podes ver desde aqui, mesmo que seja ainda dia claro; através das chamas, enxergarás um grande brasão esculpido na parede do castelo; planta o segundo fruto do lado de fora das chamas diretamente diante dele; ele imediatamente crescerá e se tornará em uma árvore copada; a serpente se enroscará em um galho; pendura-te nela, balança-te bem e pula sem medo por cima das chamas, que nem sequer te chamuscarão; enfia então a mão na boca aberta da águia de pedra do brasão e encontrarás um osso, que guardarás no bolso; planta então o terceiro fruto diante do brasão, do lado interno da fogueira; também ele crescerá e estenderá um ramo sobre as chamas; galga o tronco e segue até a ponta desse ramo; pula então, sem medo, que a serpente te apanhará...”

“Depois disso, dá liberdade à serpente, que não precisarás mais dela, nem ela te fará mal algum; volta até a lagoa e joga o osso dentro dela: imediatamente surgirá uma criatura que não é feita de carne e sim de água; assim que abocanhar o osso, também ela te servirá. Toma-a nos braços, que nada pesa por maior que te pareça e leva-a contigo até as chamas. Então a aperta e ela assoprará um esguicho que extinguirá a fogueira inteira.

Deixa-a ir então e volta imediatamente, porque teu encantamento cessará no mesmo instante em que apagares a fogueira. Mais uma vez te digo: não tentes entrar no castelo para pegar algum de seus tesouros, porque o maior de todos os perigos te aguarda lá dentro e não conseguirás escapar. Assim que sentires que se levantou de ti a maldição, saberás que Alecrim também ficou totalmente livre dela; volta, pois, sem demora.”

Mas embora o prevenisse tão assiduamente, Assetodoro sentia o remorso lhe crescer no coração, porque conhecia bem seu companheiro e sabia que quanto mais insistisse com ele, mais facilmente cederia à curiosidade e à ambição e o desobedeceria. Contudo, sobre a natureza verdadeira do último perigo não lhe falou palavra. Então Antimônio se despediu de Alecrim com um longo beijo e disse ao mago: “Cuida bem dela! É o meu único tesouro!” Este assentiu, com a culpa lhe remoendo as entranhas, porque pretendia cuidar de Alecrim muito melhor do que Antimônio lhe pedira.

Tão logo o aventureiro sumiu de vista, galgando a colina, Assetodoro soprou novamente o seu cachimbo e se formou um círculo de fumaça; dentro dele, era possível vigiar-lhe o progresso. Chamou Alecrim para perto de si e passou-lhe paternalmente o braço sobre os ombros. A moça aconchegou-se, sem malícia consciente... Antimônio chegou até a lagoa e, premido pela sede, já quebrou a primeira instrução, ajoelhando-se para beber; a água começou a agitar-se, mas logo se acalmou e o homem ergueu-se, pensando: “Já vi que nisso o mago se enganou... Só espero que esteja certo nas outras coisas, porque certamente me quero livrar da maldição, antes que ela me consuma...”

Seguiu em frente, com a fome ardendo em seu estômago e encontrou as três árvores cobertas de frutos perfumados e sumarentos; por alguma razão, só conseguiu colher um fruto de cada árvore e, sem pensar, devorou o primeiro e quase engoliu o segundo. E só não comeu o terceiro, porque uma enorme serpente lhe apareceu. Jogou-lhe o fruto, ela o engoliu inteiro e deu-lhe as costas, começando a subir a encosta. “Bem, ao menos nisso o mágico acertou; mas sem os outros frutos, terei de me virar de outro jeito...” Voltou atrás, mas as árvores estavam despidas de frutos; praguejando, retornou até onde a cobra o aguardava impaciente.

Porém quando chegou ao castelo, apesar de todo o fulgor que ainda manifestava, a fogueira nem de longe era uma muralha ígnea intransponível; de fato, embora crepitasse, em parte alguma lhe chegava à altura dos joelhos. Resmungando, começou a pisotear as brasas e o fogo foi se extinguindo, até que se apagou em toda volta!... Imediatamente, sentiu um peso lhe sair dos ombros e compreendeu que a maldição fora quebrada e que, em consequência, também Alecrim estava salva. Chegara o momento de retornar.

Enquanto isso, Assetodoro e Alecrim lhe acompanhavam o progresso, passo a passo refletido no ar dentro do círculo de fumaça. Alecrim então indagou, meio confusa: “Mago, por que a água que bebeu e os frutos que comeu não lhe fizeram mal? Ele desobedeceu quase todas as suas instruções...” O feiticeiro lhe respondeu que o encantamento já se enfraquecera, por ser muito antigo. Quando a fogueira se apagou, ela sentiu um alívio inesperado, uma leveza como não sentia há anos, mas viu que alguma coisa estava errada. De fato, Antimônio pensava nesse momento: “Já noutra coisa o mago se enganou... Foi bem mais fácil do que me parecia...”

