Conto - Elfos - Sob os Olhos da Deusa II

No início, Berforam imaginou que as muralhas os protegeriam. Bastaria atirar magias e flechas de lá de cima para acabar com todos os hobgoblins. Ele estava errado. A dor do erro o perseguiria pois os golpes que seguiriam não atingiram sua pele, mas sua alma. O pesadelo começou quando a primeira pedra voou assobiando pelo ar infectado da noite. Os olhos de Berforam mal acreditavam quando a imensa rocha desceu para bater contra as muralhas. Os tijolos e as árvores se partiram como vasos de cerâmica e gravetos jogados no chão.

O elfo não se abalou por muito tempo. As ordens saltaram depressa para que os guerreiros saíssem do posto de vigilância. Era preciso alcançar os inimigos no campo de batalha e impedir o avanço. Os Espadas de Glórienn entrariam diretamente na batalha, enquanto Khessarel lideraria os guerreiros que ficariam na muralha, dando apoio com arcos e na proteção da retaguarda.

Lissinim observava assustada. Uma pedra caíra a metros dela e os estilhaços gerados a derrubaram. Não houve ninguém para ajudar a elfa a levantar-se. Os guerreiros precisavam passar apressados para alcançarem os inimigos. Quase tremendo de medo, só mudou de atitude quando, de pé, viu Berforam avançar para a luta com a aura radiando coragem e orgulho élficos. Lissinim começou a rezar para a vitória dos filhos da Deusa. Fez uma prece especial para Rel´Keram.

O jovem guerreiro lutava ao lado do pai, impressionado com a cena de batalha proporcionada pelos Espadas de Glórienn. Berforam movia-se entre os monstros como um gato, desviando-se de ataques e levantando Enanquessir para derrubar inimigos com um golpe só. Rel´Keram quase duvidava que a espada realmente atingisse os goblinóides. Os golpes eram rápidos demais e o sangue que espirrava das feridas logo desaparecia no ar, evaporando devido ao calor da espada sagrada.

A luta estava equilibrada. Eram três goblinóides para cada elfo. Berforam esperava mais. Aquela batalha mal estava o cansando. Os Espadas de Glórienn avançavam sobre os goblinóides e desfaziam a parca organização dos monstros com entradas rápidas e golpes inclementes. Berforam sentia o cheiro de sangue e agradecia à deusa por não ter aquele mesmo líquido podre e fedorento correndo em suas veias. Era o agradecimento de todo elfo nas orações, ter nascido elfo, ser um Filho da Deusa. A existência daquelas criaturas era a prova do quanto eles eram melhores e do que deviam à Mãe Élfica por ser o que eram.

A batalha terminou antes do esperado. Os goblinóides que ainda estavam no meio das matas recuaram, levando os estranhos instrumentos que utilizaram para arremessar suas pedras. Berforam impediu qualquer tentativa de perseguição. Com certeza seriam mortos se entrassem na mata. E havia algo de estranho naquele ataque. Aquilo parecera apenas um teste.

O guerreiro percebeu que fora um teste bem sucedido assim que olhou para trás e viu os muros do posto de vigilância destruídos. Ele interrompeu seu agradecimento a Glórienn assim que se lembrou de Celiene. Berforam começou a correr de volta, dando ordens para que levassem qualquer ferido para os cuidados de Lissinim.

*****

Khessarel balançou a cabeça lamentando a desgraça à frente. Ele bem que preferia estar triste pela destruição dos muros ou pelos novos instrumentos de guerra dos goblinóides, mas não, estava diante de algo pior. Em meio aos tijolos quebrados e escombros do antigo posto estava Celiene. Khessarel se abaixou para verificar o estado da elfa. O sangue escorria pela boca e pelo nariz, um braço estava roxo e torcido enquanto uma das pernas sumia debaixo das pedras. O peito dela se movia com dificuldade. Khessarel deu ordens para chamarem Lissinim e Berforam. Teve medo de tocar a esposa do amigo e causar mais danos.

Foram precisos dois guerreiros para impedir que o líder das Espadas de Glórienn corresse até sua esposa. Todo guerreiro sagrado tem o dom de curar outro elfo com o simples toque de sua mão. No entanto, aquilo não bastaria no momento. Sua esposa precisava de cuidados mais urgentes que apenas a sacerdotisa poderia providenciar.

Lissinim rezou por bastante tempo e derramou água com pétalas de rosas nos ferimentos de Celiene. Infelizmente, mesmo com toda sua fé, a jovem não conseguiu curar completamente a esposa do general. O que conseguira apenas havia permitido aos elfos carregarem Celiene para um local mais adequado, onde pudesse esperar por sua morte com um pouco de conforto. Ela foi levada para um quarto pequeno, mas aconchegante, cheio de desenhos e decorações belas. A cama era macia e confortável, coberta por lençóis prateados, sempre colocados para os elfos moribundos descansarem.

