TERUEL E OS DUENDES - CAPÍTULO QUARTO

CAPÍTULO QUARTO

Teruel retornou, muitas e muitas vezes, para conversar com os besouros. Nem sempre eles estavam no mesmo lugar, mas locomoviam-se ao longo da orla da arruinada floresta das papoulas. Agora François já se acostumara com ele e o tratava com certa benevolência condescendente, sem lhe cobrar o cogumelo que não chegara a comer. Aos poucos, foi travando amizade com outros besouros e besouras, Henri, Matthieu, Louis, Pierrette, Margopierre... Deixaram-no voar em suas costas verdes e lustrosas diversas outras vezes e, aos poucos, foi formando uma nova noção do mundo. Eles lhe contavam tantas coisas enquanto ruminavam que o jovem duende começou a pôr em dúvida tudo quanto tinha acreditado até então.

O que mais o desconcertava era perceber certos movimentos nas bocas dos insetos que já se acostumara a interpretar como sorrisos, meio de lado, meio incertos, como uma clara indicação de piedade, quando dizia que já estava ficando tarde e estava na hora de voltar para a toca de sua mãe.

Um dia Margopierre, que se sentia meio indisposta, talvez por ter comido alguma coisa indigesta até para uma besoura, lhe falou diretamente:

“Mãe? E desde quando duendes têm mãe?... Vocês brotam uns dos outros, nascem nas costas e se desprendem, bem assim...” – indicou com um movimento das asas que correspondia a um encolher de ombros.

“Eu tenho mãe. Ela se chama Miraflores...”

“Dificilmente, meu pequeno,” disse Pierrette, que mastigava lentamente um talo de trevo e escutara a conversa. “Não existem duendes fêmeas.”

“Ela não é uma duende...” Teruel sentiu um aperto na garganta e a voz lhe saiu meio embargada. “Ela é uma aranha...”

E acrescentou, desafiadoramente:

“Ela é uma aranha loura, a maior, a mais forte e a mais bonita aranha da floresta!”

Os besouros puseram-se a sacudir as asas superiores, sem chegar a abri-las para libertar os élitros, o que para eles correspondiam a soltar gargalhadas.

Então François apiedou-se dele:

“Meu jovem amigo, é melhor você ter uma longa conversa com sua “mãe”. Besouros e aranhas caçadoras não são parentes, embora se respeitem muito uns aos outros; mas nós, os besouros verdes, somos aparentados com os duendes, muito certamente – e, por um dever de parentesco, sou obrigado a lhe dizer que existe um profundo mal-entendido na maneira como você interpreta sua própria história...”

E mais não disse, fazendo um sinal peremptório para que os outros se calassem, porque François era um besouro de coração muito gentil. Teruel sentia a verdade querendo saltar de seu coração para sair garganta afora. E ao perceber as lágrimas que começavam a se juntar nos cantos de seus olhos, lançou um grito de despeito:

“É mentira, ouviu? É mentira! Eu nunca mais quero ver vocês! São um bando de criaturas cruéis, falsas e mentirosas!”

Mas antes de conseguisse correr para muito longe, ainda escutou a voz de François:

“Se algum dia precisar de nós, pode contar conosco! Até podemos não lhe parecer, mas somos parentes chegados e seus amigos sinceros, muito mais do que qualquer aranha!...”

Teruel tapou os ouvidos enquanto corria. Não queria ouvir mais nada. A “cria bastarda”, como o chamara a aranha cinza! Era então isso que ela queria dizer? Que ele não era realmente filho de Miraflores? Que seus pais o tinham abandonado para morrer na floresta e ela o recolhera, que fora nutrido a leite de aranha e era agora um ingrato e um traidor? Que Miraflores... não era sua mãe! Mas por que, então...?

E correu cegamente, os olhos cegos por um filtro de lágrimas, até tropeçar em um grosso tronco marrom e brilhante que jazia atravessado no caminho.

*** *** ***

A queda foi tão forte que Teruel perdeu acordo de si por alguns momentos. Então uma voz rouca, que lembrava o som de pedrinhas se arrastando umas contra as outras, penetrou em sua consciência, trazendo-o de volta para o mundo do som e da claridade.

