O Senhor das Águas

O Senhor das Águas

Ele levantou a mão direita para acalmar as águas. Queria ver seu próprio rosto no espelho que se formaria logo a seguir. As caudalosas correntezas do Ghertauf, o grande rio que cortava a Floresta das Sombras, submeteram-se, obedientes. Verstigan ficou por longo tempo analisando a imagem que se formara. As múltiplas rugas que se espalhavam por seu rosto, emoldurado por uma espessa e longa cabeleira prateada, pareciam guardar cada detalhe de sua longa história. Os traços femininos já não o incomodavam há muito tempo. O velho Senhor das Águas tinha motivos para estar em êxtase, atingira o grau maior das habilidades do mundo sombrio, mas, estranhamente, sentia-se frustrado. Chegara, enfim, o momento supremo.

Muito tempo já tinha se passado, porém, sua mente guardava os por menores do que ocorrera. As inúmeras batalhas, os anos de dedicação aos ensinamentos do Mestre das Sombras e as etapas que teve que vencer, pareciam estar ao alcance de sua mão. Próximas demais, desconfortavelmente. O último dos Dominadores das Águas resignava-se com o passado e previa o futuro. O de antes, o imutável, permaneceria intocado, alcançado apenas pelas lembranças tristes. O depois, contudo, estava a sua mercê, de joelhos, subjugado.

Um leve puxar nos cantos dos lábios, refletido nas águas límpidas e subimissas, denunciava uma ironia sarcástica, travestida de satisfação. Verstigan parecia mentir para si mesmo. Mas o riso contido do novo mestre, escondia muito mais do que o escárnio. Seu poder não alcançava os recantos gelados de seu coração endurecido. Esta era uma luta perdida. Restava, portanto, a passagem derradeira. O momento final.

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Quando tudo começou ele ainda era pouco mais que um menino. Filho único de Contifar, chefe dos pescadores do litoral da Floresta, Verstigan era a esperança de seu pai em relação ao futuro de seu povo. Em tenra idade, corria pelas campinas ensolaradas, atrás de sua amiga preferida, em brincadeiras que o enchiam de alegria. Janstif, a filha mais nova de Ghertifar, rei dos Zastur e senhor das terras que ladeavam a Floresta da Névoa, não se importava em ser sua amiga, apesar das restrições impostas por sua família. Aquelas tardes eram os momentos favoritos dos garotos.

Os anos foram passando e, com eles, o modo do jovem apanhador de peixes ver a menina. A filha do poderoso rei também percebia mudanças em seu amigo de traquinagens. Tudo parecia andar bem, acompanhando o lento passar dos dias e as mudanças das estações. Eles começavam a gostar do que viam e do que sentiam. Porém, não eram somente os meninos que notavam as alterações naturais do andar dos anos. A proximidade entre os dois, aliada à chegada da puberdade, começava a incomodar ainda mais a família da menina. Mas acontecimentos inesperados adiariam um pouco a separação dos jovens.

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O conflito com o povo das ilhas Staup era iminente e conquistar aliados passava a ser a estratégia mais acertada para o momento. Os Tendor, pescadores que conheciam o mar de Shartaf como ninguém, era uma escolha acertada. Verstigan, então, seria a chave para o acordo. Estavam esquecidas, momentaneamente, as restrições da família real ao jovem pescador.

A frota construída pelos Mernenos, habitantes do aglomerado de ilhas ao norte da Floresta das Sombras, passara há algum tempo a utilizar a rota de comércio pelo mar de Shartaf e a ameaçar as embarcações dos Zastur. Era evidente a intenção de dominar a rota comercial criada pelo povo de Ghertifar. E, para piorar as coisas, os espiões do rei traziam relatos assustadores sobre construções de vasos de guerra. Era crucial que esta frota fosse eliminada ainda no porto. Somente os Tendor, os mais experientes naquelas águas revoltas, poderiam alcançar os portos inimigos numa noite de tempestade. Este era o plano do rei. Diante da inferioridade bélica e da exigüidade do tempo, o melhor seria um ataque de surpresa.

O convite para o jantar na corte foi recebido com surpresa e alegria pelo jovem pescador. Seu pai, Contifar, chefe dos Tendor, contudo, aceitou com reservas o gentil chamado, mesmo sendo a meiga e bela Janstif a portadora da novidade.

Ghertifar recebeu seus convidados com fidalguia. Especial atenção foi dispensada ao jovem Verstigan, que sentiu crescer a possibilidade, antes quase impensável, de ficar com Janstif. Em meio ao desfile de pratos e iguarias sofisticadas, o rei aproveitava para demonstrar ao pai do rapaz o perigo que representavam as ações dos vizinhos do norte. Contifar também percebia as manobras dos novos mercadores, porém, não estava certo quanto a tomar um lado da questão. Historicamente, seu povo fora, se não oprimido, no mínimo ignorado pelo povo Zastur. Ficava, então, nebuloso o horizonte que tinham pela frente. A neutralidade parecia ser a melhor escolha. O brilho nos olhos de seu jovem filho, sentado ao lado da bela princesa, contudo, decidiu a questão. Afinal, talvez aquela união fosse o fim definitivo de uma relação tortuosa que perdurava há séculos.

Pacto firmado, diante de jovens radiantes de felicidade, os senhores se retiraram para os acertos em relação aos próximos passos. Embora extremamente perigoso, o ataque em noite de tempestade foi escolhido como o melhor meio de surpreender os poderosos das ilhas do norte. Poucos soldados do exército de Ghertifar fariam parte da empreitada. Ficaria quase tudo por conta dos homens do mar.

Terminadas as tratativas, traçados os planos e findo o encontro, chegou o momento das despedidas. Janstif foi autorizada a acompanhar seu jovem amigo até o jardim. Naquela noite, Verstigan não dormiu. Olhos nas estrelas e coração para além da Floresta da Névoa, o jovem pescador e candidato a guerreiro pensava nos olhos azuis de Janstif e torcia para que a temporada das chuvas chegasse logo para que pudessem atacar.

Fim da primeira parte- Continua...

O S Berquó
Enviado por O S Berquó em 06/01/2012
Reeditado em 24/01/2012
Código do texto: T3425745
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