E Alecrim novamente indagou: “Bom mago, já se desfez o encantamento! E as instruções que lhe deste não cumpriu!...” “É que o outro mago de há muito já partiu e aqui só restam traços de seu poder. Um embruxamento, como qualquer glamor, está ligado inteiramente à vida de quem o lançou e que consente lhe dar um pouco de seu vigor... Já nem a lembrança desse mago existe, mas deve ter sido muito poderoso para que o encanto perdurasse por milênios... Agora a energia suprida pelo mago já estava no fim... Mas não te iludas, porque ainda existe perigo no pálido esplendor dessas ruínas. Ali dentro o glamor permanece inteiramente, foi preservado pela fogueira que só agora se extinguiu. Mas Antimônio sabe que o encanto foi quebrado e deve voltar imediatamente, sob pena de encontrar perigo até maior....”

Contudo, mesmo finda a maldição que o enchera de tanta maldade, Antimônio já era malicioso desde antes, cheio de ambição e de curiosidade e o fato de ter quebrado as instruções e, mesmo assim, ter alcançado seu objetivo, fez com que duvidasse do reiterado aviso do mago. Sem resistir à tentação, chutou a serpente, com uma leve gargalhada e entrou pelo portão do castelo proibido, que pendia frouxamente dos gonzos. Sentia-se leve e cheio de energia, como não se percebia há décadas. Atravessou a corte do palácio e forçou a porta que dava para o interior; a fechadura enferrujada não resistiu. Antimônio entrou e ficou deslumbrado com a riqueza que encontrou: tapeçarias, jarrões, grossas cadeias de ouro com jóias engastadas pendiam das paredes... Mas com ele, também entrou o ar e abalou a atmosfera velha de milênios. No momento em que tocava em uma peça, mesmo as de metal se desfaziam entre seus dedos.

Logo Antimônio estava de pé, no meio de uma sala vazia, salvo pela poeira e um caco ocasional. Amaldiçoando a sorte, avançou para a segunda sala, com idêntico resultado e foi seguindo em frente, obstinado e sem se convencer. Quanto a outro perigo, nem sequer lembrava e se lembrasse, não acreditava que tivesse podido sobreviver depois de tanto tempo. E assim, arrombou facilmente uma porta de bronze e no interior, deitada em um leito de rosas, jazia uma mulher loura de extrema beleza, vestida de armadura, com um escudo sobre o peito e uma espada desembainhada junto à sua mão direita.

O coração infiel de Antimônio, sem mais aquela esqueceu-se de Alecrim. Avançou até a princesa e beijou-lhe os lábios. E aquilo que esperava, aconteceu: ela abriu os olhos e lhe disse, com calor: “Vieste enfim despertar-me, meu amor! Depois que tanto tempo transcorreu...” Envolveu-o em seus braços e o puxou para um quente e longo beijo... A natureza de Antimônio o dominou nesse ensejo e de tudo o mais que o rodeava se esqueceu...

Mas Alecrim a tudo isso assistia, junto com o mago, pela roda de fumaça! Assetodoro murmurou entre dentes: "Que desgraça! O que eu tanto temia aconteceu...” Então Alecrim desviou os olhos da cena e o encarou fixamente: “Você sabia que isto iria acontecer?” “Minha querida, quantas vezes me ouviu dizer que retornasse imediatamente após quebrar o encantamento? Mas como desrespeitou as outras instruções sem qualquer consequência, ele julgou que a mágica estivesse tão enfraquecida que não representasse mais perigo algum...” Alecrim não o culpou, mas ergueu-se, bem depressa: “Eu vou livrá-lo de mais essa armadilha!” “Não deves ir!... É perigosa a trilha, talvez a serpente ou coisa pior te impeçam a passagem...” Mas Alecrim não lhe deu ouvidos e começou a subir a colina. Assetodoro deu um suspiro de impotência e se dispôs a segui-la.

Porém moveu-se por força da magia: teleportou-se e lhe passou à frente... O círculo de fumaça dissipou-se, mas Assetodoro logo chegou ao castelo e fez um inventário rápido da situação. Acontece que o ladrão não entendia nada do que a princesa lhe dizia e se assustara com o vigor de sua emoção, pensando que o ameaçava, fugindo o mais depressa que podia, com a princesa em seu encalço... Mas Assetodoro conhecia bem a língua antiga e tudo entendia: “Ah, meu amor, quebraste o encantamento! És o guerreiro de valente coração e agora és meu, conforme o juramento!”. Mas Antimônio só queria se escapar e não conseguia abrir a porta de bronze que se fechara de novo; apavorado com a valquíria de armadura fulgurante, finalmente conseguiu torcer a maçaneta e saiu para a antecâmara...

