A Última Batalha

Seguiam com cautela pela íngreme colina que os levaria até onde habitava àquela que se esconde nas trevas. Também conhecida como àquela que profana sepulturas e ladra de almas. Ou apenas Peoria Mah, como se acreditava ser seu nome de batismo. Isto é, se uma criatura daquelas tivesse sido batizada. Diziam que havia nascido das entranhas da terra ou do cruzamento de uma virgem com alguma coisa concebida apenas nos pesadelos mais terríveis que a mente humana era capaz de produzir. Ou, se realmente fora batizada, comentava-se que fora um batismo de sangue, banhada pelo sangue de um recém-nascido, arrancado do ventre de sua mãe pela lâmina de uma adaga ritualística.

— Tenham cuidado. — disse Carver à frente, liderando seu grupo. — Assim que entrarmos na floresta deveremos nos deparar com o suposto cão-de-guarda dela.

— Isto é se aquilo for um cão. — Took disse, com um nervosismo perceptível em sua voz. — Você viu o que ele fez com o gado daquele homem.

— Cão ou não, ele protege a casa daquela bruxa e vai atacar qualquer um que entrar em seu território. — Carver respondeu com a tranqüilidade e a frieza com a qual Took já se habituara. Nada parecia ser capaz de assustá-lo.

Seguiram no limiar que divisava a coragem da sanidade, pois ninguém em sã consciência aceitaria um trabalho como aquele. A não ser Brad Carver, àquele mercenário louco que não recusa nenhum trabalho, diziam. Mas apenas aqueles que o acompanhavam em suas aventuras podiam opinar sobre sua sanidade. De louco não tinha nada, apenas uma coragem descomunal e uma aparente falta de temor a qualquer perigo que se apresentasse para ele.

Seus companheiros comentavam entre si sobre o que deixara Carver daquele jeito, frio, sem emoções. Talvez um grande golpe em seu passado. Mas ninguém sabia nada sobre sua vida anterior. Nem mesmo Hosmond, seu companheiro desde a adolescência, quando roubavam moedas das bolsas de comerciantes despercebidos nos centros das cidades.

Desde que Hosmond o conhecia, Carver apresentava o mesmo comportamento. A frieza descomunal, a coragem sem igual. Mas ele precisaria de muito mais que coragem para enfrentar o que estava por vir. Heleonora lhe prevenira ao aceitar o trabalho que não seriam necessárias apenas coragem e força para enfrentar Peoria. Bruxas eram perigosas, e astutas. Era necessário ser mais esperto que elas para confrontá-las. Mas Carver não temia a astúcia da bruxa. Ele jamais recusara algum trabalho e esperava continuar assim.

Com um homem destemido à frente e seus três fiéis companheiros a lhe seguir, o grupo de corajosos mercenários seguiu em frente. Entraram na soturna floresta e seguiram por entre suas árvores medonhas. O povo do pequeno vilarejo acreditava que a floresta era assombrada pelas almas errantes daqueles que haviam perdido suas vidas pelas mãos de Peoria. Mas isto era apenas uma crença para justificar os estranhos ruídos que profanavam os ouvidos daqueles que a cruzavam durante a noite.

— Parados. — Carver sussurrou. — Quando eu disser para vocês correrem, vocês correm. E espero que só parem ao encontrarem a casa da bruxa.

Hosmond se aproximou, colocando a mão direita sobre o ombro de Carver.

— Carver...

— Corram! — Carver gritou. — Corram agora!

Ainda sem entenderem o que estava acontecendo, se colocaram a correr, deixando Carver para trás.

— O quê ele está fazendo? — Took perguntou confuso.

— Nos fazendo ganhar tempo. — Hosmond replicou. — Nós perderíamos muito tempo se ficássemos os quatro para matar o cão dela.

— Ele não pode matá-lo sozinho! — Heleonora diminuiu o passo, olhando para trás.

— Não pare! — Hosmond gritou. — Confie nele. Ele sabe o que faz.

Um uivo gutural soou no meio da noite, fazendo gelar o sangue até dos guerreiros mais corajosos.

Heleonora voltou ao seu passo normal e seguiu junto dos outros dois, até por fim encontrarem a casa de Peoria.

Took irrompeu pela porta, no melhor estilo de Carver, sem cautela nenhuma. Em sua tênue juventude, tentava imitar todos os passos do homem mais velho.

— Took, espere! — Hosmond gritou, mas tarde demais. Pois o rapaz já se encontrava dentro da casa. Ele e Heleonora seguiram o mesmo caminho do imaturo guerreiro e se deparam com ele parado em meio ao cômodo escuro. Iluminado apenas pelas chamas das velas negras que emergiam sangue.