“Mas, meu jovem, aonde vai com tanta pressa? Por que me bateu desse jeito? Não percebe que estou ferido?”

Teruel sacudiu a cabeça e abriu os olhos, mas logo os fechou de espanto, só para os arregalar novamente no instante seguinte. Ora, que criatura era essa? Uma vespa? Mas nunca vira uma vespa assim, nem quando Miraflores as mostrara a uma distância respeitosa, para que as conhecesse e aprendesse a evitá-las. Claro que as havia de muitas espécies, vermelhas, amarelas, negras, laranjas, rajadas... Mas nenhuma delas tinha esse corpo longo, que mais parecia um tronco, com dois pares gêmeos de asas cintilantes e irisadas e uma cabeça ovalada, mais larga do que alta, com olhos redondos em que brilhava uma luzinha meiga e gentil, muito diferente dos olhos predadores e multifacetados das vespas de cinturas finas e abdomens grossos que vira de longe. Procurou com a vista e, na extremidade do longo corpo marrom e brilhante, não conseguiu divisar qualquer ferrão.

“Então, não me responde? Que foi? Machucou-se na queda, rapazinho?”

“Não sou um rapazinho,” protestou Teruel. “Já sou adulto e sou um duende.”

“Pois então, cumpra o seu papel. Veja, estou com uma asa partida. Que vai fazer?”

Teruel ficou completamente confuso. Aparentemente, o estranho esperava que ele o curasse; provavelmente era o que os outros duendes fariam. Mas ele nunca vira um ser desses antes, nem sabia que espécie de criatura era!

“Meu nome é Hermann, de fato, meu nome completo e Comandante-de-Esquadrilha Hermann Von Libelle e sou um macho de libélula, meu caro. Alguns nos chamam de moscas-dragão, mas fique tranquilo, porque não respiro fogo e não irei queimá-lo. Agora, trate de me ajudar...”

“Mas o que espera que eu faça? Quer dizer, nunca tratei de um dragão antes...” Para dizer a verdade verdadeira, Teruel nunca havia tratado de ninguém, exceto cuidar de seus próprios arranhões e machucaduras ou fazer massagens em Miraflores quando ela se dizia atacada pelo ciático nas patas de trás... Mas dispôs-se bravamente a se lançar à tentativa.

“Veja bem, quebrei minha asa dianteira direita... Topei com uma maldita vespa. Elas não sabem respeitar as leis do tráfego aéreo. Com o céu completamente aberto em toda a nossa volta, essa infratora tinha de voar diretamente sobre mim... É claro que não pretendia me atacar, sou muito maior do que elas e sei me defender... Mas a bandida me passou de raspão, por pura negligência e me quebrou a asa. Mas o que você tem a fazer é simples: arranje alguma coisa que sirva como talas e ataduras e fixe minha asa no lugar. Ela vai sarar sozinha.”

Teruel fez o melhor que pôde, orientado pela libélula, que era bastante precisa em suas instruções, ainda que entremeadas de gemidos de dor. Parecia um tanto envergonhado por não poder contê-los, a dor devia ser muito forte mesmo...

“Melhor, não posso fazer...”

“Vai ter de servir. Agora, se você não se importa, vai me ajudar a sair da trilha. Quer dizer, encontrar um lugar seguro em que eu possa ficar até que me sare a asa...”

“Não posso carregá-lo. Você é muito pesado.”

“Ora, não se avexe com isso, meu amiguinho...” disse Hermann. “Eu tenho seis patas, sabia? Só me ajude a dobrar as asas e caminharemos até um lugar em que não chova nem o sol me torre e em que tampouco eu possa ser atacado por vespas, formigas, cupins ou outros bichos mal-intencionados...”

Com bastante esforço, Teruel ajudou a libélula a encontrar abrigo sob uma rocha inclinada e foi reunindo um monte de pedaços de caules de papoula, galhinhos, painas e folhas semi-apodrecidas, que amontoou cuidadosamente, até ocultar o longo corpo de seu novo amigo. Depois reuniu umas quantas metades de caroços de papoulas que se haviam partido ao estourar para liberar as sementes e as encheu com restos de orvalho e gotas de condensação, colocando-os ao seu alcance. Aí perguntou a Hermann se ele precisava de mais alguma coisa.