Mas a bela adormecida era mais forte do que ele e estava cheia de vigor, depois de descansar tanto tempo... Logo o envolvia de novo entre os braços: “Mas por que foges de mim, oh doce amor? Já não te demonstrei o meu calor...?” Só que Antimônio nada compreendia... Só queria era escapar daquela guerreira assombrosa, enquanto ela, firme, o perseguia... Mas então, ela correu o olhar ao redor de si pelas salas do castelo e só encontrava pó e fragmentos de caliça... “Mas o que é isso?” sua boca balbuciou. “Este não é o castelo de Roswitha! Para onde foram os pendões e as panóplias, os broquéis e os galhardetes, as alabardas e os francisques pendurados nas paredes...? Aonde estou?” Antimônio aproveitou o seu espanto e se jogou por uma janela, só que caiu mal e quebrou uma perna nas lajes do pátio. Assetodoro foi imediatamente atender ao ferido, por cujo ferimento se julgava responsável.

Mas enquanto resmungava encantos curadores, chegou Alecrim, no exato momento em que a princesa no pátio despontava... As duas se encararam sem qualquer dúvida: seus instintos femininos lhes diziam com toda a acurácia que eram rivais... “Quem é você?” indagou a visitante. E a outra retorquiu: “Eu é que lhe deveria perguntar! Sou a dona do castelo: sou Roswitha! E você, quem é?” “Sou Alecrim,” disse a jovem, que também entendia a língua antiga. “E por que veio interromper o meu idílio? O meu galante cavaleiro acabou de desfazer o meu encanto: eu o seguirei e será o meu auriga...” “Ora, eu vim resgatar o meu marido!” “Mas de quem você está falando?” “De meu Antimônio, com quem você ainda há pouco estava se esfregando...”

Roswitha enfureceu-se: “Não pode ser verdade, mentirosa! Ele chegou até meu leito de rosas, beijou-me a boca e desfez o meu encanto!...” “Eu sei, porque vi,” falou Alecrim, “mas nem por isso pode tirar o meu marido...” “Saiba que sou a herdeira desta fortaleza; um velho mago tentou me seduzir e eu me neguei, com todo o meu ardor; então me amaldiçoou, em sua vileza:

“Irás adormecer, até que venha

o mais bravo de todos os guerreiros,

a enfrentar os perigos derradeiros,

pela coragem que o coração contenha...”

"Adormeci, mas meu amor não veio, nesses milênios de minha longa espera; meu castelo se arruinou, era após era; o mundo inteiro mudou, assim receio... Mas finalmente chegou o meu guerreiro, quebrou o encanto e agora ele é só meu! Pois os perigos fatais ele venceu, esse meu bravo e garboso cavaleiro!..."

Mas Alecrim soltou uma gargalhada: "Meu Antimônio nunca foi um cavaleiro!... É só um ladrão, não é nenhum guerreiro: foi por acaso que foste desencantada... Aqui nos trouxe o mago Assetodoro, mas para quebrar a nossa própria maldição, após fazer feroz recomendação a Antimônio que não entrasse aqui em busca de tesouro... Só que ele o desobedeceu bem depressa e foi por isso que te desencantou... Foi por acaso que teu charme ele quebrou: meu Antimônio não passa de um plebeu!"

Disse Roswitha então, bem lentamente: "Por isso então é que tentou escapar... Até a janela conseguiu pular... Fugiu de mim. Não tem nada de valente... Mas não importa. Eu já esperei demais. Meu castelo se arruinou e está vazio. Nem alimento encontrei e sei que o frio se aproxima bem depressa... Não poderei jamais permanecer aqui, após desperta... Ladrão ou não, ele me conquistou, ainda que pouca bravura tenha demonstrado. Saca tua arma e para a luta põe-te alerta! Uma de nós tão só sobreviverá: ele é só meu e não será de mais ninguém!"

Sacou a espada e Alecrim tirou sua adaga da bainha, mas de que lhe serviria contra a valquíria fortemente armada? O combate logo terminou com o resultado que se poderia esperar. Roswitha era guerreira forte e experiente e rapidamente desarmou Alecrim. "Prepara-te agora, pois, para morrer!" ela falou, com a ponta da espada na garganta da outra, que respondeu, no seu despeito: "Podes matar-me, mas irás te arrepender, porque Antimônio é infiel e desonesto, mentiroso e inconstante e em nada se assemelha a um cavaleiro: é um covarde e o mais medíocre guerreiro; péssima escolha de salvador fizeste!...”

