TERUEL E OS DUENDES - CAPÍTULO QUINTO

CAPÍTULO QUINTO

No dia seguinte, Hermann parecia muito abatido. O próprio Teruel sentia dores por todo o corpo e uma feia queimadura se alastrava pelo lugar por onde subira a lesma. Parecia que a natureza queria impor-lhe à força a noção de que realmente não usava roupas, mas que sua indumentária era sua própria pele, mais uma impressão errônea a que fora induzido por Miraflores. A sua “bota” negra e seus “calções” verdes apresentavam uma descoloração acinzentada até o ponto em que a lesma deixara o seu líquido viscoso e brilhante como sinal de sua passagem.

“Você deve passar orvalho de açucena, logo ficará bom.”

“Tem certeza?”

Hermann moveu a cabeça oval em assentimento, sem dizer mais nada e Teruel se preparou para sair. Enquanto removia os pedregulhos que usara para obstruir a entrada, como Miraflores lhe ensinara, Hermann falou de novo:

“Preciso de água e comida, Teruel. Pode trazer-me uma das lesmas, se encontrar um pedaço grande o bastante. Elas estão mortas agora e não precisa se preocupar que eu as devore vivas...”

“Lesmas? Mas como pode? Depois de tudo...”

“Ora, elas em geral são inofensivas. Somente tivemos a má sorte de nos interpor no caminho habitual delas. Aqueles rastros que elas deixam servem para atrair e orientar as outras para seguirem a mesma senda. No princípio, eu até gostei, comi várias, mas aí começaram a chegar mais do que eu podia dar conta. Elas subiram por cima de mim e iam acabar fazendo comigo o mesmo que eu tinha feito com as anteriores...”

“Mas como pode então dizer que são inofensivas?”

“Ah, mas elas são, meu querido. Só querem alimentar-se, como eu e você, mas no fundo, não têm má intenção...”

Teruel sacudiu a cabeça, meio espantado, e saiu da cova para a luz do dia de outono. Os raios do sol se filtravam por entre as hastes de grama. Havia poças de orvalho acumulado no solo e o ar tinha um sabor de brisa em sua língua e um frescor em seus pulmões. Teruel seguiu em busca do renque de açucenas que sabia crescerem à orla da floresta...

“Ah, então é aí que você está!...”

Barañano!

Teruel sentiu o coração disparar e, instintivamente, tentou erguer a lança que não trazia mais... Sua mão vazia ergueu-se em um gesto inútil.

“Vamos logo, sua mãe está esperando. Essa é a última que me faz!”

Miraflores, esperando? As palavras ressoaram na mente de Teruel. Miraflores queria devorá-lo! Em pânico, girou nos calcanhares, somente para dar de cara com uma enorme aranha marrom, quase tão grande quanto Barañano. Atrás dela vinham outras duas, uma loura como Miraflores, só que de uma tonalidade um pouco mais escura e a outra avermelhada, com sinistras raias cinzentas cruzando o pelo. Atirou-se por entre as raízes do capim, correndo desesperado, até sentir uma pata peluda enroscar-se em sua perna machucada. Caiu de borco, desamparadamente, cercado logo pelas rápidas aranhas. A voz de Barañano soou zombeteira:

“Então acha que conseguiria fugir de nós? Não sabe que somos caçadores? E os mais rápidos da tribo?...”

Teruel foi agarrado pelo grupo de machos. Não sentia nojo, estava acostumado com o toque e o odor de Miraflores dentro da cova em que morara tanto tempo, embora o cheiro dos machos fosse mais forte e seus pelos bem mais ásperos.

“Vamos, rapazinho, deixe de besteiras. Miraflores passou a noite em claro, nem ao menos quis comer...”

“Ela vai me devorar!”

As aranhas machos ficaram tão surpreendidas com o que ele gritara que até afrouxaram as patas que seguravam Teruel. Este se aproveitou do descuido e tentou correr de novo, mas de um salto, Barañano já estava em cima dele.

“Não faça isso, ouviu? Nunca mais faça isso!”

“Mas eu não quero ser devorado!”

“Você não vai ser devorado... pelo menos, não por Miraflores. De onde tirou essa ideia maluca? Mas não fuja assim de nós! Não vê que o nosso instinto é o de capturar a presa? Por um tris que não lhe dei uma picada quando lhe caí em cima!... Agora vamos, suba em minhas costas, que você é muito lerdo...”