“Por hoje não, obrigado, não estou com fome. Mas me prometa que virá me ver todos os dias, renovar minha água e me trazer algumas larvas de mosquito ou mesmo mosquitinhos tenros, recém saídos da casca... ou algumas moscas-das-frutas. Drosophila melanogaster, você sabe...”

Teruel nunca tinha ouvido falar em drosófilas, mas sabia o que eram mosquinhas e mosquitinhos e assumiu o compromisso. De volta a casa, bem mais cedo que de costume, encontrou a porta da toca trancada, uma coisa bastante incomum. Bateu duas, três vezes e, finalmente, apareceu um dos oito olhos azuis e brilhantes de Miraflores.

“Espere um pouco, Teruel, estou ocupada agora. Vá dar um passeio.”

“Mas como?” – quis saber o duende. “Você nunca me fechou a porta antes...”

“Barañano está aqui e precisamos ter uma conversa em particular. Volte daqui a meia hora, por favor...”

E a abertura fechou-se com um som definitivo. Teruel, cujo encontro com o Comandante-de-Esquadrilha o havia distraído, recordou-se subitamente de todas as coisas que o haviam deixado tão confuso anteriormente, sentindo que uma onda de sangue lhe subia à cabeça:

“Pois vou embora, então! Não preciso mesmo de você!...”

E correu de volta, até retornar ao ponto em que deixara Hermann. O Comandante-de-Esquadrilha Von Libelle abriu um de seus olhos magníficos e indagou:

“Por que voltou tão depressa? Só o aguardava amanhã...”

“Achei que ainda podia precisar de ajuda... Ou que estivesse com fome...” – falou Teruel, na falta de coisa melhor para dizer.

“Na verdade, não, até me apareceu uma lesma deliciosa...”

Teruel fez cara de nojo. Já havia provado e sempre se surpreendia com as coisas que as criaturas eram capazes de comer e ainda achar bom. Mas olhou em volta e disse:

“Olhe, lá vem outra, parece até que seguiu o rastro...”

E com a ponta de um pauzinho, tocou a lesma que, teimosamente, voltava ao rastro brilhante de sua predecessora, até que chegou ao alcance de Hermann, que a agarrou entre as patas dianteiras e começou a comê-la, gulosamente...

“Você não mata primeiro?”

Hermann o encarou como se achasse que ele estava louco.

“Matar primeiro, para quê? Só vou comendo aos poucos, ela vai entrar no meu trato digestivo aos bocadinhos... Se estiver morta, o gosto fica diferente... E se eu quiser guardar metade para mais tarde?... Viva, ela não se estraga...”

Teruel acomodou-se meia dúzia de passos mais adiante, sob uma borda da projeção de pedra, encolhido no meio das folhas secas. E logo adormeceu profundamente.

*** *** ***

Em seu sonho, Miraflores se aproximava com uma expressão raivosa em cada um de seus oito olhos. Teruel tentou levantar-se para correr, mas seus membros pareciam de pedra. Depois, percebeu estar enrolado em um casulo de teia. Miraflores e Barañano... Cada um descia por um fio prateado. Teruel tentou escapar deles, mas seu caminho foi barrado pela feia aranha cinza e cada um de seus movimentos só servia para deixá-lo ainda mais enleado na teia. Então Miraflores se aproximou de um lado, Barañano do outro e começaram a devorá-lo aos bocadinhos, sem se darem ao trabalho de matá-lo primeiro. A aranha cinza guinchava que não deixavam nada para ela. Acordou-se com os gritos da aranha e só então percebeu que não era ela que gritava:

“Teruel, Teruel, por favor, me ajude! Estão me comendo vivo!...”