“Já não importa... Lutaste bravamente, com essa tua faquinha de criança, mas eu te derrotei e já chegou tua hora. Eu cortarei tua garganta sem demora e meu salvador será meu eternamente!"

Mas antes que seu golpe desferisse aproximaram-se Antimônio e Assetodoro, que lhe havia explicado toda a situação. Então o ladrão, meio herói, meio covarde, exclamou bem alto: "Princesa, eu te amo! Não quero mais saber dessa mulher: serás o meu amor, perpetuamente!... Não precisas matá-la... É indiferente, depois de ti, um outro amor qualquer..." Nisso tudo ele agia falsamente, para salvar Alecrim e Assetodoro traduzia rapidamente todas as suas frases, acrescentando mesmo alguns floreios... Roswitha foi então baixando a espada e Alecrim soltou um longo suspiro de alívio...

Mas, de repente, Roswitha girou nos calcanhares e exclamou: "Escuta bem, donzela! Estás perdoada!... Mas se este homem tentar fugir contigo, encontrarei e matarei os dois!... Eu não sou tola. Não perdoarei depois, jamais poupei na vida outro inimigo!..." Então o mago igualmente suspirou, tomando firme e amarga decisão, abafando todo o desejo de Alecrim em seu coração, por saber quão inútil era insistir e a Roswitha então se dirigiu: "Bela princesa, não busco teu lamento, mas este homem foi só meu instrumento e minhas falsas instruções ele cumpriu. Quem realmente o encantamento te quebrou fui eu e tão somente pela força da magia. Pensa bem, que um falso beijo não te desencantaria: foi meu ardil que o encanto conquistou. Que não entrasse no castelo, certamente eu lhe recomendei, diversas vezes... Porém conhecia bem a sua leviandade: esse Antimônio não é nenhum valente, apenas homem falso e cobiçoso...Pensando não existir qualquer perigo, por ter desfeito o encantamento antigo, invadiu o teu palácio, na ambição de encontrar tesouros..."

E prosseguiu, com um suspiro fundo: “Mas eu bem lhe conhecia a natureza: tinha certeza de que me desobedeceria e nos teus braços facilmente cairia, mesmo porque é irresistível tua beleza... E desse modo, trairia a Alecrim, que no meu peito muito choraria e devagar consolá-la eu saberia, para a guardar depois só para mim!...” Alecrim não cabia em si de espanto: aquele velho em que tanto ela confiara só os ajudara porque a ela cobiçava...” Sentia-se invadida por uma multidão de emoções conflitantes... Com grande esforço, conseguiu reprimir as lágrimas que lhe assomavam aos olhos...

Mas prosseguiu o mago Assetodoro: "Esse Antimônio só deseja te iludir e na primeira ocasião te trairá, pois Alecrim é seu real tesouro!... Ele só disse o que falou para a salvar: sente por ela amor longo e profundo e não a troca por nada deste mundo... Sou bem sincero ao minha traição te revelar..." Tirou então da túnica a sua lente mágica e deu-a à princesa: "Olha com toda a calma, verás o quanto habita na sua alma, pois esta minha lente desvendas as auras e a verdade interior toda pressente..."

Roswitha só hesitou por um momento; então sua espada finalmente ela guardou e pela lente enfeitiçada contemplou, acreditando no julgamento exato do que lhe mostrava.

Realmente Antimônio era um homem falso e ardiloso, covarde, egoísta e sem qualquer valia... No coração de Alecrim, porém, ainda havia certa pureza de valor belo e formoso...E assim Roswitha logo se convenceu de que aquele homem não lhe tinha serventia, pois nem sequer para Alecrim ele servia: seu coração de pura pena se confrangeu...

Mas então, para surpresa de Assetodoro, ela virou a lente mágica em sua direção e na sua aura não percebeu qualquer desdouro: bem ao contrário, contemplou sua natureza corajosa e até que ponto fora altruísta ao revelar a sua pequena maquinação para salvar a Alecrim e impedir que Antimônio se sacrificasse por ela... ao mesmo tempo em que percebeu que o mago também só desejava o seu bem e agira assim para evitar que ela mesma se magoasse no futuro, ao conviver com aquele poltrão cheio de malícia. E então falou: "Tu és igual a mim. Por não quereres praticar o mal perdeste a glória e a fama do imortal: não há coragem maior do que esta. E reconheço: foste tu que me libertaste; os verdadeiros perigos enfraqueceste; ao mentiroso facilmente convenceste: quis te enganar, mas foi a ele que tu enganaste. Tens coração nobre e orgulhoso: ninguém na Terra teria mais poder, mas se essa glória resolvesses acolher, te corromperias e com ela te tornarias também pecaminoso. Mas tampouco és o mais nobre dos guerreiros, nem sequer o mais valente: embora quebrasses o encantamento, não és o meu heróico resgatador, que por tanto tempo eu aguardei, ai de mim! Mas sei que poderás tratar-me com carinho até que eu possa abrir um novo caminho para mim mesma com a força de meu braço e o gume de minha espada... Não, meu amigo, podes ser tudo na vida, mas em nada és um traidor!"