Teruel obedeceu, um tanto assombrado. Mas logo se sentiu bem. Era cômodo e confortável. Acomodou-se melhor nas costas macias de Barañano, embora recobertas por um emaranhado de fios ásperos e negros.

“Estes são meus companheiros de caçada, passamos a noite toda atrás de você,” resmungou a aranha macho. “Quando vimos aquelas lesmas meio desmanchadas, até pensamos que tivesse sido mesmo devorado. Especialmente depois que reconheci os pedaços daquele ferrão falso que você usava...”

Teruel não respondeu. Sentia-se encabulado, seu rosto vermelho de vergonha. Ao mesmo tempo, não conseguia controlar outras emoções conflitantes em seu coração. Que iria acontecer com Hermann, se ele não retornasse para ajudá-lo? Mas como poderia falar sobre a libélula ferida àquelas aranhas? Provavelmente, iriam devorá-lo sem o menor remorso, fraco como estava. Sentiu uma dor surda latejando através da parte de sua perna que tinha sido queimada pela lesma. E ainda tinha de levar-lhe o suco de açucena!...

“Apresento-lhe meus amigos,” disse Barañano tranquilamente. “Esse louro aí é irmão de Miraflores, chama-se Alberdaña. O marrom é o Aristégui e o ruivo atende pelo nome de Aristimuña... quando atende.”

Os três machos da escolta sacudiram os pelos cordialmente, mostrando expressões divertidas em seus vinte e quatro olhos de variadas cores. Mais uma vez, Teruel sentiu a vergonha crescer em seu peito, subir ao rosto e lhe dar um nó na garganta.

“Quer dizer que não caçaram? A noite toda, quer dizer...? Por minha causa?”

“A bem dizer, não. Mas para falar a verdade, quando encontramos o que sobrou daquelas lesmas, por que iríamos deixar para as formigas?”

“Fizemos um banquete, amiguinho!” disse Aristégui, sua voz sibilando para demonstrar o seu contentamento.

“Deve ter sido um combate e tanto...” comentou Alberdaña.

“Mas como se deixou surpreender? quis saber Aristimuña. “Um duende esperto como você... Foi um descuido muito grande!”

“Não fui eu, foi Hermann...” Pronto, tinha saído! Em sua ingenuidade, traíra seu novo amigo. “Quero dizer... as lesmas... eu estava dormindo e...”

Barañano estacou no mesmo instante.

“Quem é Hermann?” indagou, autoritário, em um tom de voz que não dava margem a recusas. Teruel percebeu que não havia mais volta. De um jeito ou de outro, acabaria confessando o segredo. Ainda tentou recalcitrar, mas finalmente admitiu quem era Hermann.

“Mas ele é meu amigo! Eu não vou dizer onde ele está! Nunca, nunca, ouviram?”

“Nem é preciso...” Aristimuña deu rapidamente uma volta sobre suas patas traseiras, seguido de perto por Aristégui. Alberdaña, no entanto, permaneceu a seu lado, provavelmente para ajudar Barañano, caso ele tentasse fugir de novo.

“Não façam isso!” suplicou Teruel. “Ele está ferido, não podem devorá-lo!...”

Barañano falou por entre os palpos, meio de lado, dirigindo-se a Alberdaña, como se Teruel não estivesse presente:

“Mas que ideia essa criatura faz de nós! Primeiro, acreditava que sua própria mãe o fosse devorar, depois que nós comemos tudo o que aparece...”

“Mas comem, sim! Eu mesmo cansei de ver Miraflores caçando! E quantos insetos e vermezinhos eu mesmo lhe trouxe...” Alguns ainda vivos, lembrou-se, mas Miraflores sempre dava conta deles com uma rápida picada, antes de começar a refeição.

“Aranhas não comem libélulas. São nossas aliadas contra as vespas.”

“E depois, são grandes demais... E muito duras!...” riu-se Alberdaña.

Logo Aristimuña voltou:

“Encontramos,” disse. “Foi fácil seguir o rastro deste aqui... É Hermann mesmo e está muito ferido. Além da asa quebrada, parece que um exército de lesmas passou por cima dele...”

