Meninos de rua, a chuva

Chovia muito. Seu corpo havia-o transportado para algum canto da cidade. Não era nada nítido para ele. Sentado na frente de uma loja do centro comercial, pensava. O olhar fixo no chão registrava as gotas que se desprendiam do seu rosto infantil e se destroçavam nos paralelepípedos da calçada. Os pingos de chuva, cada vez mais rápidos, no contato com a pele morena, morenos ficavam, arrastando o sujo. Era o magro tomando banho de corpo e alma.

Sua expressão não transmitia dor. Não estava alucinado como tantos outros, seus irmãos. Apenas um corpo molhando. Os pingos de chuva percorriam seu longo braço, escorregando pelas mãos, tomando a ponta da unha. E ali, trampolim. A camiseta, que servia de lençol, estava ensopada e colada ao corpo franzino. Denunciava uma jovialidade por trás da magreza. O calção cobria-lhe os joelhos. Cabia mais uns dez meninos ali dentro. No lado direito assentava uma sacola plástica. Dentro, mais uma camisa, mais um calção, as únicas mudas de roupas. Havia também um pequeno carro de madeira, provavelmente feito por ele mesmo. Rodas de borracha de sandálias, carroceria de caixa de maçã; fitas de aço, o feixe de molas; cabine de lata de óleo de comida e mais madeira. A sua infância não o abandonara, estava presente naquele pequeno brinquedo que o acompanhava diariamente na sua saga quase juvenil.

Todos passavam por ele. A rua agora era um pedaço de si. Não estava preocupado com os esbarrões dos pedestres que não o enxergavam em pleno dia chuvoso. Não enxergavam mesmo. É assim, estão mais preocupados em chegar a algum lugar ou a lugar nenhum. Ele não. Estava parado, compenetrado, fitando as pedras da calçada e a água suja que escorria pela avenida a sua frente. Parecia vislumbrar o espetáculo da água que se desprendia do seu corpo e mergulhava num chão cinzento. As pessoas não entendiam a poesia do movimento das pequenas gotas de água se recheando no corpo daquela meia criança. Mas ele sim. Era autor e parte da obra. Um imenso mar de versos coloridos e molhados abria-se no seu íntimo. Só a ele pertencia. Ele se apropriava de tudo e de todas as águas, gota a gota, transformando-as em rimas, metrificando-as no inconsciente.

Um olhar de satisfação escrevia aquilo tudo: o corpo molhado, o som da chuva, o barulho de sapatos encharcados esbarrando e se esbarrando na pressa. A fugacidade do pingo impossível de deter. Ali estavam os ingredientes de uma ficção vespertina de um rebento do asfalto. As suas fontes eram cotidianas, repassadas todos os dias no seu olhar, revisitadas diariamente. Ele sorria, enquanto os pingos cada vez mais rápidos, em tempestades torrenciais, despencavam mais e mais das pontas dos dedos, precipitando-se no chão molhado, aglutinando-se uns nos outros, formando filetes de rios.

O menino parecia prever o futuro daquela água. A sua frente, um muro ladeando a maré. Buracos no muro eram a ligação entre o escorregar da chuva e o rio que corria mais ao largo. A divisão entre cada pedra da calçada indicava o caminho das águas, fazendo correr a li um rio que agora ganhava a contribuição salgada das lágrimas encantadas daquele ser magro, que se transformava em poesia também. Ele percorria com seu úmido olhar as veias de águas se arrastando para formar artérias de rio e rio em braço de mar. Ele enxergava lá longe o mar.

A folhagem do mangue pingava também naquela chuva, ao que o menino transcendia a precipitação de suas gotas, transformando-as num chuvisco tênue amaciando a lama da maré. As gotículas transparentes enchiam-se em poças, caldinho de maré, fruto de vida. Tudo passado na admiração daquela criança, que transformou um fato corriqueiro de um temporal em sonho e poesia, enquanto tantos outros vêem, na corrida do tempo, muito pouco dessa mesma poesia, e que quanto mais correm, menos conseguem segurar os fios de suas próprias vidas.

Quando a chuva passou já era noite. O movimento do centro comercial tinha diminuído muito. Passavam apenas os trabalhadores do turno noturno, com suas sacolas e suas marmitas e garrafas de café. O menino ainda detinha as últimas gotas da água da chuva, fazendo-as secar nas palmas de suas mãos. O cabelo ainda molhado escorregava pela testa, sombreando as sobrancelhas. Os olhos ainda marcavam a presença de sua grande emoção, no que a boca coincidentemente concordava ao mostrar os alvos dentes e um sorriso do tamanho do mundo.

Preparou-se para dormir. Recolheu da sacola o calção e a camisa. Levantou-se, entrou num beco estreito e escuro. Despiu-se e vestiu-se em poucos segundos. Apanhou o pequeno carro de madeira. Agarrou-o infantilmente e o apertou no franzino corpo, perto do coração, ali mesmo onde passara toda a tarde vendo o espetáculo das águas que percorriam o seu corpo e ganhava as ruas. Adormeceu o poeta e a chuva.