A Insurreição de Lúcifer II

O Primeiro Entre os Anjos levantou a própria arma, exibindo o brilho exuberante da espada para o inimigo que se aproximava. A face, tão bela quanto única, tão imponente quanto carismática, era a perfeita criação de Demiurgo, com olhos que não poderiam ser comparados com nada menos do que sóis. Seus trajes deviam ser feitos de fios de luz para brilhar tanto. Ou toda aquela luminosidade vinha de seu próprio ser? Lúcifer fez um arco com a espada, chocando-a com a arma de Miguel e afastando o ataque do irmão. O Príncipe da Guerra deixou o braço ser levado mas continuou o avanço, deixando o corpo se chocar contra o ex-Príncipe dos Anjos. As armaduras se bateram, deixando lascas luminosas voarem como faíscas. Lúcifer recuou um pouco, enquanto o braço era estendido para socar Miguel. Sua manopla bateu no elmo, amassando-o e enfiando uma ponta cortante na bochecha do general fiel. A espada do rebelde moveu-se mais uma vez, mas foi defendida por Miguel. Os anjos se afastaram para avançar um sobre o outro com maior rapidez e força. Lúcifer esperou o golpe do irmão e parou de repente, já prevendo o ataque em arco. Deixou que a espada de Miguel passasse a centímetros de sua armadura, para então bater as asas e adiantar-se para uma estocada. A lâmina enfiou-se no peito do Príncipe da Guerra, começando um ferimento mortal. O golpe foi interrompido quando o general fez sua arma rumar contra o pescoço de Lúcifer. O rebelde precisou se esquivar, dando tempo para uma batida forte das asas do Príncipe da Guerra. Ele afastou-se enquanto seu sangue espirrava e perdia-se na luz do Primeiro Entre os Anjos.

Miguel desceu, sendo mirado por Lúcifer. O Príncipe da Guerra começou a se perder no meio da batalha que agitava-se abaixo, mas soube que o irmão começava a persegui-lo quando uma chuva de sangue molhou sua armadura e avermelhou suas asas brancas. Era hora de repensar a estratégia. Olhou para baixo e viu, com dificuldade, que as forças de Moloch atravessavam as muralhas. Seus lanceiros estavam quase derrotados. Fora uma falha vergonhosa, mas ao menos ganhara tempo para que os príncipes angelicais se reorganizassem. Ele fora o primeiro a conseguir atrasar o avanço de Lúcifer. Tocou a trombeta, dando sinal para o recuo. Muitos poderiam tomar a atitude como covardia, mas Miguel sabia o que fazia. Não era à toa que tinha o título de Príncipe da Guerra. Havia o momento de recuar e o de contra-atacar.

*****

Os generais do Paraíso se agitavam na sacada do castelo. Seus olhos iluminados não conseguiam se desviar da batalha que ocorria na cidade abaixo. Daquelas muralhas, em cima da maior montanha do Céu, eles podiam ver toda a destruição que se alastrava. Viam sua preciosa cidade ser devastada pelo avanço inclemente das falanges da Estrela da Manhã. Cada vez mais de seus irmãos caíam enquanto o Portador da Luz abria caminho pelas ruas douradas com a força de sua espada.

Seus corações se apertavam sempre que um guerreiro corajoso tombava ao tentar inutilmente deter aquele que era o mais poderoso entre as criaturas do Senhor. Agora surgiam pragas, desafios e, principalmente, lamentos, pois seu irmão Feliel acabara de falecer ao confrontar o Príncipe do Poder. Mais um que sucumbira perante a força de Lúcifer.

Tentiel, Anjo da Lua, não mais agüentou presenciar aquela luta. Brandiu a lança e farfalhou as asas, subindo frente ao imponente castelo. Sua mão sacou a trombeta, prateada como o luar, e levou-a a boca. O som do instrumento alertou suas tropas, convocando-as para a batalha. Assim ele partiu, enquanto seus irmãos observavam. Era mais um que desobedecia ao comando que Miguel dera para que esperassem. “Corações que confundem coragem e fé”, pensava o Príncipe da Guerra, embora tentasse não julgar seus irmãos.