“Ele me pediu que lhe levasse orvalho da corola das açucenas,” disse Teruel. “Era isso que eu estava procurando...”

“Isso é bom. Melhor mesmo, é própolis... Ou então, folha de nenúfar... Mas por aqui, só temos açucenas. As vespas correram as abelhas de toda esta área, portanto, necas de própolis... E os nenúfares só crescem em lagoas, por aqui só temos o rio, que é caudaloso demais para formar remansos. Aliás, estou vendo que você também precisa de um curativo. Você pode providenciar, Alberdaña?”

“Você não vai mais fugir, vai, menino?”

Teruel assentiu com a cabeça. Um brilho correu pelos olhos esverdeados do gigantesco Barañano.

“Agora, vamos correr. Miraflores está tendo um chilique atrás do outro. Não podemos deixar a garota esperar mais...

*** *** ***

No momento em que chegaram em frente à toca de Miraflores, um novelo dourado se desenrolou e ela se lançou sobre eles, arrancou Teruel de cima de Barañano e envolveu-o violentamente entre as patas. Por um momento, os temores do duendezinho retornaram, quando viu os palpos da aranha se aproximarem de seu rosto. Mas eram só beijos e abraços... Só que, no instante seguinte, ela o jogou no chão, batendo-lhe vezes sem conta com as patas dianteiras... mas com pouca força, sem machucar de verdade.

“Nunca mais me faça isso, ouviu! Não faça, menino malvado!”

“Calma, calma,” disse Barañano, depois que se haviam passado uns poucos instantes e muitas lambadas. “Ele já está machucado, não viu?”

“Machucado? Como, machucado? O que foi que vocês fizeram com o meu menino? Vocês judiaram dele! Barañano, se vocês judiaram do meu menino, juro pelas borboletas...”

“Deixe as borboletas de fora disso, Miraflores! Não precisa blasfemar!... Foram as lesmas...”

“Lesmas? Você deixou que lesmas pegassem o meu Teruel? Ah, Barañano, você vai me pagar por isso! E eu que confiei tanto... Mas por que não tratou dele ainda?”

E no mesmo instante, começou a esguichar teia sobre a perna ferida de Teruel.

“Pobrezinho! Está doendo muito, não é? Não se preocupe, mamãe vai te curar...”

E para Barañano:

“Vá buscar logo um remédio!...”

“Alberdaña já foi procurar suco de açucena...”

“E o que está esperando, vagabundo? Vá logo atrás dele, ver por que está demorando tanto!...”

Os olhos de Barañano ficaram muito escuros. Então, girou nos calcanhares das patas traseiras e saiu bem depressa, resmungando:

“Ah, mulheres, mulheres! Nunca que eu vou começar a entendê-las!...”

*** *** ***

Teruel teve febre novamente. Fauces de aranha, lesmas pegajosas, asas cortantes de libélulas, tudo o perseguia sem cessar. Via-se voando sobre os prados, como o fizera nas costas de François. Depois, brotavam patas de seu corpo, dezenas delas, tinha-se transformado em centopéia!... E lagartas, lagartas que eram lesmas e moravam em teias, lagartas cinzentas mostrando sorrisos maus e gritando: “Bastardo! Bastardo! Besouro! Besouro!” Nos intervalos, via rapidamente as patas de Miraflores limpando-lhe delicadamente o rosto coberto de suor com um lencinho de teia ou com o próprio pelo dourado.

Quando finalmente acordou, sua perna repuxava, recoberta de uma pele nova cor-de-rosa. Mas seu primeiro pensamento foi para o amigo:

“Hermann! Hermann! Como ele está?”

Miraflores pareceu aborrecida e aliviada ao mesmo tempo.

“Finalmente, filhinho!... Está bem agora?”

“Estou... mãe.” A palavra soava agora estranha em seus lábios. Tantas vezes a dissera e com tanto sentimento... Mas agora as interrogações ardiam em sua garganta.

“Como está Hermann?”

“Vai bem. E eu também estou bem, se é que lhe interessa. E Barañano e seus amigos, que o salvaram, estão todos muito bem.”

“Ora, eu só...”

