Uma flor no sapato

Revirando o meu baú, encontrei uma das fotos que tirei com o senhor Nestor, numa estação de trem, lá no Leste Europeu. Foi a primeira pessoa com quem fiz amizade por aquelas terras. Apesar de ser um ancião, prestes a completar os seus 80 anos de vida, o chamavam de o 'Bom Rapaz', devido ao seu jeito brincalhão de ser. Muito conhecido por suas falácias, vivia dizendo, por aí afora, que a mulher já havia sido a flor mais graciosa que brotara na face da Terra.

Contava ele que, durante a sua juventude, tivera vários empregos. Porém, um deles lhe marcou bastante; foi quando trabalhou para um rei chamado Rachid, que era um homem tão fascinado por botânica, a ponto de ter mandado demolir parte do seu palácio para construir um grandioso jardim. Por conta disso, foi contratado, às pressas, o jardineiro mais experiente da região - o senhor Nestor.

O rei Rachid, muito exigente, testou a habilidade daquele serviçal por quatro semanas e concluiu que fizera a escolha certa. A sua variedade de plantas era tão grande, que o rei conseguia produzir os melhores florais que se tinha conhecimento. Isso lhe era motivo de muito orgulho.

Para tristeza do monarca, após dois anos, ele começou a notar que algumas espécies, coincidentemente as mais exóticas, estavam contaminadas por fungos, e outras totalmente dizimadas. Ordenou ele, de imediato, a presença do jardineiro para explicar o porquê daquele infortúnio com suas plantas tão preciosas. E, não demorou mais de dez minutos para que o seu súdito, um homem robusto, sorridente, modelado por fortes músculos, se tornasse uma figura apática e sem vida. Cabisbaixo, quase afônico, o jardineiro começou a responder aos questionamentos do rei, assim:

“Majestade, eu vos peço perdão, pois antes eu não fazia sapatos”. E, em prantos, com as mãos cobrindo-lhe o rosto, se retirou, deixando o rei altamente perplexo, diante daquela resposta descontextualizada.

O rei Rachid, considerado homem de bom senso, que ao longo do seu reinado ganhara a simpatia do seu povo pelo seu jeito prudente de ser, achou por bem suspender o interrogatório e continuar aquela conversa em outro momento. Embora muito preocupado, prosseguiu com a sua rotina palaciana.

No dia seguinte, o jardineiro chegou mais cedo e ficou aguardando, ansioso, a ordem superior para que pudesse finalizar o assunto e conseguisse se explicar melhor diante de sua majestade. A hora não demorou a chegar e lá estava ele, novamente, defronte ao rei, o qual já o olhava esboçando desencanto. Diante de tal amargura, não havia mais como recuar. Assim, o jardineiro buscou forças e com audácia lhe disse:

- Majestade, o que tenho a vos dizer é que eu via em cada flor, a beleza da minha mulher. Só que no dia que eu passei a fazer sapatos, tudo mudou. Ela, encantada com aquela maravilha, nunca mais colocou os pés na terra. Daí, percebi que houve um afastamento. - Como assim? - perguntou o rei, já irritado. - É que ela ficou tão envaidecida sobre aqueles saltos, que nem conseguia enxergar os espinhos. - Explicou o súdito.

O rei continuava sem nada entender. E, mantendo a cautela, pediu-lhe maiores explicações. –Pois bem, - disse-lhe o jardineiro compassivamente: - todos as manhãs, antes de eu vir para o palácio, eu ia até a fonte para me banhar. Pelo caminho, eu via as pegadas que a minha mulher deixava no dia anterior. E, para que ninguém pisasse o seu rastro, eu recolhia, diariamente, aquela terra e carregava sobre os meus ombros. Além do mais, o desenho dos belos dedos da minha mulher, me fazia lembrar as pétalas daquelas flores que eu cuidava com tanto carinho. E era com aquela terra que eu adubava vossas plantas, majestade! - E pôs-se em prantos, novamente. O rei, já furioso, lhe fez outra pergunta:

- Por que, então, não continuou a adubar as plantas com aquela terra?

- Porque eu não conseguia mais saber de quem era o rastro, majestade! – respondeu-lhe com muita dificuldade, o súdito.

O rei, comovido com aquelas lágrimas, levantou e disse-lhe: “A partir de hoje, tu não farás mais um sapato, sequer! Não terás outra atividade além de jardineiro. Entendido?” E acrescentou: “tu serás, para toda a eternidade, jardineiro. Custe-me o que custar!” Após estas palavras, o dispensou com uma condição: só aparecer no palácio acompanhado de sua mulher. Ordem aquela, que foi, na íntegra, cumprida.

Na manhã seguinte, assim que o súdito adentrou o portão principal do jardim com a sua esposa Ruth, o rei que estava sentado, recebendo os primeiros raios de sol, levantou-se, lentamente, apertou o polegar esquerdo contra o queixo e, franzindo o cenho, balbuciou para si:

“ A flor rara ilumina o jardim, mas cega o rei”. E, antes de dar início a qualquer atividade, disse ele para aquele jardineiro, em voz ostensiva, que providenciasse uma grande placa de ouro e colocasse na entrada do seu jardim, com tais dizeres, em pedras de rubi:

SALVEM AS FLORES.