Berforam sentou-se ao lado da esposa e não saiu dali o dia inteiro. Não derramou uma lágrima, pois acreditava que Glórienn ainda poderia salvá-la. E se fosse vontade da deusa ter sua esposa, assim seria. Ele apenas parou suas preces para encarregar Khessarel e Rel´Keram da liderança do posto. Foi um ato de lamentação, pois ele sabia que não deveria abandonar o comando. Já enterrara tantos amigos e subordinados antes, por que agora se sentia tão fraco e desolado?

- Não se preocupe, meu daelih, meu querido. De um jeito ou de outro, estarei a seu lado. Eu me unirei a Glórienn e sempre que você rezar para nossa deusa, estará conversando comigo - Celiene disse, em um dos seus poucos momentos de consciência.

- Poupe suas forças, meu amor. A deusa não te chama ainda - Berforam disse, mas ele mentia para si mesmo. O elfo via o sangue da esposa escorrendo pelo lençol e sentia seu coração se apertando. Cada gota vermelha era como um pouco de areia caindo na ampulheta da vida.

- Não minta para si mesmo, meu daelih. Eu sinto o chamado dela e não temo. Despeça-se de nossos filhos em meu nome. Não precisa dar nenhum recado além de pedir para rezarem para a Deusa. Aí nós conversaremos - sussurrou e abriu os braços, esperando um abraço. Berforam se aproximou cautelosamente e a envolveu com todo seu amor, mas já cheio de saudades.

Quando os dois se soltaram, o calor do corpo de Celiene já se esvaía. O coração não se movia no peito com o ardor de todas as vezes em que via o marido. O guerreiro ficou parado por alguns instantes apenas a observando. Havia um dragão em seu peito que devorava suas forças e ele ainda pensava em como resistir àquela fera nascida da morte da esposa. Então ele pediu que a Deusa a trouxesse de volta. Rezou durante quase meia hora, com medo de chamar qualquer pessoa que confirmasse a morte da elfa. Quando finalmente aceitou o fato, agradeceu a Glórienn pelo fato de os dois terem conversado antes da partida de Celiene.

Berforam aproximou seu rosto dos lábios da esposa para um último beijo. Para sua surpresa foi correspondido. O guerreiro ergueu-se assustado e olhou para a esposa. Ela o fitava com os olhos tranqüilos. Berforam já ia abraçá-la quando notou que havia algo de errado naquele olhar. Aquela não era Celiene. Ele não sentia mais a compreensão, o amor e a simplicidade. O brilho daqueles olhos tinha amor e compreensão, mas também uma sabedoria quase infinita.

- Você não é Celiene - o elfo disse, já sabendo quem habitava o corpo de sua esposa. E não precisou olhar para saber que os ferimentos haviam desaparecido.

- Trate-me como sua esposa. Transforme sua fé em puro amor, Berforam. É só isso que eu quero - ela disse, com uma voz suave e materna. Percebendo que não deveria falar daquele modo, alterou seu tom, deixando-o sedutor e apaixonado.

Berforam não sabia o que dizer. Ele a olhou e soube que Celiene estava ali, de algum modo. Todos os elfos se unem a Glórienn depois da morte.

*****

Khinlanas ordenou que Berforam voltasse para casa assim que soube do acidente com Celiene. O líder das Espadas de Glórienn reportou pessoalmente ao rei tudo o que acontecera e dera todas as suas opiniões sobre as decisões a serem tomadas. Ele passou horas conversando com o conselho, tentando convencê-los de que algo estava sendo tramado entre os goblinóides. E também afirmou que aquela tempestade não fora comum. De nada adiantou. Eles apenas responderam que analisariam o relatório e pensariam no assunto.

Berforam saiu contrariado da reunião. O guerreiro queria que Lenórien tomasse alguma atitude e pensou em pressionar o rei, porém os acontecimentos recentes o deixaram abalado e ao mesmo tempo seguro de que uma atitude imediata não seria necessária. Nervoso, pensava que os elfos precisavam eliminar os malditos goblinóides de uma vez só. Resolveu se sentar em um dos jardins do castelo para tentar se acalmar. Não queria encontrar sua esposa e filhos naquele estado. Acomodou-se diante de uma fileira de Orquídeas do Dragão e percebeu que, sem querer, havia chegado ao jardim da Casa Zafirah. Toda casa nobre tinha o direito de cuidar de um dos belos canteiros em volta do castelo real. Era um símbolo de status e uma grande competição para os nobres. De fato, os jardins eram lindos, obras primas criadas por jardineiros, magos e sacerdotes especializados na arte de aproveitar a máxima beleza das plantas.

Observou as grandes torres espalhas pela cidade. Todas eram claras e refletiam a luz solar para as inúmeras árvores que cresciam no meio das construções. Crianças brincavam despreocupadas pertos das fontes naturais e velhos conversavam nos bancos construídos nas gigantescas raízes.

Um elfo de longos cabelos, vestindo um simples manto marrom e portando um cajado de madeira, se sentou a seu lado. A testa estava enrugada e cheia de preocupação. Berforam o conhecia de outras épocas e outras batalhas. Aquele era Razlen, sacerdote de Allihannatantala, a deusa da natureza. Ele ajudara os Espadas de Glórienn em várias missões que envolviam procurar por inimigos nas matas do reino.