Então Roswitha devolveu a lente da verdade para Assetodoro e, voltando-se para Alecrim lhe disse: "Guarda teu homem, não mais o quero ter, mas fica certa de que sinto muita lástima por ti, porque sei que muitos sofrimentos ele ainda te causará...” Então o mago disse que bem está o que bem acaba... Quaisquer que fossem os motivos, ambos os encantamentos estavam quebrados... Porém felicidade muitos já lhe haviam pedido e nunca lhes pudera dar. A quantos lha pediram ele dissera que felicidade depende unicamente das escolhas que se faz e da maneira como se encaram seus resultados. “Nossa obra está feita, vamos retornar...”

Então os conduziu Assetodoro até a praia e velejaram os quatro no seu barco, para o destino certeiro como um arco, até chegarem ao velho ancoradouro. Assim que desembarcaram, o mago ergueu os braços e murmurou uma breve cantilena. As velas foram recolhidas e o barco desapareceu sob as águas, novamente os corpos astrais dos velhos marujos iriam descansar no mundo de seus sonhos. Sem mais delongas, Antimônio e Alecrim se despediram, tomando a estrada para seu destino... E disse Assetodoro à linda princesa: "Entendo bem porque não me agradeceram. A esses dois eu libertei da maldição, mas não lhes transformei a natureza: com certeza causarão mal um ao outro, pois já se contemplaram mutuamente os corações e poucos amores conseguem sobreviver a uma intimidade dessas... Mas vem comigo então, bela Roswitha: em minha torre comigo habitarás, até o dia de seguir teu fado pela senda que tu mesma hás de escolher.”

Roswitha apenas revelou certa surpresa, sem demonstrar qualquer sinal de enjoo, ao contemplar aquele estranho voo dos peixes, nas marés da correnteza... Assetodoro a tratou como uma filha querida, conversavam muito, ele lhe mostrava as passagens mais interessantes de seus livros, compararam suas idades e, embora ela parecesse no vigor dos vinte anos e ele aparentasse o que? Oitenta, noventa... cem? Descobriram que ela tinha milhares de anos a mais do que ele. Mas como passara adormecida quase todo esse tempo, ela se sentia com vinte anos ainda, enquanto ele trazia em si todo o peso acumulado pela sabedoria dos séculos... Mais o amargor de seu mais recente desapontamento, por mais que tivesse sabido desde o começo que aquilo que sentira por Alecrim era um amor impossível.

Mas Roswitha era dotada de empatia e de intuição e percebeu perfeitamente o que ele tentava abafar em sua alma... E assim, foi-se afeiçoando, lentamente,ao velho mago de coração magoado que a tratava como à filha mais querida. E decidiu que ficaria do seu lado, enquanto tivesse vitalidade remanescente... Às vezes passeavam pela praia e foram visitar várias vezes o Porto dos Caranguejos. Ela viu que, apesar de pobre, era uma aldeia próspera e feliz e indagou se inimigos não havia... "De vez em quando, algum aparece," lhe disse Assetodoro, “mas até hoje minha magia foi suficiente para espantar a todos de um jeito ou de outro... Só não sei por quanto tempo mais terei poder...”

"Pois doravante, serei sua defensora, enquanto na tua torre me aceitares..." Assetodoro, que já passara por tantos azares, nem sequer cria em tal sorte sedutora: que com ele se quedasse a jovem loura, muito mais bela, afinal, do que Alecrim, de quem finalmente conseguiu esquecer por força desta nova emoção libertadora...

E realmente, nem sei dizer por mais quantos anos os dois moraram na Torre Invertida, que de repente, ao amor dava guarida... Mas todo o mago possui os seus arcanos e Assetodoro cem anos remoçou, nos braços jovens da guerreira antiga, em amor mais longo que qualquer homem consiga, porque no fim, foi ela que o encantou...

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William Lagos
Enviado por William Lagos em 26/07/2011
Código do texto: T3118895
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