Conto - Elfos - Sob os Olhos da Deusa I

Esse conto é baseado no RPG Tormenta e utilzia o memso personagem do conto Amargura e Ressentimento.

Sob os Olhos da Deusa - Parte I

O vento soprava pela muralha, vindo diretamente da densa mata dezenas de metros adiante. O ar estava carregado de expectativa, trazendo também o cheiro de terra e o barulho contínuo da mata dos sussurros. De pé no alto do muro, ele observava. Berforam Lâmina de Luz fixava olhos sérios e aperolados adiante, avaliando toda a distância entre o posto de vigília recém-construído e a beleza das árvores. Algumas delas se misturavam aos tijolos que formavam a proteção para dar ainda mais firmeza à barreira. Era um muro tão espesso e firme quanto o próprio homem que estava sobre ele.

O líder élfico tinha títulos pomposos e longos como era normal da raça. Ele não era apenas Berforam, era Lord Berforam, era Berforam Dannórien da casa Zafirah, era Berforam da Oitava Geração Dannórienn a pisar em Arton, era Primo do Rei Imortal Khinlanas e líder supremo dos Espadas de Glórienn. Tinha alma de guerreiro, sangue de nobres e do povo comum, olhos de líder e fé de sacerdote. Ele não era menos do que um homem de armas e mais do que um sacerdote, segundo suas próprias palavras. Homem orgulhoso do sangue que corria em suas veias, rezava todos os dias agradecendo pela supremacia élfica e por poder proteger seu povo dos bárbaros globinóides.

Berforam carregava símbolos de status como era o caso da espada Enanquessir, abençoada por Glórienn. Era uma arma que ele retirara do antigo líder dos guerreiros sagrados da deusa, passando a liderança para a casa que carregava a Orquídea do Dragão no escudo. A arma que cortava tão rápido quanto o sol e tinha golpes tão quentes que evaporavam o sangue inimigo não garantiu a proteção do seu ex-dono perante à habilidade do Dannórien. Agora ela estava à esquerda da cintura do elfo de olhos atentos. Não carregava nenhum arranhão e nunca perdera o fio nos trezentos anos desde que fora forjada e abençoada. Tinha um cabo de ouro e prata com a face de Glórienn modelada perfeitamente.

A perfeição era uma das obsessões dos elfos. Berforam era vítima dessa mania que o fazia treinar para defender o povo. Também era abençoado com uma beleza incomum. O corpo bem constituído, de músculos definidos era coberto por uma pele de poucas cicatrizes e cor tão suave quanto o sol de Lamnor permitia. Os olhos eram tão aperolados e brilhantes quanto os fios de cabelos que se quedavam sobre os ombros cobertos pela armadura. Às vezes fazia tranças para não se incomodar com os cabelos longos durante as batalhas. A proteção do corpo era dourada e negra com os símbolos da deusa no peito, arco e flecha prateados estampados para o orgulho daquele guerreiro fiel. A capa que o protegia dos ventos era branca como os espíritos da noite.

A mente do elfo vagava junto com os olhos, alcançando aonde a visão chegasse para avaliar o perigo que estava para chegar. Berforam reconhecia os sinais de um mal iminente. As nuvens negras que começavam a formar não eram apenas de chuva. O sopro do ar trazia mensagens de morte. O vento levantava a poeira na área livre e criava fantasmas que eram os arautos da aproximação inimiga. Ele sentia. O sangue de guerreiro o mostrava. Não eram instintos, porque elfos estavam acima disso. Era a alma evoluída, presente de Glórienn, que o mostrava.

Começou a emitir ordens para uma preparação bélica. Os homens deviam se posicionar e manter atenção contínua. A troca de turnos era importante e deveria ser feita discretamente para evitar que os inimigos se aproveitassem do momento crítico. As palavras do elfo chegavam a outras orelhas pontudas como ordens divinas e ele agradecia pela obediência. Segurou um pingente de prata que sempre carregava onde fosse. Ergueu a cabeça para os céus enquanto colocava uma mão sobre o peito. Foi com humildade que pediu forças a deusa.

“Eu me submeto à Senhora Nossa Mãe e peço a guarda da minha alma para que eu possa continuar a proteger nosso povo. Agradeço à Deusa que está nos Céus e no meu sangue”, orou, parando quando sentiu o perfume da mulher que amava.

A esposa escolhera a época errada para visitá-lo. Seria essa a razão de estar tão preocupado? Celiene era sua fraqueza e sua força, era uma paixão desvairada que o submetia há setenta anos. Era o maior presente que Glórienn já lhe dera. Ela e os três filhos que já haviam saído de seu ventre. Felizmente os dois mais novos não estavam ali. Apenas o mais velho, que seguia os passos do pai.