- Acredito que tem a mesma preocupação que eu, guerreiro da fé - Razlen disse, com uma voz suave, que lembrava mais o canto de um pássaro.

- Sim. Nossos inimigos estão tramando algo. Devemos marchar logo para destruí-los - Berforam disse, batendo o punho fechado na palma da mão esquerda.

- Não resolveremos essa situação assim - Razlen respondeu, como se estivesse cansado de ouvir aquela frase.

- Como não? Temos Glórienn do nosso lado - o guerreiro disse, segurando o símbolo da deusa.

Eles também têm seus deuses, Razlen pensou. Só que achou melhor não falar nada. Não adiantaria. A fé de Berforam estava mesclada com a arrogância natural da raça élfica. O druida apenas ficou calado e olhou para as árvores, como que pedindo ajuda a sua deusa. Porém, o próprio Razlen desconhecia o motivo do abalamento psicológico de Berforam. Não sabia o tumulto que devorava o coração do elfo, com aquela mistura de fé, amor, orgulho, desejo e devoção. Era preciso ser mais do que um guerreiro, mais do que mortal para lidar com tantos sentimentos de uma vez só.

- Pelo menos você sabe que Lenórien deve agir rapidamente para evitar um desastre - Razlen disse. Então o druida se levantou tentando controlar sua própria impaciência.

Berforam não o impediu de ir embora. Os dois nem se despediram. O guerreiro ainda ficou um tempo parado, pensando na própria vida, tentando esquecer os problemas. Então se levantou e tomou o rumo de casa.

*****

Berforam ficou em Remnora durante um mês juntamente com sua família. Apenas Rel´Keram não estava lá. Ele e Khessarel ficaram encarregados de comandar o posto de vigilância que fora reconstruído. Antes era a primeira defesa da cidade de Lizessir, agora defenderia toda a nação, sendo uma das principais bases do exército.

Aquele só não foi o mês mais feliz da vida de Berforam porque às vezes ele não conseguia enxergar Celiene apenas como sua esposa. Ela era mais do que elfa, era a essência élfica encarnada diante dos olhos do guerreiro. Os momentos na cama eram uma mistura de orgulho e sacrilégio para o guerreiro, sentimentos que desapareciam durante o prazer e voltavam quando sentia o calor dela em seus braços e nada tinha além do silêncio e as luzes apagadas como companhia. Não havia mais aquela mulher que era igual a ele para sentir seu desabafo e compartilhar fraquezas. Agora era outra... uma estranha que, ao mesmo tempo, era mais do que familiar. Era seu sangue e sua companhia na vida e na morte.

Às vezes agia como uma deusa, exigindo atenção constante e tratava os filhos da mesma maneira. Para a antiga Celiene, cada um deles era único e merecia um tratamento diferente. O tom de voz da mãe mudava de acordo com o filho com quem falava. Aquela elfa que agora segurava Talim, de apenas três anos de idade, via as crianças apenas como uma professora que cuida de seus alunos no jardim de infância. Estava sempre preocupada e queria agradar, tratando todos muito bem. Mas faltava algo, talvez a mortalidade ou o fato de ter concebido.

Talvez o segundo problema pudesse ser resolvido já que Celiene estava grávida. E seu sorriso mudara desde então. Estava sempre mais feliz e ansiosa, como se fosse seu maior desejo. Berforam estava orgulhoso por ser pai mais uma vez. Ainda sim, sua mente às vezes se confundia. Quando se deitava com aquela elfa, não sabia se realmente podia a tratar como sua esposa ou se devia reverenciá-la.

Algumas vezes, Celiene ficava irritada ao ser tratada como uma simples pessoa. Então mudava de idéia de repente, pedindo para que Berforam voltasse a ser simplesmente seu marido. E ninguém entedia aquilo, pois Berforam nunca dissera a verdade sobre o que acontecera naquela dia.

A família passava a maior parte do tempo unida. Berforam treinava sua filha do meio, Nenianna, sendo observada atentamente por Tali e Celiene. De vez em quando a mãe aparecia para corrigir a postura da filha ou algum erro na defesa. Nenianna estranhava, pois nunca vira Celiene lutando. Ela preferia apenas cuidar de seu jardim e ensinar os outros a escrever. Tinha modos diferentes da jovem elfa que sonhava em ser uma arqueira dos Espada de Glórienn.

Berforam se sentia aliviado por nunca ter sido corrigido pela esposa. Mas isso não era preciso. O estilo de luta do guerreiro era quase perfeito. Só melhoraria se ele fosse imortal. O que enchia o coração do guerreiro de saudades era o cuidado que sua esposa tinha com sua aparência, sempre tentando mantê-lo arrumado para as reuniões e corrigindo qualquer erro no comportamento. Os dois se divertiam muito quando conversavam sobre isso.