Conto - Elfos - Sob os Olhos da Deusa III

A paz de Berforam terminou assim que Khessarel avistou um exército de goblinóides se aproximando do posto de vigilância, agora chamado de Primeira Barreira da Eternidade. O guerreiro montou em seu cavalo e correu para tomar sua posição, deixando a família em Lizessir. Ao mesmo tempo, ele mandou as Espadas de Glórienn se espalharem por todas as cidades do reino e montou um posto especial de proteção em Remnora. O guerreiro sabia que aquele não era o exército completo dos goblinóides. Havia mais daqueles seres vis vindo de todas as direções.

A Primeira Barreira da Eternidade deveria atrasar aquele exército para que Lizessir pudesse se proteger. A batalha seria difícil, mas os guerreiros estavam preparados.

Lissinim estava mais agitada do que nunca. Ela correu até Rel´Keram com o coração batendo forte no peito. Seu amado estava conversando com Khessarel, o que a fez hesitar antes de se aproximar. A jovem elfa não gostava muito do mago, principalmente porque ele não era um homem de fé. Tinha mais crença em sua magia do que na Deusa. E sempre havia aqueles resmungos malditos que ela nunca entendia.

- Rel´Keram, prepare-se para a primeira das piores batalhas de sua vida - o mago disse. Esse era outro costume que irritava a sacerdotisa. Antes que de qualquer luta, Khessarel insistia em dizer essa frase.

- Nós venceremos com a ajuda de Glórienn - Lissinim comentou, tentando provocar.

- Lissinim, prepare-se para a primeira das piores batalhas de sua vida – Khessarel resmungou. O sorriso de vitória no rosto de Lissinim desapareceu imediatamente. Ela nunca conseguia irritar o mago. E seus resmungos nem sempre significavam irritação.

Uma discussão estava para se iniciar quando se deu o sinal para todos tomarem seus postos. A batalha estava para se iniciar. Arcos e flechas foram preparados. Espadas foram sacadas. Armaduras foram ajeitadas no corpo. As últimas preces foram feitas.

Lissinim acabara de abençoar os guerreiros quando ouviu os barulhos dos tambores do exército goblinóide. Eram assustadores. Seu coração parou por um momento quando olhou para o horizonte. Ela nunca vira tantos hobgoblins e bugbears juntos. Sua marcha levantava uma enorme nuvem de poeira que quase tomava a forma da alma de Ragnar. Por pouco a jovem não duvidou de sua fé e da vitória. Ela correu para Rel´Keram e o abraçou pela última vez. Os dois se beijaram sem dar atenção para o resmungo de Khessarel.

Berforam esperou o beijo acabar para chamar o filho. Os dois desceram imediatamente e ficaram esperando pelo momento certo para os portões serem abertos e a batalha começar. Dessa vez, eles não esperariam as gigantescas pedras quebrarem os muros. Enquanto as flechas matavam os inimigos da tropa de frente, os elfos sairiam de sua base para enfrentar os inimigos cara a cara.

Nenhum dos guerreiros da Espada de Glórienn duvidou da vitória naquele dia. Eles só não sabiam qual seria o preço dessa vitória. Enquanto rezavam para a Deusa, pediam proteção para suas famílias e longa vida para o reino.

Khessarel se aproximou de Berforam pouco antes da luta começar.

- Desculpe-me questioná-lo, mas somos amigos há muito tempo. Você não acha que deveríamos recuar e enfrentar esse exército juntamente com os soldados que estão em Lizessir? - o mago perguntou.

- Não, precisamos atrasá-los. Essa foi a ordem de Khinlanas. E você não precisa se preocupar. Glórienn está protegendo nossas famílias. Não vamos falhar aqui. E se perdermos, a Deusa ainda estará lá. Ela não deixará ninguém chegar a Remnora - Berforam falou, com os olhos cheios de fé e orgulho.

Khessarel não disse mais nada. O mago julgou que o guerreiro soubesse de algo a mais. Talvez tivesse recebido um aviso da deusa ou um grande grupo de sacerdotes e Espadas de Glórienn estivesse se movendo para proteger Lizessir. A cidade seria a última barreira antes da capital do reino élfico.

