A Donzela e o Ceifador

Tudo que ele conhecia era a fome. Não sabia o que era felicidade ou tristeza, dor ou prazer, bem ou mal, apenas fome. Essa fome só poderia ser saciada com algo raro e incomum que jaz guardado dentro dessa casca que chamamos de corpo. A alma.

Ele não fazia idéia do que era, de quem poderia ser, de como nascera ou se possuía algum parente. Sabia apenas que não era um mortal comum e também que era superior aos outros. Não possuía nomes por que nunca havia sido batizado de nada. Apesar de já o terem chamado de demônio, fantasma, espectro e até de ceifador, nunca achou nenhuma dessas palavras verdadeiramente suficientes para descrevê-lo, mas nada disso era importante. Preocupava-se somente em saciar essa sua estranha fome.

Usava um longo manto com capuz que cobria seu rosto por completo, até o queixo, como se fosse uma espécie de máscara negra. Possuía estranhas marcas similares, mas não idênticas, as tatuagens de tribos montanhesas. Andava recurvado e com cabeça baixa, não por possuir qualquer problema de postura ou por carregar um grande pesar, apenas não possuía orgulho para andar reto e olhando para frente, nem depressão para nem ao menos conseguir sair do lugar. Não se importava com o mundo a sua volta, nem com os caminhos que seguia. Apenas andava e sorvia as almas daqueles que cruzassem seu caminho caso sentisse sua única necessidade.

Quando um dia passava por territórios de cidades próximas do deserto cruzou seu caminho com uma bela jovem de vestes simples, sujas e velhas. Ela descansava sob as sombras de uma grande amendoeira. Tinha aspectos dos nômades do deserto e andava com o corpo todo coberto. O que mais chamou a atenção dele fora a essência dela.

Por se alimentar das almas de outros seres tinha a capacidade peculiar de enxergar através do corpo e sentir a essência da alma. A dela era perfeita, muito diferente das outras almas acinzentadas e sem personalidade. Era rubra escarlate, de um tom intenso e vivo que reluzia e o fazia quere-la para si, não para devorá-la, mas para preencher sua própria casca oca com ela. Diferente de todos, ele não possuía essência e exatamente por isso deveria alimentar-se da de outros.

Sentiu, quando se aproximou dela, um estranho formigamento que o consumia por dentro, levou instintivamente uma das mãos em direção ao peito e notou que este reluzia numa tonalidade acinzentada que rapidamente passou para um azul escuro, profundo e frio.

Num simples segundo percebeu muitas coisas antes inimagináveis para sua mente insensível. Provou do gosto da própria saliva, sentiu o cheiro da terra quente e semi-árida, também se abafou com o calor do sol que castigava o solo e seu corpo. Sentiu necessidades de sombra, mas também um incômodo de talvez invadir o espaço alheio. Pela primeira vez se preocupava em ser visto como um intruso. De alguma forma a essência dela fez despertar nele uma essência oculta que ele nunca cogitara possuir.

A donzela parecia ter visto o estranho que estava ali perto, algo nele a cativou. Provavelmente suas vestimentas e marcas exóticas distribuídas pelos braços. Era uma jovem curiosa que saiu do deserto apenas para poder conhecer as culturas diferentes que existiam fora do mundo onde nascera. Sentou-se um pouco mais para o lado e o convidou a lhe fazer companhia.

O ceifador aproximou-se em silêncio e um pouco sem jeito. Era a primeira vez que socializava com alguém. Não sabia exatamente o que fazer. Apenas sentou-se calado levantando o capuz apenas o suficiente para que pudesse olhá-la indiscretamente com ares tímidos. Só agora percebia como ela era bela, sua pele morena e castigada pelo sol era muito exótica, seus olhos possuíam tonalidade de preto tão profundo quanto os cabelos, estes ondulados e sedosos que cobriam parte de suas bochechas com algumas mechas.

Sentindo-se observada a donzela retribuiu os olhares dele com a mesma indiscrição. Deixara que ele a observasse sem se incomodar e agora queria ver o rosto dele. Perguntou com voz gentil percebendo a timidez dele: “Por que não tira o capuz? Está quente hoje...”. Ele continuou calado e, ficando nervoso, apenas desviou o olhar enquanto ela insistia para que o desconhecido se mostrasse.

Impaciente e já um tanto cheio das atitudes dela o ceifador se levantou. Ignorou todo e qualquer sentimento incompreensível que lhe surgisse e decidiu devorar aquela bela alma. A donzela também levantou percebendo que ele estava sério. Pensou em perguntar o que havia de errado, se ela havia dito ou feito algo de desagradável.

O ceifador simplesmente não ouvira, parecia ter voltado a ser a antiga criatura sem alma de antes. Queria apenas pegar logo aquela essência vermelha e absorver todas as novas sensações para saciar uma nova fome: Sua curiosidade. Pretendia descobrir mais sobre os sentimentos, mas se para sentir tinha de estar perto da alma daquela jovem então a devoraria de uma vez e não precisaria mais dela.

Ele removeu seu capuz completamente enquanto a olhava com uma expressão de malícia e seriedade. Levou uma de suas mãos em direção ao busto da donzela calmamente, que é o ponto onde toda alma brilha de forma mais intensa. Ela sentiu um calafrio enorme e estremeceu paralisando em seguida. Ele era um jovem estranho de cabelos curtos, ralos, de um negro sem vida, seus olhos castanhos eram como folhas secas de outono e sua pele era da cor das nuvens. Não compreendia a situação, mas sabia que aquele desconhecido não tinha as melhores intenções com ela. Queria sair dali ou tentar dizer alguma coisa, mas não conseguia fazer nada.