A elfa o abraçou por trás com aquele toque de quem merece toda a confiança. Berforam se virou devagar para aninhá-la nos braços. Era bom ter certeza de que ela estava viva. Sentia-se mais forte quando a tocava. Aqueles olhos dourados o inspiravam a lutar para a proteção do povo e a nunca duvidar do quão perfeito fora o trabalho de Glórienn ao criar os elfos. Ah, amor assim era raro. Sentimento que queimava a cada segundo para brilhar em seus olhos e aquecer sua pele desde quando pensava nela até nos momentos de amor nos lençóis.

Ele não queria perde-la e sentia que sozinho nunca seria capaz de defendê-la, por mais orgulhoso que fosse de suas capacidades. Morreria por ela, porém não dispensava a habilidade dos outros Espadas de Glórienn. Ficava mais tranqüilo com a elite guerreira por perto. Berforam deixaria mil flechas vararem seu peito para proteger Celine, porém não poderia admitir que enquanto morria alguém pudesse tocá-la.

- Algum problema? - Celiene perguntou, sentindo a preocupação do marido. Ela o conhecia e não precisava nem de sentir seu cheiro para saber que algo afligia a alma do guerreiro.

- A tempestade - o guerreiro respondeu, desviando o olhar e apontando para o horizonte. As nuvens negras se movimentavam no céu tomando formas monstruosas. O forte vento que soprava poderia ser hálito maligno daquela criatura elemental.

- Acho que não escolhi uma boa semana para vê-lo - a elfa disse, sabendo que completava os pensamentos do marido. Berforam se preocupava com a vida de todos os elfos. Mas naquele posto de vigilância moravam apenas guerreiros e eles sabiam se defender. Celiene não.

Recentemente os glóbinóides haviam aparecido com mais intensidade. Justamente por isso, os Espadas de Glórienn estavam ali. Elas deveriam impedir a entrada de seus inimigos no território élfico. Khinlanas achou desnecessário, afirmando que os estúpidos goblinóides nunca passariam da Mata dos Sussurros. Um grupo de guerreiros liderados por um sacerdote de Glórienn seria suficiente. Berforam não concordou e o rei não ousou questioná-lo. O nobre Zarfirah submetia-se à realeza, porém, quando o orgulho e a fé borbulhavam no sangue, nem mesmo a figura de Khinlanas o enfrentava sozinho ou diretamente.

O guerreiro sagrado estava certo. Desde que passaram a controlar o posto, cerca de duzentos hobgoblins foram mortos. Simples guerreiros não resistiriam a esses ataques constantes. Apenas a experiência de seu líder aliada ao poder divino das Espadas de Glórienn permitiu a sobrevivência de todos e a proteção da fronteira.

- Acha que haverá algum ataque hoje? - a elfa perguntou, na esperança de poder passar uma noite em paz com seu marido.

- Tenho quase certeza, meu amor. Quero que parta amanhã de manhã e fique com nossos filhos. Não quero que se arrisque aqui. Mandarei três guerreiros a escoltarem junto com uma mensagem para manter todo elfo longe da região. As patrulhas de rastreadores também devem ser dobradas - Beforam disse, já pensando nos planos. Abraçou a esposa com força, como se seu único medo no mundo fosse perdê-la. Os dois se beijaram longamente e ficaram abraçados por um tempo, observando a tempestade e conversando sobre seu significado. Acabaram concordando que Glórienn os protegeria de qualquer mal.

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Era uma noite de presságios ruins. Os inimigos estavam ocultos pelos elementos agitados e caóticos que se erguiam e se misturavam no ar. Khessarel, o mago e melhor amigo de Berforam, balançava a cabeça xingando a si próprio pela incapacidade de desfazer aquela barreira elemental que incomodava tanto o trabalho das sentinelas. Coçava o queixo enquanto os olhos perdiam-se em preocupação e procura por uma solução. Entretanto, ainda que os sentimentos oprimissem a alma, nem uma única ruga de preocupação surgia no rosto. Era uma figura controlada e segura de si que não se rendia à observação externa. Tentava imaginar se poderes clericais ajudariam, porém Lissinim, a jovem sacerdotisa local, não fora de muita valia.

A magia não fora útil até o momento, portanto os Espadas de Glórienn decidiram que a espada e a fé deveriam bastar. Eram o que sempre lhes serviram melhor e nunca lhes faltaram. Rel´Keram, filho mais velho de Berforam e Celiene, estava liderando o posto naquela noite. Ele se aproximou de Khessarel com a mão no punho da espada.

- O que você acha? - o jovem guerreiro perguntou ao velho e experiente mago.