*****

A luta estava desequilibrada. Quase oito goblinóides para cada elfo. Não fosse pelas estratégias de luta de Berforam e pelo poder das Espadas de Glórienn a derrota ocorreria em pouco tempo. Mas eles resistiram com todas as suas forças. Sua fé era inabalável.

Berforam ergueu Enanquessir para matar mais um hobgoblin e voltou-se para os elfos que o acompanhavam para gritar mais uma ordem. Quando foram cercados no meio do campo de batalha, eram um grupo de oito, agora só restavam Rel´Keram e mais dois Espadas de Glórienn. O guerreiro olhou para todos os lados e viu que o mesmo estava acontecendo com outros grupos.

- Precisamos nos reunir novamente - ele gritou e mandou uma mensagem mágica para todos os Espadas de Glórienn. Sempre havia pelo menos um desses guerreiros sagrados liderando um destacamento. - Eles conseguiram nos separar. Perderam muitos soldados para isso, mas ainda há mais deles. Não recuem. Glórienn está conosco! Lutem com fé!

A luz de sua espada brilhava cada vez mais forte, cegando os hobgoblins que se aproximavam e criando um escudo contra qualquer flecha ou pedra que fosse arremessada. Mais uma vez a lâmina cortou o pescoço de um oponente. Berforam a recuou depressa para aparar o golpe de outro inimigo.

Rel´Keram estava orgulhoso do pai. Ele nunca deixava de se impressionar ao vê-lo lutar. Seu estilo de luta era impressionante. Praticamente perfeito. Pena que o seu não era. O jovem guerreiro esforçou o máximo que pôde, mas Glórienn não estava disposta a ajudá-lo naquele dia. Pelo menos foi o que pensou quando sentiu a lâmina enferrujada de um bugbear penetrar em seu peito. Não teve tempo de se despedir de seu pai.

Berforam mal pôde se conter quando viu o filho cair. Ele entrou em um estado de fúria incontrolável. Enanquessir aparou a espada do bugbear e a partiu ao meio. O monstro nem teve tempo de se surpreender. Os ataques que o mataram em seguida foram tão rápidos que ele nem teve tempo de um grito de dor. Enanquessir cortou o peito duas vezes e depois decepou a cabeça do adversário. Foi um momento raro, pois o general élfico raramente desperdiçava golpes. Não precisava de mais do que um para acabar com um goblinóide.

A batalha terminou no fim do dia. Berforam não se lembrava direito do que acontecera. Sabia que lutara muito e com todas as suas forças. Seus membros ainda doíam devido ao esforço. Ele acordou coberto de sangue com Enanquessir caída a seu lado. Corpos de elfos e goblinóides se espalhavam por toda parte.

Demorou um pouco para o guerreiro recuperar completamente a consciência. E ele só voltou à realidade quando sentiu alguém o levantando. Berforam levou a mão à cintura para retirar sua adaga e atacar, ainda que o braço doesse, cobrando o preço do esforço da batalha.

- Sou eu Khessarel - o mago gritou. Por pouco não foi morto pelo amigo.

- O que aconteceu? - Berforam perguntou, balançando a cabeça e começando uma prece.

- Perdemos. Fomos forçados a recuar. Eu o julguei morto, meu amigo - Khessarel disse. O mago vira Berforam enquanto usava suas magias do alto da murada. Nunca vira o guerreiro lutando tanto. Não duvidaria se dissessem que cem hobgoblins morreram por sua espada naquele dia.

- Sobreviventes? - o guerreiro perguntou, interrompendo momentaneamente sua prece.

- Poucos. Estamos nos preparando para rumar para Remnora ou para fugir. Soubemos que algumas caravanas estão partindo de Lenórien. Elas podem precisar de ajuda - Khessarel contou. Ele já julgara a guerra perdida. Se as Espadas de Glórienn, lutando ao lado de Berforam com o máximo de seu poder, não conseguiram parar os goblinóides, então nada mais deteria aquele exército.