Aqueles generais que ali ficavam tinham seus pensamentos voltados para as ocorrências desde o início da rebelião. Nada parecido acontecera desde a Criação e suas mentes ainda tentavam entender como alguém podia rebelar-se contra a vontade do Senhor. Ainda que impacientes, continuavam esperando por novas ordens e tentando decidir como lidariam com seus irmãos rebelados. Ainda tinham dois terços dos anjos a seu lado e, entretanto, eram derrotados. Cada um que abria suas asas e deixava sua companhia acabava tombando frente ao Portador da Luz.

A observação da luta foi interrompida quando se ouviu a porta às suas costas se abrindo. Os olhares ansiosos convergiram para um anjo em especial, alguém que acabara de chegar à sacada.

- Metatron – disseram todos com respeito, em um coro bonito e afinado.

O poderoso anjo adiantou-se de cabeça erguida. Seu corpo e a expressão de seu rosto não podiam ser definidos, pois fogo e luz cobriam sua pele. Uma coroa de olhos flamejantes envolvia sua cabeça. Suas chamas crepitavam com mais força conforme seu humor. No momento, ardiam tanto que os outros generais se afastavam. Metatron controlou-se e seu fogo diminuiu, o que permitiu aos outros anjos verem que alguém o acompanhava. Alguns cumprimentaram esta nova figura com igual respeito, outros apenas com uma leve cortesia, especialmente Rafael. O anjo que agora aparecia era Laoviah, criado por Demiurgo para destruir e castigar, nada além desse intento. E, se estava ali, era para executar sua missão sem hesitar. Seus olhos brilhavam ávidos, enquanto seus três pares de asas farfalhavam. Mexia os dedos enquanto preparava as mãos para tocar sua espada, com mérito chamada de Expurgo.

Miguel, criado por Demiurgo para ser o Príncipe da Guerra, observou Laoviah, avaliando sua força e aprovando seu poder. Gabriel, Anjo da Morte, que futuramente também seria o Anjo da Anunciação, sorriu ironicamente, observando o Destruidor e percebendo a devoção e a fé em seus olhos, exibidas por um brilho quase obsessivo. Rafael virou o rosto, balançando a cabeça, triste por uma criatura como aquela existir. Mas Laoviah pouca atenção deu a eles, principalmente depois de a voz de Metatron ribombar nos ouvidos de todos na sacada.

- Assim ele acaba nos vencendo – comentou o Príncipe dos Serafins.

- A organização dos exércitos dele chega a ser perfeita – falou Miguel, sem sair de onde estava. Seu rosto, como sempre, não demonstrava nenhuma emoção.

- Não é só isso, o próprio poder dele acaba com o equilíbrio da batalha. Poderias enfrentá-lo, Metatron? – perguntou Gabriel quase em desafio. Cochichos espalharam-se entre os anjos, comentando a ousadia do Anjo da Morte. Mas assim era Gabriel, fiel a Demiurgo, mas debochado, dando pouca atenção à complexa hierarquia do Paraíso.

As bocas se calaram quando os olhares sérios de Miguel e de Laoviah apontaram para os outros generais. Seguiu-se um silêncio em que apenas o crepitar das chamas de Metatron era ouvido, além do barulho distante do movimento das tropas de Lúcifer.

- Não podes usar o poder da destruição. Não ainda! Não o faças, Metatron! Espera pela mensagem do Senhor. Ele nos enviará a salvação! – argumentou Rafael, olhando com desdém para Laoviah.

- Cala-te, Rafael! Deixa tal sentimentalismo e ergue tua espada para a batalha – falou Laoviah, farto das lamentações do Anjo da Vida.

- Criatura lamentável, surgiste apenas para acabar com a bela criação do Senhor. É uma pena que existas.

- Por acaso as ordens do próprio Senhor são dignas de pena? Por acaso alguém tem direito de lamentar por Suas decisões? Fui criado para punir aqueles que, como o Portador da Luz, desafiam a glória e magnificência de Demiurgo.

Rafael corou ao ouvir as palavras do Destruidor. Gabriel riu da discussão, contente de ver dois anjos usando seu livre arbítrio e sua inteligência, sem, no entanto, deixarem sua fé. Pena que Rafael fosse assim em tão poucos momentos e que Laoviah sempre estivesse tão cego em sua vontade de cumprir a missão do Senhor. O Anjo da Morte sabia que aquela seria a perdição de ambos, mas não imaginava o quanto estava certo e nem a destruição que surgiria.