- Seu pai está sempre certo, meu jovem. Aprendi a não duvidar de sua sabedoria durante esses anos - Khessarel respondeu. Ele estava com os braços cruzados e não retirava os olhos da escuridão do horizonte. Naquela noite, a lua não aparecera e o vento gerava ruídos horríveis, parecidos com gritos de almas desesperadas. Geralmente, as noites na Mata dos Sussurros eram calmas e o sopro do vento gerava apenas ruídos fracos como sussurros. O mago estava preocupado com a mudança.

- O antigo líder do posto disse que já aconteceram outras tempestades por aqui e sempre que o vento sopra mais forte aparecem esses gritos - Rel´Keram disse, tentando acalmar a si mesmo e ao mago. Khessarel quase riu, mas não caçoaria do filho de Berforam. Elfos não esqueciam de ninguém que feriam seu orgulho. Além do mais, Rel´Keram ainda teria muito tempo para aprender a avaliar os sinais do mal.

Assim que o guerreiro terminou a frase, Lissinim se aproximou.

A pequena sacerdotisa apareceu nervosa e apreensiva. Fora alistada para acompanhar aquele grupo de Espadas de Glórienn há poucas semanas apenas porque o clérigo habitual que os seguia não pudera comparecer. A pequena e jovem elfa era a única disponível no momento.

Berforam dizia que aquela seria uma boa experiência para a garota, mas ela duvidava disso principalmente porque o que os guerreiros chamavam de boa experiência ela preferia não ver. Além do status por estar ao lado das Espadas de Glórienn, só havia mais uma coisa que a elfa gostava ali. Ela se apaixonara por Rel´Keram e sempre procurava um motivo para estar ao seu lado. E, naquela noite, além da paixão, ela queria sentir segurança.

- Lissinim, tudo bem? - o elfo guerreiro perguntou, após fazer o gesto habitual para cumprimentar um sacerdote. Mostrou a palma da mão e a apontou na direção do coração de Lissinim. Ela respondeu com o cumprimento certo para um guerreiro sagrado, bateu a mão direita aberta na palma esquerda.

Khessarel resmungou e balançou a cabeça. Não entendia o motivo daqueles rituais. Os dois se conheciam e se gostavam, dormiam abraçados durante a noite e, no entanto, sempre se cumprimentavam da mesma maneira. A sacerdotisa entendeu errado o resmungo e começou a tomar posição para se apresentar ao mago. Ele simplesmente abanou a mão a dispensando.

- Os soldados parecem um pouco nervosos, mas eu já conversei com eles. Os Espadas de Glórienn estão preparados. Sua fé é inabalável e sei que chegariam até o fim do mundo por nossa deusa - Lissinim disse. Khessarel achou o discurso desnecessário, porém a formalidade élfica praticamente o exigia. Agora era hora de alguém dar uma resposta pomposa.

- Nossas armas sempre estão prontas para se erguer em nome da deusa - Rel´Keram disse, ignorando mais um resmungo de Khessarel. O mago odiava aquelas conversas melodramáticas. Por que os dois não começavam a se beijar de uma vez e se calavam?

- Essa noite será longa, mas teremos a proteção da... - Lissinim tentou continuar, mas foi interrompida por Khessarel.

- Cuidado! - o mago gritou, já erguendo um escudo mágico. A barreira brilhante citilou quando sete flechas a atingiram. A madeira das setas partiu-se e espalhou-se pelo chão, o barulho acompanhado da espada de Rel´Keram sendo desembainhada. - Hobgoblins. Demorou, mas eu consegui enxergá-los. Agora sim! Estava guardando essa magia para acabar com a escuridão próxima. Ela não durará muito tempo. Lissinim, chame Berforam. Rel´Keram, prepare-se para a primeira das piores batalhas de sua vida.

Uma correria se iniciou nas muradas do posto de vigilância. Enquanto isso, Khessarel procurou pelos componentes materiais de sua magia nos bolsos de seu manto. Retirou uma pétala de uma orquídea negra, uma das plantas mais raras de Arton e esfregou nas mãos. Enquanto começava a recitar as palavras mágicas, a planta começou a pegar fogo. Pequenas faíscas começaram a surgir nos dedos do mago, expandindo-se aos poucos até desaparecerem instantaneamente. O sumiço foi seguido por um clarão súbito que iluminou uma centena de metros á frente.

Para a surpresa de todos, mais de cinqüenta hobglobins estavam escondidos na mata próxima. Começaram a correr na direção do posto de vigilância como criaturas desgraçadas e violentas que eram. Carregavam a sujeira e o fedor da existência de Ragnar naquela marcha furiosa. Flechas, vindas de ambos os lados, tomavam o ar iluminado para aterrissar em armaduras rígidas ou em carne macia. Khessarel começou a preparar bolas de fogo que clareariam ainda mais a noite. Em pouco tempo, o odor de carne queimada já se espalhava enquanto a tropa de goblinóides avançava e deixava corpos de irmãos carbonizados para trás.