- Ainda não perdemos, meu amigo. Glórienn está do nosso lado. Vamos para Lizessir. Ela estará nos esperando lá para nos abençoar em mais uma batalha - Berforam disse, tentando se manter de pé por conta própria.

A maioria dos sobreviventes da Primeira Barreira da Eternidade pensava do mesmo modo que Khessarel, mas eles decidiram seguir Berforam pelo respeito que tinham por seu líder. O mago também foi. Durante o caminho, não havia nenhum sacerdote para ajudá-los. Todos haviam morrido, inclusive Lissinim.

*****

A cidade estava queimada e completamente destruída. Os goblinóides não pararam ali nem para saquear. Fariam isso depois, assim que acabassem com Remnora. Era na capital que estavam escondidos os verdadeiros tesouros.

Em Lizessir só restavam alguns goblins e hobgoblins que queriam atormentar os sobreviventes. Berforam acabou com todos esses monstros com a ajuda do que restara de sua companhia. O elfo lutou quase sem ânimo. Apenas uma leve esperança de encontrar sua família movia sua espada. Quem estava ao seu lado nem imaginava que aquele fosse Berforam Lâmina de Luz. Os olhos aperolados quase não tinham brilho no meio daquele rosto sujo de sangue.

Quando todos os monstros foram mortos, os elfos reuniram os sobreviventes e começaram a cremar os mortos, buscando identificá-los. Berforam achou os corpos de seus dois filhos. Perdera toda sua família durante a batalha. No entanto, Celiene não estava ali. Ninguém soube explicar o que acontecera com a esposa do guerreiro.

Pela primeira vez em muitos anos, Berforam chorou. Ele simplesmente se ajoelhou segurando os corpos frios de seus filhos e deixou as lágrimas escorrerem pelo rosto. No início ele se culpou por não ter recuado. Deveria ter ouvido Khessarel. Poderia ter salvado muitas vidas.

Quando se lembrou que faltava um corpo em seus braços, o elfo se revoltou. Onde estaria Celiene? Ela deveria ter protegido sua família. Não! Ela não deveria ter protegido apenas Talim e Nenniane? Toda Lizessir deveria estar viva e festejando em homenagem à Deusa. No entanto, Celiene desaparecera. Teria fugido? Estaria preparando um novo plano?

- Não se preocupe. Glórienn é sábia e acolhedora. Ela receberá as almas de seus filhos e eles a ajudaram a defender Remnora - um velho sacerdote disse, tocando no ombro do guerreiro.

Berforam fitou-o com os olhos cheios de raiva e fúria, sem nem um pouco da beleza de antes. O sacerdote recuou com medo de ser atacado. Percebendo a hesitação do elfo, o guerreiro levantou-se e levou os corpos dos filhos para serem queimados. Pediu que alguém fizesse as preces, pois ele não conseguia. E não foi o único a recusar-se a fazê-lo. Naquele dia, vários elfos morreram sem terem uma prece feita por seus parentes. Cada cadáver era uma lança de humilhação atravessando o coração orgulhoso de um filho de Glórienn.

Todos os sobreviventes de Lizessir fugiram de Lenórien escoltados por Berforam. Durante o caminho, eles se encontraram com várias caravanas e o guerreiro não se cansava de perguntar se haviam visto alguém com a descrição de sua esposa. Cada vez que uma cabeça balançava ou ouvia um não, um pouco de sua fé se esvaía.

O que restava da fé de Berforam se foi quando ele viu o sofrimento nos olhos de seu povo. Ele vivera para amar, para ter fé e para proteger os elfos. Perdera o amor, começava a perder a fé e não podia admitir que ainda perderia seu povo. Olhando para as próprias mãos, viu que nelas estava a resposta para a sobrevivência de seus pares. Os elfos precisavam de proteção e não podiam contar com ninguém. Apenas suas espadas poderiam defendê-los, nada mais. E aí começou a queda do mais poderoso dos guerreiros elfos. Foi quando surgiu o primeiro elfo negro.