- Parem de brigar, os dois – exigiu Metatron. Nenhum anjo disse mais nada. Ouviu-se apenas a risada de Gabriel. Um dos olhos da coroa do Príncipe dos Serafins apontou para ele. – Não posso lutar contra Lúcifer, Gabriel – respondeu, sem se sentir obrigado a dar qualquer outra satisfação. Outro olho flamejante apontou para Miguel. - Miguel, já lutaste?

O Príncipe da Guerra adiantou-se respeitosamente.

- Sim, fui derrotado. Assim que o exército de Lúcifer surgiu, minhas falanges se aprontaram, mas ele me fez recuar. Consegui evitar que nos derrotasse por completo, mas falhei ao lutar diretamente contra o Portador. – Fez uma pausa em que relembrou a batalha e continuou. - Ainda tenho guerreiros em vários pontos da cidade. Todos estão tentando manter as defesas e evitar que Lúcifer avance.

- E vós continuastes enviando os generais para deter o próprio Portador da Luz. Esforço inútil. Precisamos de tempo e castigo. – Agora os olhos apontavam para o Anjo da Destruição. – Laoviah, parte e usa tuas falanges.

Laoviah sorriu e abriu os braços, deixando o corpo ser tomado por chamas. Os cabelos colocaram-se de pé e atiçaram-se em fogo vermelho e dourado, o mesmo que agora envolvia as asas. A armadura brilhou ainda mais e a espada flamejante, quando sacada, emanava luz agressiva como o sol do deserto. Então ele alçou vôo para desafiar o Portador da Luz.

*****

Ele ergueu-se soberbo, ciente de todo o seu esplendor. Suas asas de luz abriram-se para iluminar seus aliados e inspirar medo nos corações inimigos. Os olhos procuraram por mais alvos para sua espada. Tão imponente era sua forma, que cada vez menos guerreiros o desafiavam naquela batalha. Os corpos dos antigos oponentes acumulavam-se a seus pés, mas o sangue dos falecidos não maculava sua forma. Estava limpo, pois a luz e o calor que emanavam de seu coração não deixavam seu corpo ser tocado.

Olhou para os lados e viu seu exército avançando pelos céus e pelas enormes avenidas douradas da Cidade de Prata. Um terço do exército celestial, todos anjos decididos a seguirem seu orgulhoso mestre, o primeiro rebelde a aparecer no Reino do Senhor. Seus guerreiros adiantavam-se com ímpeto, fosse batendo suas botas contra os tijolos brilhantes ou com suas asas agitando-se nos ventos.

Ele, Lúcifer, o Portador da Luz, sorriu vaidoso ao notar que mais falanges preparavam defesas contra o exército rebelde. Os servos do Arcanjo Feliel haviam tombado, eram um grupo que a Criação nunca mais veria, cuja história não seria mais registrada. Conseguiram derrubar alguns dos rebeldes, mas não impuseram nenhuma baixa significativa. O próprio Feliel tombou pela espada de Lúcifer, trespassado no peito pela lâmina que fez seu sangue ferver, dobrando os joelhos e desfalecendo-se perante a força da Estrela da Manhã.

Olhou mais uma vez, notando as altas torres de marfim e os castelos de platina. Seus anjos pairavam sobre estes, tomando-os como posições estratégicas. Cercando essas construções estavam jardins cuja grama era de um verde impecável e cujas plantas sempre exibiam flores com as cores mais vivas que os olhos poderiam notar. Agora, tanto grama quanto flor tinham tons avermelhados do sangue dos anjos cujos corpos ali caíam e se espalhavam.

Lúcifer ergueu uma das mãos protegida por uma luva de ouro e platina. Foi uma ordem para que seus anjos esperassem. Mais falanges batiam suas asas rumo aos rebeldes. Haveria outro embate e essa simples idéia o divertia. Fechou os dedos, indicando que os arqueiros deveriam se preparar. Flechas foram postas nos arcos e as cordas foram retesadas, enquanto olhos brilhantes miravam nos corações de seus antigos irmãos.

O líder rebelde reconheceu o brasão nas armaduras, pertencia a Tentiel, Anjo da Lua. Era um sujeito dado a loucuras, sem, no entanto, nunca ter coragem para realmente ser o que queria. Recusara-se se juntar à Estrela da Manhã naquela revolta. Ainda sorrindo, Lúcifer baixou a mão e as flechas dispararam pelo ar. Seu sorriso aumentou ainda mais quando viu os projéteis atravessando os brasões e cravando-se na carne dos guerreiros de Tentiel. Asas pararam de bater, tornando-se moles enquanto os corpos dos anjos caíam inertes rumo aos jardins e tijolos.