— Tem algo errado comigo. — disse assustado. — Eu não consigo me mover.

O crocitar debochado de Peoria soou em meio à escuridão.

— Seu idiota. — Heleonora censurou-o, observando os estranhos desenhos sob os pés de Took. — Ela enfeitiçou você.

Havia um choro em meio à escuridão. Hosmond buscou a origem do som e avistou o menininho preso dentro de uma gaiola.

Ali está ele, pensou se aproximando da gaiola.

— Pare! — Peoria guinchou, ainda sem se mostrar. — Mais um passo e eu mato ele.

Took gemeu.

— Droga! O há comigo.

A bruxa gargalhou.

— Você pegou o menino errado desta vez. — Carver irrompeu pela porta. — O pai dele é um homem muito rico e colocou uma recompensa alta pela sua cabeça. — jogou a cabeça da besta que matara na floresta em meio à escuridão.

A bruxa gemeu.

— Meu querido Otto. — vociferou. — Você vai pagar por isso!

— Não. — Carver desembainhou sua espada. — Você está em inferioridade numérica se não percebeu.

— Não se aproxime ou eu mato esse paspalho.

Took gritou.

— Droga!

— Você não tem escapatória. Faça mal a ele que você morre. — Carver disse, com sua usual frieza. Hosmond e Heleonora apenas observavam a atitude vil dele. — Se entregue agora que eu lhe prometo uma morte rápida.

Peoria gritou frustrada.

O menino começou a chorar com desespero na gaiola. Carver o percebeu e começou a se aproximar.

— Pare! Eu vou matar ele. — a bruxa vociferou.

Took gemeu com agonia desta vez.

— Faça o que ela manda. — implorou.

— Eu vou matar você por isso. — Carver replicou com desgosto se aproximando da gaiola.

A bruxa gritou.

— Pare! — Heleonora interveio, percebendo que Carver não cederia nunca. — Nós só queremos o menino Peoria. Solte ele que nós lhe deixamos em paz. Depois você poderá continuar com o que vem fazendo por aqui. Nós só queremos o menino e nada mais. Solte o menino que nós vamos embora.

Um momento de silêncio.

— Vocês estão falando a verdade?

— Sim. — Hosmond tomou a frente, nós arqueiros de Pieda nunca mentimos.

— Segurem o macaco de vocês então.

Hosmond aproximou-se de Carver e segurou seu braço.

— Ela sabe o que está fazendo. — sussurrou para o amigo.

Peoria se mostrou e vagou até a gaiola, abrindo-a.

— Se vocês estiverem mentindo, eu juro que mato aquele pirralho. — disse apontando para Took. Com dificuldade, tirou o menino de dentro da gaiola e soltou-o no chão. O pequeno ao se ver livre, correu para os braços de Heleonora.

— Solte-o agora. — Hosmond apontou para Took.

Peoria gargalhou.

— Você acha que eu nasci ontem? Eu só libertarei depois que todos vocês estiverem lá fora.

— Certo. Nós vamos. — Heleonora pegou o menino no colo e se encaminhou até a porta. Hosmond tentou fazer o mesmo, puxando Carver. Mas o amigo não se mover.

— Não! — Carver proclamou e se livrou da mão de Hosmond. — Nós não terminamos nossa missão ainda. Eu prometi para aquele pai desesperado que traria a cabeça da seqüestradora do seu garotinho e é isso que vou fazer. — com a espada empunhada à sua frente, começou a seguir até a bruxa moribunda.

— Pare! — ela gritou, fazendo gestos com suas mãos como se torcesse algo. — Ou eu juro que mato ele.

Took gritou com verdadeira agonia.

— Pare Carver! — Heleonora gritou da porta. — Ela vai matar ele.

— Eu nunca deixei de cumprir um trabalho até o fim e não será hoje que deixarei de fazê-lo.

A bruxa gritou com fúria e elevou sua mão direita acima de sua cabeça, então a desceu com força até a esquerda.

O golpe final.

Em um movimento que nem mesmo Hosmond conseguiu ver, apesar de seus olhos ávidos. Carver lançou-se à frente e decepou a mão direita da bruxa, antes que ela tocasse na outra.

Peoria gritou frustrada, sem compreender o que Carver fizera. Tentou lhe amaldiçoar com todos os demônios que conhecia, mas teve suas cordas vocais cortadas antes mesmo que a mão decepada tocasse o chão. Lugar em que sua cabeça pousou menos de um segundo depois.