“Você só queria saber se Sua Majestade estava bem. Pois está e não foi graças a você!. Barañano, Alberdaña, Aristimuña, Aristégui e vários outros passaram os últimos dias tratando dele com a melhor teia e o melhor suco de açucena. Deram um jeito até de conseguir própolis e pétalas de nenúfar! Ainda bem que se lembraram de trazer um pouquinho para você também, quase nada!... Se você se curou, foi por minha causa, que passei em claro todas essas noites, pingando meu leite na sua boca, gotinha por gotinha!... E agora, em vez de me agradecer, fica aí, indagando sobre um estranho!...”

“Mas mãe, eu só disse...”

“Sei muito bem o que você disse. Já disse até demais! Pois está muito bem, não se preocupe, foi alimentado a gusanos e falenas... Já está curado, daqui a dois dias vai voar. Só não voou ainda, porque Morales não deixou...”

“Quem é Morales?”

“Dón Morales, para você. É o nosso médico, mas você não o conhece. É a aranha mais velha destas matas. Sempre que alguém está doente ou muito ferido, recorre a ele,” disse Miraflores, com um sorriso de despeito e de malícia. “Pois o seu amigo já está pronto para outra... Mas aposto que as cicatrizes vão ficar para sempre!...” E ajuntou com orgulho: “Mas não em você, filho. Agora durma de novo, que a mamãe vai ficar velando por você...”

Teruel estava mesmo com sono. Logo adormeceu outra vez e, quando se acordou, mais dois dias se haviam passado. Já estava a ponto de indagar do amigo, mas desta vez, pensou melhor:

“Como a senhora está, mamãe?”

“Ah, ainda bem que se acordou. Seu amigo está lá fora e quer te ver. Só que ele não cabe aqui dentro... Acha que pode...?”

Seu amigo? Então, Hermann... Teruel conseguiu erguer-se do casulo, mas seus joelhos se afrouxaram e cambaleou. Miraflores amparou-o:

“Vamos, suba nas minhas costas... Você só tem duas pernas, pobrezinho!... Mas como você cresceu! Pelas borboletas, já parece um duende adulto!...”

Agarrando-se firmemente aos pelos dourados e sedosos, Teruel sentou-se às costas de Miraflores, que o levou para a claridade e o que o aguardava lá fora. Piscando os olhos, Teruel pensou estar sendo cercado por uma multidão, mas logo viu que era um grupo bem mais reduzido, Barañano, Alberdaña, Aristimuña, Aristégui, mais meia dúzia de outras aranhas, algumas delas fêmeas... Mas o que ocupava o centro da cena era o corpo enorme de Hermann, a libélula, com as longas asas irisadas preenchendo quase toda a clareira e a ponta do longo corpo furta-cor perdendo-se por entre as raízes do capim. A seu lado, uma aranha desconhecida, com sete pernas somente, tufos do pelo acinzentado faltando em várias partes do corpo...

“Ah, meu amigo!...” disse Hermann, afetuosamente. “Vim para me despedir!...”

“Hermann!” – fez Teruel. “As suas asas...”

“Ah, estão como novas! Vou retornar para a esquadrilha, estão pairando lá em cima, está vendo?” – falou, apontando para o céu. “De fato, já poderia ter voado há dois dias, mas o Dr. Dón Morales aqui... Não me deixou... E depois, estava preocupado com você... Mas parece estar muito bem...”

A aranha velha murmurou ao ouvido do aviador. Ele sacudiu a cabeça ovalada e fez vibrar as asas.

“Tem toda a razão, Dón Morales. Ele ainda está fraco...”

Adiantando-se, roçou as antenas sobre a cabeça de Teruel.

“Devo-lhe a vida, amiguinho... Se precisar... quando precisar... qualquer coisa que precisar... eu farei por você. Qualquer libélula o ajudará sempre que precisar. Mas agora, tenho de partir. Que as borboletas o protejam!...”

Falando assim, vibrou ainda mais as asas cintilantes, alçando voo num esplendor de glória. As lágrimas brotaram dos olhos de Teruel. A custo conseguiu acenar para a maravilhosa criatura alada, que se afastou aos poucos, diminuindo com a distância, indo juntar-se à esquadrilha de outras criaturas irisadas que o aguardavam As lágrimas correram, toldaram-lhe a vista e tudo o mais se apagou novamente.

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William Lagos
Enviado por William Lagos em 08/08/2011
Código do texto: T3146384
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