Com os olhos ainda grudentos de sono, Teruel agarrou sua pequena lança de corunilha, que nunca o abandonava e correu para onde estava Hermann, recoberto pelo que parecia uma multidão de lesmas. Sem pensar, começou a cravar-lhes o espinho: elas afrouxavam e caíam no solo, mas sem morrer. Hermann defendia-se como podia, no espaço restrito sob a aba de pedra e com a asa entalada. Aos poucos, conseguiu libertá-lo, não eram tantas assim como primeiro lhe haviam parecido, talvez umas quinze.

Mas as caídas retorciam-se e, tão logo conseguiam equilibrar-se de novo sobre a parte inferior dos corpos negros e pegajosos, avançavam outra vez sobre Hermann, cuja casca quitinosa já mostrava descolorações em diversos lugares. Teruel novamente perfurava e afastava as criaturas com seu espinho. De repente, sentiu uma sensação de queimadura e, ao olhar para baixo, percebeu que uma das lesmas estava subindo por sua perna. Com um grito de dor e de nojo, cravou a lança fundo, viu a linfa esguichar e o animal soltou-se. Deu um suspiro de alívio, mas logo teve um sobressalto. Outras lesmas se aproximavam, seguido o rastro luminoso que as primeiras haviam deixado.

“Cuspa nelas!” – gritou Hermann. “É o único jeito!...”

De fato, agora que estava livre do peso que o recobrira, Hermann começou a lançar jatos de saliva espessa e salgada. As lesmas atingidas imediatamente começavam a se derreter, tentavam se afastar, mas falseavam, caíam de lado e ficam estremecendo até se desmanchar.

“Eu não sou um inseto,” disse Teruel. “Não tenho a mesma saliva que vocês...”

“Como, não é um inseto? Não sabe que os duendes são primos-irmãos dos besouros verdes?”

A revelação atingiu Teruel como um tapa no rosto. Claro que já sabia, eles mesmos lhe haviam dito; contudo, de algum modo, sempre se sentira diferente. Que os besouros descendessem de duendes, era uma coisa... mas que ele próprio fosse um inseto...? Mas diante do perigo, aceitou a ideia instintivamente, sua boca se abriu e um líquido espesso e amargo jorrou em direção à lesma mais próxima. Atingida, ela começou a estremecer, caiu de lado e não o atacou mais.

*** *** ***

A horrenda batalha durou ainda meia-hora. Logo todas as lesmas estavam mortas ou moribundas. Só então Teruel parou, sentindo nojo de si mesmo. O espinho de corunilha pendia agora inútil de seu braço, partido pelo meio. Teruel lançou-o fora.

“Como sabia disso? Que eu também tinha essa saliva?”

“Todos os insetos têm, meu caro. É assim que digerimos nossos alimentos...”

“Mas eu sempre comi de forma diferente! Minha saliva nunca foi assim...”

“Claro que não era, meu jovem amigo. É que você está começando a se transformar em um besouro...”

Teruel experimentou uma emoção tão forte e avassaladora que parecia sacudir-lhe o corpo inteiro. Virar besouro, ele? Mas ele era um duende!...

O Comandante lhe falou com bondade:

“Todos vocês que ficam na floresta acabam mesmo virando besouros verdes, mais cedo ou mais tarde... A aranha Miraflores nunca lhe disse?”

Mais uma traição!... Grossas lágrimas brotaram dos olhos do duendezinho. Falou com timidez, meio tropeçando nas palavras:

“Nin... ninguém nunca... me disse nada! Os bes... besouros até me... me falaram já terem sido... já terem sido duendes! Mas nenhum... mas nenhum disse que... que eu mesmo me poderia virar num!...”

E já com voz mais firme: “Mas eu não quero ser um besouro! Eles são criaturas acomodadas! Só querem saber de comer e de pôr ovos!...

Respirou fundo, pensou um pouco e continuou:

“Mas eu não nasci de um ovo! Miraflores me contou que eu nasci de uma sementinha, dentro de um caroço de papoula! Que ela teve de me cuidar durante semanas, senão as lagartas me devoravam!... Depois, hesitando novamente: “Ela... ela me mentiu nisso também?”

