Rhizophora

O barulho da maré era a própria vida pulsando naquele mangue. A Rhizophora oferece suas sombras, enquanto aratus meninos enchem suas raízes de movimento; suas mães espreitam o marulhar das águas, aguardando comidas que bóiam. Um vento morno balança as folhas do manguezal. A Rhizophora se ri direitinho escutando o zumbido dos ventos, aproveitando para acariciar-lhe os sopros, devolvendo assovios e carícias.

Lá de cima o sol também aproveita pra namorar a Rhizophora, deixando pitadas de brilhos nas suas folhas, beijando-as como se beijam as moças mãos de donzelas nas tardes ensolaradas da primavera, quando ele está mais brando e gostoso; uma potência de amores. A bela árvore aqui embaixo não demora a responder os seus lampejos, lambendo as suas luzes, que percorrem o seu úmido corpo encravado na deliciosa e escura lama, razão de sua vida.

A lama por sua vez enciumada, alegando que Rhizophora mil declarações havia feito a ela, nada envaidecida, cobrava-lhe explicações. Não entendia, ela ser a razão da vida de Rhizophora e conviver com os galanteios de ventos e sol que diariamente lhes faziam a corte, fato que deixava a belíssima árvore perfumada de amores, e lama cada vez mais escura de ciúmes. Lama parecia endurecer a cada investida, cada sopro de vento e cada raiar de sol. Mas Rhizophora gostava e ficava verdinha e vistosa, derramada de olores cálidos sempre que era flertada.

Lá do seu canto a água tristonhamente ouvia as histórias de galanteios que Rhizophora contava a noitinha. Ela mesma morninha, no marulho que se fazia, suspirava apaixonada para a bela dos mangues e vez por outra se flagrava trincando os líquidos de raivinha por não ser ela a pretendida por Rhizophora, a dama da terra molhada. Outro dia a água pensou fazer pororoca para lavar as vergonhas de Rhizophora que estava impregnada de sol, assoprada de ventos. Pororoca vinha e lavava tudinho, afastava lampejos de sol e vento que se cuidasse, pois o marulhar não tava pra peixe. Esse, água não queria nem pensar em traição, expulsava tudinho de dentro de si, só pra ter Rhizophora somente pra si. Mas água é bicho grande e peixe é bem pequeninho não dava pra ver sempre as escapulidas do danado, beijando raízes da bela do mangue. Rhizophora se ria que não se aguentava, causando desconfiança nos pretendentes. Água descobriu tudinho, mas perdoou, pois peixe era miúdo demais pra abraçar Rhizophora. Era platônico o seu amor e peixe se conformava.

Aconteceu de tudo um pouco numa tarde dessas. Não é que areia percorreu o corpo de água e se pôs aos pés de Rhizophora. Nesse dia teve rebuliço, pois sol não gostou e fez muito calor naquele dia. Vento, que por sinal via tudo do alto foi assuntar com sol o acontecido e sol contou tudinho para o pretendente da bela do mangue. Naquele momento se via areia voando pra todos os lados penetrando nos olhos dos aratus meninos que adormeciam nas raízes de Rhizophora. A amada perdeu folhas e flores. Seu perfume foi parar onde desemboca água, onde outra areia, outros peixes, água salgada, siris e estrelas cheiraram tudinho e pororoca que não sabia de nada penetrou e desarrumou os cabelos de água, trazendo o sal, o siri, areia branca, estrela do mar, que pararam aos pés de Rhizophora desacordados. A meiga menina deu sua sombra pra todos e todos acordaram olhando maravilhados pra Rhizophora. Vento sentiu um ódio de si e a confusão estava arrumada.

De repente o céu que não havia se metido na confusão, entre suspiros e preocupação chamou suas filhas nuvens que acinzentaram a natureza e vento começou a ganhar força enquanto cinza as nuvens engordavam. Nesse dia água não tava pra peixe não se viu um único peixinho conversando na flor de água. Ninguém sabia de tanto ciúme de vento. E pensa que água gostou, se jogou agarrando vento que abriu redemoinho no meio de água. O sol esquentava a cabeça pra separar vento dos braços d’agua, um aperreio aquilo tudo. O reboliço foi à tarde inteirinha, um festarel de desordem aconteceu ali naquele lugar que deixou por alguns momentos de ser mágico.

A noite caiu mais cedo, pois o sol exaurido se deitou. O vento de tanto soprar na água perdeu força e se deitou. A água de tão briguenta, barrenta ficou; morreu de vergonha de sujinha que tava. A areia pivô da confusão foi varrida da face do mangue. Peixinho de olhos abrugalhados não tinha palavras; seu amor platônico estava em risco. Aratus meninos, coitados estavam todos de barriga pra cima, parecia que tinha passado temporal por ali. Nada ou quase nada estava em seu lugar. Lua tratou de desvirar aratus meninos, assear a água, dar sopro ao vento, acalentar o sol. Mas ninguém conseguiu pregar os olhos. A noite era mãe e não quis mostrar o desmantelo.

Pela manhã uma tristeza soprada, molhada, irradiada, arranhada passeava por lá. O mangue ouvia de longe um choramingar bem baixinho. Parecia zumbido de peixe, mas não era. Um rangido de aratus meninos, mas não era. O mangue estava sem perfume e lá longe estava Rhizophora envergonhada daquilo tudo de ontem, do dia anterior. Uma lágrima esverdeada descia no caule tão úmida que umedeceu ainda mais o mangue. Chorava de uma lágrima só a flor do mangue, o xodó do vento e do sol. Suas folhas estavam reviradas. Na confusão foi quase arrancada e lama não iria suportar essa dor. Na confusão do sol o calor amarelou suas folhas. A areia havia arranhado o seu caule e vento soprava um ar bem fininho pra curar uma ferida causada por ele. Todos se ressentiam em algum lugar e correram. Correram aos pés de Rhizophora e trouxeram-lhe presentes de estimação; pedidos de desculpas. Culpa não foi de Rhizophora, quem manda ser ela bonitinha e verdinha, a danada. Todos queriam dar dengo pra ela.

O sol deu a cor amarela dos colares de estrelas pra flor do mangue adornar o caule. Vento, que não tinha mais ciúmes de seu dengo, trouxe-lhe perfumes da Amazônia e dengo gostou. Areia meu Deus foi buscar no fundo dos oceanos as pérolas azuis que encantaram a enamorada da natureza. Lama lhe trouxe sustança do fundo do mangue e melou suas raízes, curando suas chagas. Estrela do mar deu-se de presente e houve muita satisfação naquele dia. Até hoje estrela do mar adorna os galhos de Rhizophora. Aratus meninos desceram os igarapés e convidaram cavalos marinhos pra fazerem sinfonia marítima para o dengo do mangue e todos dançaram.

A mais bela das árvores arvoreou e agraciou o mangue com suas frondosas folhas e abriu seus galhos e vento entrou a dançar, e sol raiou bonito no mais belo amarelo, e vento soprou as flautas mágicas nas bocas dos marinhos cavalos. Flor do mangue agora reina eterna em todos os manguezais.