Voltaram em silêncio pela trilha. Heleonora consolava o menino assustado. Hosmond amparava o trêmulo Took, que caminhava com certa dificuldade. Logo atrás, vinha Carver, carregando seu precioso troféu. A cabeça de Peoria Mah.

As festividades foram muitas pela volta do menino para casa, mas maior foi à satisfação dos moradores do pequeno vilarejo ao verem a cabeça de Peoria. Uma grande festa foi dada em homenagem aos corajosos mercenários que haviam devolvido a tranqüilidade para os moradores daquele lugar. O pai do menino pagou-lhes o que haviam acordado. Inclusive o preço pela cabeça da bruxa.

Mas apesar da festa, do ouro e da bebida. O silêncio reinava entre o grupo de mercenários.

— Qual o problema? — Carver perguntou percebendo que os amigos se sentiam incomodados. Apenas ele estava bebendo.

— Você. — Heleonora foi direto ao ponto. — Você não se importa com nada, nem com ninguém. Importa-se apenas em cumprir com seus trabalhos e em manter sua reputação. Já posso até imaginar: Carver, o homem que matou Peoria Mah. Pra mim chega. — ela se colocou em pé.

— Hosmond? — Carver olhou para ele. — Você compartilha desse raciocínio?

— Meu amigo. — suspirou cansado. — Por mais que seja difícil admitir isso, eu compartilho sim. O que ela disse é verdade. Took poderia ter morrido hoje e você não se importou nem um pouco. Eu sinto que você seria capaz de passar por cima de qualquer um de nós apenas para cumprir com suas missões. — ele também se colocou em pé. — Isso está ficando perigoso para nós. Por mais que eu conheça você. Eu não conheço você. Você é imprevisível. Eu não sei se posso confiar em você. Eu temo que um dia você mate um de nós apenas para cumprir com uma de suas missões. Pra mim também chega.

— Took? — olhou para o rapaz que criara desde que era apenas um menino e o pegara tentando roubar sua bolsa.

— Eu sinto muito. — ele começou a chorar. — Mas eu podia ter morrido hoje e você não se importou nem um pouco. Cara, não dá mais. Eu te considerava um pai pra mim, você me ensinou tudo o que eu sei. Mas um pai jamais coloca a vida de um filho em perigo por causa de um simples capricho. E você faz isso o tempo inteiro. Se você não teme a morte, se você não se importa com sua vida. Isso não quer dizer que nós também sejamos assim. — ele se colocou em pé, soluçando.

— Então isso é um adeus? — Carver indagou, aparentemente indiferente.

— Sim meu amigo. — Hosmond se aproximou e o abraçou. —Enquanto você continuar agindo assim, é melhor você ficar sozinho.

Took se aproximou chorando e enterrou seu rosto no peito de Carver.

— Desculpa, mas não dá mais pra continuar assim.

Heleonora não fez menção de se aproximar, virou-se de costas para ele e aguardou pelos outros. Por que ela haveria de tocá-lo agora que estavam se despedindo. Todas as vezes em que ela desejara sentir o toque do homem que ela amava, ela a rejeitara. Trocavam apenas breves carícias, mas longe de ser algum contato. Pois Carver insistia sempre em usar aquelas grossas luvas que parecia não tirar nem para tomar banho. Ela nunca vira, nem sentira suas mãos quando as queria percorrendo seu corpo. Então não seria agora que iria consolá-lo.

— Adeus Carver, meu amigo. — Hosmond se despediu e se juntou a Heleonora. — Talvez algum dia nós possamos voltar a lutarmos lado a lado.

Took seguiu até eles ainda chorando.

— Adeus meu mestre. — disse.

Heleonora permaneceu em silêncio, então os três seguiram seus caminhos deixando Carver para trás, parcialmente embriagado e pensativo.

Uma lágrima escorreu do canto de seu olho e fez ele pensar na última vez em que chorara. Lembrava que fora quando devia ter uns onze anos e levara uma surra do pai. Lembrava-se também que prometera para si naquele dia que nunca mais choraria. Mas estava quebrando a promessa hoje. Então fez uma nova. Não pode prometer que mudaria seu jeito de ser, pois sabia que isto seria impossível. Mas prometeu que um dia reencontraria os amigos, não importava o tempo que levasse. Prometeu também que não choraria mais até que esse dia chegasse. Tomou de um só gole o que restara em sua caneca e levantou-se com ela vazia. Então caminhou para o meio da festa. Afinal ela era em sua homenagem: Brad Carver, o homem mais destemido que já pisara nas Terras Médias. E ela estava apenas começando.