Outro sinal e finalmente os guerreiros rebeldes avançaram, inclusive o próprio Lúcifer. Brilhava cada vez mais, um brilho alimentado pelo orgulho de si mesmo, além do ódio que sentia. Suas asas de luz o levaram até os anjos de Tentiel enquanto sua mente relembrava os fatos. Ele, a mais perfeita criação de Demiurgo, traído pelo próprio Pai, tendo seu reino entregue a desprezíveis criaturas! Ele, que servira fielmente, obrigado a tolerar e a servir seres cuja vida passava num piscar de olhos! O ódio aumentou em seu coração, dando-lhe forças ainda maiores. Então sua espada rodopiou e cortou, mais sangue sagrado espirrou pelo Paraíso. Podia usar seus poderes para apagar a luz dos corpos dos soldados inimigos, derrubando-os em uma de suas inúmeras demonstrações de força.

Nenhum guerreiro conseguia parar o líder rebelde. O próprio Tentiel pôs-se a sua frente na tentativa de evitar o sacrifício de seus soldados. Apontou a lança e preparou o escudo prateado. Mas sua forma não era nada diante de Lúcifer. Emitia pouco além de um luar calmo, que desaparecia ao ser confrontado com a luz da Estrela da Manhã.

Espada chocou-se com escudo, quebrando a defesa de Tentiel e espalhando lascas prateadas que refletiram a luz intensa do inimigo. O Anjo da Lua recuou e atacou com a lança, mas o golpe foi desviado habilmente por Lúcifer. Tentiel ainda notou o sorriso do inimigo, debochando de sua fútil resistência. Então a mão do anjo rebelde fechou-se no cabo de sua lança e a puxou para que, em seguida, a espada brilhante descesse em um arco para quebrar a armadura e enfiar-se no peito esquerdo do anjo fiel. Seus olhos não se apagaram, pois era poderoso demais para morrer com apenas um golpe. No entanto, suas forças se esvaíram e as asas deixaram de ter forças para mantê-lo no ar. Começou a cair, sentido toda a dor à medida que a lâmina ia saindo de seu peito.

Mas Lúcifer não deixou seu irmão tocar o chão. Em um vôo rasante, pegou-o antes que se chocasse com os tijolos de ouro. Voou em meio a seus guerreiros, que já haviam rechaçado as falanges da lua. Aproximou-se de um dos castelos voando em círculos sobre a torre. Começou a voar em torno de um mastro que exibia os restos de uma bandeira. O Portador da Luz levantou o corpo de seu antigo irmão com um só braço e jogou-o contra a haste, empalando-o sem nenhuma piedade. O coração foi perfurado e o anjo segurou o metal que o atravessava na inútil tentativa de esapcar. Os olhos de Tentiel se apagaram enquanto as mãos agora pendiam ao lado.

Lúcifer pousou na mesma torre e cravou sua espada na cabeça do falecido Anjo da Lua, deixando-a descansar, enquanto cruzava os braços e esperava mais uma luta contra os anjos fiéis. Já tomara quase toda a Cidade de Prata e tantos celestiais haviam tombado que ele não esperava mais uma derrota, mesmo que Gabriel e Rafael ainda não houvessem aparecido.

Seus generais pousaram a seu lado, entre eles Moloch que tinha o corpo coberto de tanto sangue que nem o brasão de sua armadura podia ser visto.

- Quem virá agora? – perguntou o general, agitando sua lança em uma espera ansiosa por mais sangue.

- Não sei, mas tenho certeza de que eles estão perdendo seus principais generais. Não duvido que enviem...

Lúcifer não chegou a terminar a frase. Antes que outra palavra saísse de sua boca, um turbilhão de fogo e enxofre alçou-se sobre eles. O próprio Portador da Luz nada fez além de estender sua mão e criar um escudo iluminado para si mesmo. Moloch foi duramente atingido, sendo arremessado da torre juntamente com outros anjos. Corpos queimados e partidos acumularam-se nos jardins, ao lado de cadáveres que eles mesmos haviam derrubado. Lúcifer olhou com desdém para baixo, vendo Moloch levantar-se com dificuldade. Em seguida, olhou para frente para ver seu novo inimigo aproximando-se. Um sorriso cortou seu rosto enquanto dizia:

- Agora tudo fica mais interessante.