O Senhor das Águas - Parte 4

O Senhor das Águas - Parte 4

A caravana dos Zastur partiu para o oeste logo que o sol raiou. O rei tinha pressa em acertar os detalhes do casamento de sua filha com o jovem príncipe dos Muralords. Assuntos políticos e comerciais deveriam ser deixados para depois das núpcias, contudo, Ghertifar planejava encaminhar alguns tratados que julgava mais importantes. Estando o povo do litoral da Floresta das Sombras em suas mãos, faltava subjugar definitivamente o reino que ficava para além das águas. Ele sabia que o ataque e o afundamento das embarcações dos Mernenos apenas adiaram o problema. Era necessário debelar totalmente o ímpeto belicoso das ilhas Staub.

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O terror e o desânimo tomavam conta de Verstigan. O rosto molhado pelas lágrimas, atrás de mãos trêmulas que tentavam esconder um semblante de vergonha e medo, estampava o desespero. A castração fora radical e apenas por muita sorte a hemorragia decorrente de um corte tão profundo não provocou a morte do jovem chefe.

Os soluços fortes do pranto incontido atraíram a atenção de Hartor, o cuidadoso anfitrião de Verstigan. Quando o velho mago da floresta entrou no aposento pode perceber a extensão do dano causado pela espada que mutilou o pobre rapaz. Seu coração cansado ficou apertado diante de tamanha desolação. Não se manifestou, inicialmente. A compreensão e o silêncio pareciam ser as escolhas acertadas para o momento. Sem palavras, o velho de barbas e cabelos longos se aproximou e tocou o braço de seu protegido. Ao levantar a cabeça e exibir o semblante desolado, Verstigan viu pela primeira vez os olhos de seu protetor. Aquele olhar firme, tranqüilo, seguro e misterioso, de algum modo, acalmou parcialmente o coração do rapaz.

-Por que fui trazido para cá? Eu deveria ter ficado lá para morrer!

-Falas do que passou. O imutável, se não ajuda, deve ser esquecido. – Disse o velho, com voz calma, quase um sussurro.

-Não sou mais nada. Não há futuro. Nem homem mais eu sou.

Verstigan falava com a voz embargada, em meio a soluços. Seus olhos, vermelhos, injetados de um sangue que ele queria que tivesse se esvaído na floresta, fugiam do olhar do velho mago.

-És outro, sem dúvidas. Porém, não és menos e nem mais do que já fora. Só o tempo responderá, assim como em outro tempo ele respondeu.

O jovem parecia atordoado com as palavras que estava ouvindo. Nada fazia sentido. “Será que este velho não percebe que já não existo?”, pensava Verstigan.

-Agradeço sua intenção, mas não sua ajuda. Prolongar minha vida só aumenta o meu sofrimento. Não quero mais viver... Não tenho mais porque viver.

-Assim, não é. A luta será dura, meu jovem, mas está apenas no começo. O grande Guardião fará seu trabalho.

Hartor pronunciou estas últimas e se afastou, em silêncio. Verstigan precisava ficar só. Mas não foi apenas do aposento que o velho se retirou. A mata fechada o engoliu por muitos dias. A ausência planejada do mago tinha um motivo: mostrar a força da natureza, dos instintos impregnados no jovem ferido. O retorno se daria no tempo adequado.

Passado o período considerado suficiente, Hartor retornou a sua cabana, nas raízes da grande árvore de Jubuarima. Verstigan não estava. Mas este, porém, não era um mau sinal. Não havia evidências de abandono prolongado naquele lugar. O velho sorriu. Sorriu por vários motivos: o Guardião fizera o seu trabalho, como sempre; ele estava novamente em sua morada; e encontrou, finalmente, uma continuidade.

Ao final da tarde, quando os cantos dos pássaros começavam a rarear e os urros dos predadores da noite estavam prestes a ter o domínio, Verstigan chegou. Trazia carne de caça. Era tudo o que Hartor esperava. Tarefas do cotidiano, da vida. Nada estava perdido.

O cumprimento não passou de um menear de cabeça. Mais parecia o encontro de familiares que viviam juntos há muito tempo. O velho sentiu o ar de constrangimento. Os olhos do jovem ainda fugiam dos seus, como a tentar evitar uma presença incômoda ou a negar uma realidade constrangedora. Era uma reação natural e esperada. Apenas mais uma fase. Outras viriam. Trabalho para o Guardião.

Fim da parte 4 - Continua ...

O S Berquó
Enviado por O S Berquó em 29/01/2012
Reeditado em 29/01/2012
Código do texto: T3468352
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