Os grandes olhos irisados de Hermann se fixaram nele, cheios de compreensão:

“Não, meu jovem amigo. Ela não mentiu. Mas todos os duendes que permanecem na floresta por muito tempo acabam por se transformar em besouros verdes. Na verdade, vocês são da mesma espécie... Mas os besouros verdes também podem eclodir de ovos, essa é a única diferença...”

Teruel sentiu que seu corpo todo estremecia. Suas roupas pareciam já enrijecer. Seus braços e pernas já lhe pareciam mais escuros e até julgou distinguir neles sinais das serrilhas que apresentavam nas patas os besouros seus amigos. Seus pés e mãos, por um instante, lhe deram a impressão de se estarem transformando a olhos vistos em patas. Pior ainda, à altura das costelas, começou a sentir um pulsar surdo, como se um broto arredondado estivesse a lhe surgir de cada lado. O terceiro par de patas já estava começando a brotar!? Tateou com as mãos nas costas, à procura de alguma fenda, estar-se-iam já formando asas?

“Não entre em pânico, meu amiguinho, isso só apressa a metamorfose. Sua transformação, quero dizer. Não é uma coisa tão ruim assim... Lembre-se de que os duendes não podem voar, mas você poderá...”

“Mas eu não quero! Não quero! Não quero virar um besouro!...”

“Bem... há uma maneira de evitar isso, segundo penso...

Hermann o contemplou avaliadoramente. Depois falou, pensativo:

“É... acho que não é tarde demais. Você nem começou a metamorfose...”

Teruel examinou-se de novo, horrorizado... Com um suspiro, acalmou-se. Suas mãos e pés ainda eram como sempre tinha sido, não eram patas serrilhadas, não tinham ventosas, não terminavam em garras... Claramente não brotava um novo par de patas de suas costelas, só tinha sido o pulsar de seu coração agitado. De fato, passando de novo as mãos pelas costas, percebeu que a pele não se havia fendido, nem sua casaca verde apresentava a menor descontinuidade. Mas ele não tinha roupas!... Casaco verde-musgo, cinto largo, botas negras, capuz vermelho... Nunca, mas nunca ele os havia tirado, nem sequer para banhar-se!... Faziam parte dele, eram sua casca!... Não se dera conta antes, porque Miraflores era recoberta somente de uma espécie de pelo grosso e sempre se referira à sua indumentária como sendo roupas, igual que nas histórias que lhe contava... Mas um dia, muito em breve...

“Faço qualquer coisa.”

“Calma, amiguinho, não é nada de tão difícil assim... Você só precisa ir procurar a sua gente. Ir para uma das Colônias, quer dizer...”

“Para os duendes? Ir para onde eles moram...?”

“Sim, do outro lado do rio. Eles sabem como evitar essa sua transformação. Tenho certeza de que o ajudarão. Ainda mais que a colheita deste ano rendeu tão pouco...”

“Bem, então adeus!...”

Teruel já fazia menção de afastar-se.

“Espere aí!... Como pretende chegar até lá? Sabe como atravessar o rio? Sabe como enfrentar os perigos da viagem?”

“Mas eu tenho de ir! Antes que me transforme!...”

“Você ainda tem muito tempo. Não sou especialista, mas de acordo com meus conhecimentos de entomologia... O estudo dos insetos, você sabe... Pelos meus cálculos, acho que tem ainda umas seis semanas, dois meses, por aí... Assim que minha asa sarar eu o levo até lá...”

“Mas François me mostrou onde fica... A Colônia mais próxima, quer dizer. Só falou que não atravessava o rio, porque era território dos besouros de chifre... E ainda falou alguma coisa sobre um Castelo... Deu a entender que era um lugar muito perigoso...”

“E é mesmo. É lá que moram as vespas. Mas não se preocupe, você vai comigo. Mas agora precisamos de encontrar outro lugar mais seguro, porque lá vem mais uma dessas lesmas...”

Com efeito, outra das criaturas negras se aproximava lentamente pela trilha gosmenta e brilhante deixada pelas companheiras. Vinha devagar, sem pressa, mas com plena segurança...

“Ela não vai nos atacar sozinha... Posso até comê-la, são deliciosas... Mas tenho certeza de que muitas outras virão a seguir. Vamos, me ajude!...”

