O Murundu e o Jegue

Sol a pino.No alto do murundu, o jegue triste mirava a paisagem amarelada, castigada pela seca.Seus olhos piscavam vez ou outra, também ressecados.Sacudia o rabo para afastar as moscas que insistiam em pousar no seu pêlo ralo.Malditos insetos!Não o deixavam em paz.

No pasto extenso, porém esturricado, algumas vacas levantavam a cabeça e o olhavam.O que elas queriam,pensava ele.Já não bastava serem privilegiadas?Ora ou outra,mugiam orquestrando uma sinistra sinfonia.Suas irmãs respondiam mais longe ao apelo solicitado através de mugidos.Assim, o dueto se formava.

Depenadas, as árvores também ouviam a cantilena.Elas não podiam emitir sons para todos mas,quando o vento soprava mesmo fracamente, elas balançavam seus galhos esqueléticos, denotando conivência àquele ato de protesto.

Por que ninguém se importava com elas?Estavam desnudas mas ainda viviam.A seiva armazenada em suas raízes fazia que elas sobrevivessem.Reconheciam que estavam feias.Estranha-

mente feias.

O campo era vasto e nele ainda restavam árvores verdes que sacudiam, elegantemente, suas abastadas copas fazendo inveja a suas irmãs depenadas.

O amigo jegue a tudo assistia.À sua frente,restava um poço de água barrenta e cheia de lodo que mitigava sua sede.O jegue, depois de lançar um olhar triste ao redor,

piscou seus olhos agora remelentos,assediados pelas miserá-

veis e importunas moscas.Desceu do murundu, bebeu água e aproximou-se da sombra das árvores majestosas.

-O que você quer?-perguntou uma das árvores.

-Um pouco de sombra,posso?-respondeu o jegue,também perguntando.

-Só se você pagar o estacionamento.Não temos sombra de graça.

-Que absurdo!-disse o jegue.-Pois no meu murundu vai lá quem quer e não cobro nada.

-Pois volte para seu murundu.Ninguém chamou você aqui.

-Além disso, não tenho dinheiro e nem vocês- continuou o jegue.-Para que precisamos de dinheiro?Não podemos comprar nada dos homens.

-Engraçado!-disse outra árvore, intrometendo-se na conversa.-Não podemos comprar nada dos homens mas eles nos vendem.A nós, nossa madeira.A você, você próprio.

-É verdade!-concordou o jegue.-Vejam vocês,estou aqui neste campo, sozinho.Não há ninguém da minha raça.Meus pais estavam velhos e morreram.Meus irmãos foram vendidos para frigoríficos, assim ouvi da boca dos homens.Minha estória é diferente da vida de José e seus irmãos,contada na Bíblia,porque os irmãos o venderam e meus irmãos é que foram vendidos.

-Ih, como ele é sabido!- ironizou uma das árvores.-Fala até de história da Bíblia!

-E ele é da família dos burros!-ironizou a outra árvore.

-Vocês são cheias de preconceitos e muito vaidosas.Isso é balela dizer que burro é burro.Só nas características da raça mas a inteligência funciona como nos outros animais.Aliás, nem sei como vocês falam.Onde encontraram inteligência para pensar?

-Ora, ora, ele é da raça dos burros e quer filosofar?

Iniciou-se, então, terrível discussão.As árvores balançavam fortemente seus galhos em sinal de irritação e o jegue urrou bem alto.

-O que está acontecendo ali?-perguntou uma das vacas que tentava se alimentar no pasto ralo.

-É claro que estão discutindo pra valewr!- falou outra companheira-vaca.

- Por que será?

-Vamos lá e saberemos.

Sairam as duas acompanhadas por seus bezerros magros que tentavam caminhar pendurados nas tetas das respectivas mães.A vaca maior quis demonstrar sua autoridade mugindo com força.

O jegue espantou-se.Só não disparou em carreira porque não era de levar desaforo pra casa.Encarou a vaca autoritária e levantou as orelhas:

-O que você quer aqui, sua intrometida?Não basta ser privilegiada pastando o dia inteiro enquanto eu passo fome?

-Cuidado, jumento.Inveja é coisa feia!

-Não gosto que me chamem de jumento.Cheira a pouco caso.

-E como quer que eu o chame?

-De jegue.

-Pois jegue e jumento não são a mesma coisa?

-Para mim, não.

-Por quê?

-Jegue é mais carinhoso.

-Está bem, jegue.Não vim aqui para brigar e sim para apaziguar.

-Não sabia que a senhora era juíza!-falou uma das árvores.

-Pois sou e minha companheira é advogada de defesa.

-Ah, engraçado!-disse a outra árvore.-Aqui agora é um tribunal.-Riu com sarcasmo.

-Pessoal!-falou a vaca-juíza.-Vamos resolver essa pendenga sem causar escândalo.

-Concordo-falou a vaca-advogada de defesa.

-Tem um problema.Não iremos pagar os honorários de ninguém!-disseram as árvores, de uma só vez.

-Ah,ah, zurrou o jegue.Vocês árvores gostam de falar em cobrar, pagar, como se tivessem dinheiro.Essa é muito boa!

-Está nos anarquisando?-perguntaram, em coro, as duas árvores frondosas.

-Não recomecem, por favor.-Era a voz da vaca-juíza.

-Vamos dar por encerrada essa discussão- complementou a vaca-advogada de defesa.-Cada qual cale a boca e o jegue deve voltar para seu murundu.

-Antes disso, é preciso que façam as pazes.Afinal, todos nós somos parte dos reinos da natureza.Precisamos nos unir.Quanto mais nos unirmos o bicho-homem terá mnos oportunidade de nos depredar, apesar de, para nós da classe das árvores, não restar alternativas pois preferem nossa carne para churrasco- foi o que disse a vaca-juíza.

-Vamos, vamos!-gritou a vaca- advogada de defesa.Vamos dar as mãos, isto é,as patas e dançarmos em torno dessas belas árvores- e virando-se para as árvores frondosas- e vocês torçam para que venha a ch8uva molhar a terra, crescer o pasto e dar às suas companheiras desfolhadas folhas tão belas quanto as de vocês.

Então o jegue, as vacas e os bezerrinhos deram-se as patas e dançaram, alegremente, em torno das belas árvores, que sorriam arrependiadas de seus gestos de grosseria.

Só depois é que o jegue voltou mais feliz para seu murundu e ficou a esperar a chuva cair.

Nadir de Andrade
Enviado por Nadir de Andrade em 11/12/2006
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