Enquanto a mão dele trespassava suas roupas e seu corpo como se estes fossem intangíveis, ela sentia aos poucos um extenso vazio que invadia cada vez mais todo seu interior, até que finalmente ele alcançou e segurou firmemente a essência dela. A donzela sentiu um aperto forte no peito e quando ele retirou a mão ela caiu de joelhos enfraquecida, sem saber por que. Pela primeira vez viu e sentiu a intensidade de sua própria alma e também uma estranha admiração por si mesma.

Sorrindo maquiavelicamente, ele levou a mão que segurava aquela intensa luz rubra em direção à boca para devorá-la, mas percebeu que cada vez mais a donzela empalidecia e perdia as forças. Sentiu-se estranho como se estivesse cometendo um dos maiores sacrilégios do mundo. Algo lhe dizia que aquilo estava errado, que não deveria ser assim. Sem saber por que se agachou frente a ela e perguntou: “Você quer viver?”; ela respondeu positivamente quase sem forças com um balançar afirmativo de sua cabeça. “Não sei por que, mas eu também quero...”; sussurrou para ela e depois de uma curta pausa continuou: “Não entendo como, mas sei que você não gosta de sentir, você odeia seus sentimentos por não compreendê-los plenamente. Posso lhe fornecer uma nova vida, melhor e sem sentimentos. Em troca tudo que quero são esses sentimentos que você tanto rejeita. Aceita?”; ela novamente assentiu com o mesmo gesto afirmativo. O ceifador esboçou seu primeiro sorriso de satisfação.

Levou a mão em direção ao próprio peito e, como fez com ela, a introduziu dentro de seu corpo guardando a essência rubra dela junto de sua própria essência azulada que ele antes não sabia que possuía. De alguma forma ele se sentiu feliz pela primeira vez em toda sua vida imortal, como se todos os anos que passara devorando almas fosse com o único objetivo de encontrar a essência dela. Aos poucos ela começava a se reanimar, a cor de sua pele voltava a ter vida e novamente estava de pé, mas ainda se sentia um tanto fraca, estranha, sem ânimo...

“Sempre que estiver próxima a mim estará próxima de sua própria essência então voltará a ter seus sentimentos mais profundos. Quanto mais longe estiver de mim e sua essência acontecerá o contrário e se tornará cada vez mais uma pessoa indiferente e insensível. Agora pode tomar o rumo que quiser, eu continuarei seguindo os meus.”; deu as costas para ela e continuou andando como se nunca a tivesse visto.

Uma coisa com que o ceifador não contava era o fato de que a cada passo que ele dava para longe dela sentia como se estivesse deixando uma parte de si mesmo para trás. Não entendia aquilo e pensou que talvez estivesse tendo pela primeira vez empatia por alguém, já que agora ela era como antes ele fora, uma casca vazia. Por fim, entendeu que não era apenas isso, mas a essência da donzela mesclada com a do ceifador fez que com ambos se tornassem um único ser que possuía dois corpos distintos.

Entretanto a necessidade de estarem juntos era muito maior para ele que possuía o peso de duas essências do que para ela, um corpo oco. Mesmo assim percebeu rapidamente quando a donzela deu os primeiros passos em direção a ele. O ceifador parou a esperando, ambos se entreolharam e sorriram como se compreendessem a necessidade que surgira com o pacto. Dispensaram palavras ou explicações e continuaram andando sem rumo, juntos...

O que o ceifador não disse para a donzela era o fato dele ser imortal e que agora que a essência dela estava com ele, a donzela também compartilharia desse dom tão cobiçado por uns e menosprezado por outros.

O que a donzela não disse para o ceifador era o fato de que pela primeira vez ela sentia que estava sendo cuidada por alguém, protegida. Em toda sua vida de nômade sempre teve que cuidar de si própria e sobreviver em meio aos perigos do deserto. Nunca havia sentido antes como se dependesse um pouco de outra pessoa e não conseguia ignorar uma leve sensação prazerosa ao ficar sob os cuidados de alguém de confiança. Era um fato, confiava nele sem nem ao menos conhecê-lo. Nem cogitava uma possível traição.

Esse estranho casal aos poucos se conheceu cada vez mais, revelaram segredos, descobriram fraquezas, tiveram momentos, brigas e até certas traições. Arrependeram-se de seus erros, perdoaram uns aos outros e a si mesmos apenas para cometerem novos erros e novos arrependimentos, como acontece com todas as pessoas nos tortuosos caminhos da vida. Viveram incontáveis histórias e conheceram muitas pessoas, mas esses foram apenas outros dos caminhos de suas vidas.

Pelo menos essa parte da história, esse breve encontro inicial onde tudo recomeçou acaba por aqui, mas o fim de qualquer dos caminhos da vida está ligado ao começo de um novo caminho. Da mesma forma que o caminho contado aqui foi apenas a seqüência de um outro que antes já fora percorrido. Assim é a vida, uma longa estrada cheia de caminhos tortuosos, alguns certos e outros errados. Mas quem será que os escolhe? Nós mesmos em nossas ambições ou obsessões? Ou seria o destino...?