Teruel decidiu-se. Ainda tremendo de horror, mas controlando o medo e o nojo, ajudou o Comandante a sair dali. Primeiro teve de espalhar de novo a cobertura de folhas secas que havia amontoado com tanto trabalho, porque Hermann não queria ou não podia passar pela abertura da frente, onde ainda havia restos de lesmas a se desmancharem.

“Quando elas se derretem assim, a carne delas vira em um líquido venenoso para as libélulas, meu amiguinho... A esta altura, acho que já vai ser perigoso para mim, pode me corroer as patas...”

O duendezinho ajudou o Comandante ferido a atravessar os renques de hastes de papoula destroçadas, até que descobriu uma cova que lhe pareceu abandonada e grande o bastante para o companheiro. Quebrou uma das hastes mais longas e a enfiou o mais fundo que pôde, sondando em volta. Depois entrou e confirmou que nenhuma criatura se encontrava lá e que não havia qualquer passagem que conduzisse a algum outro buraco. Verificou a seguir que lá dentro era largo e espaçoso, somente a entrada era apertada e estreita, por motivos bastante compreensíveis. Hermann entrou com uma certa dificuldade, mas lá dentro conseguiu dar a volta sem muito esforço, ficando com a cabeça voltada para a saída.

“Você nunca chegará às Colônias sozinho. É longe demais. Espere até que minha asa sare e eu o levarei.”

“Mas quanto tempo isso vai levar?”

“Muito menos que você levaria para chegar até o rio, que dirá para descobrir um meio de atravessá-lo... Você acha que é mais perto, porque foi até lá nas costas de François ou de algum outro besouro, mas do alto as coisas vão ficando cada vez mais pequenas... É uma questão de perspectiva, quer dizer, do seu ponto de vista, entende? Tudo parece menor e mais perto...”

“E se eu pedisse...?”

“A esta altura? Mas nem pense... Nenhum dos besouros vai ajudá-lo a atravessar o rio, têm muito medo dos besouros de chifre, que são de fato escaravelhos e muito ferozes e famintos... E nem ao menos o levarão até a margem de cá, porque já estão contando com a sua transformação para se transformar em um deles. Garanto que as fêmeas até o estão avaliando como um possível parceiro... Sangue novo, você sabe...”

O rapazinho se recordou então de alguns olhares maliciosos trocados entre Pierrette e Margopierre, que não tinha conseguido interpretar até então.

“Mas eles são meus amigos...” disse, timidamente.

“É claro que são. Mas vão negar-se a levá-lo para longe, justamente para sua proteção, não vão querer que se transforme sozinho, sem poderem ajudá-lo a atravessar a fase mais perigosa. Chega um ponto em que você mal consegue se mover e fica à mercê de qualquer predador, lesmas, formigas, louva-a-deuses... como o seu amigo Frei Custódio...”

“Mas como é que você sabe disso? E minha mãe? Eu nunca lhe disse que o nome dela era Miraflores!...”

“Eu já não me apresentei desde o começo como o Comandante-de-Esquadrilha Hermann Von Libelle? Nós, libélulas, patrulhamos os céus, como os duendes adultos patrulham o solo. Muito pouca coisa escapa a nosso conhecimento. Agora, permaneça comigo, é a sua melhor chance. Dentro de uma semana, dez dias, no máximo, minha asa estará restaurada e poderemos voar até a Colônia.”

Hermann começou a esfregar as patas, delicadamente. Teruel escutou uma espécie de cricrilar, não invasivo como o dos grilos, nem estridente como o das cigarras, mas um som muito mais musical e tranquilizador, quase um acalanto...

O ruído acalmou Teruel, que logo começou a sentir uma profunda sonolência... Enrodilhou-se em um canto da cova e adormeceu profundamente. Desta vez, não teve nenhum pesadelo ou, se os teve, não foram assustadores o bastante para acordá-lo e, ao despertar, não guardava a menor lembrança deles.

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William Lagos
Enviado por William Lagos em 03/08/2011
Código do texto: T3136241
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