A LIBERDADE E A GAIVOTA

A LIBERDADE E A GAIVOTA

(Belém – Pará, março de 1981)

Até onde a vista alcançava, ou seja, a linha do horizonte, só se via água - o mar. O mar, imenso lençol líquido de um indescritível tom esverdeado, de quando em quando maculado por efêmeras bordaduras de espumas brancas que surgiam e desapareciam em uma série ininterrupta, como diáfanas bailarinas a executar os passos da coreografia determinada pelo vento.

O vento naquele fim de tarde não era forte. Ainda assim, era suficiente para levantar ondas de variáveis alturas que faziam o navio balançar como se fosse mais um dos personagens daquele inusitado balé.

Do tombadilho do navio o espetáculo era admirável. A linha do horizonte possibilitava a visão do ilusório encontro do céu com o mar, como se mar e céu fossem um a continuidade do outro.

Uma gaivota solitária que de quando em quando mergulhava no mar em busca de peixe, era, além do navio, a única forma a aparentar vida naquela imensidão, mais uma das ilusões daquela cena, pois, como todos sabem, o oceano é o berço de inumeráveis formas de vida.

Nuvens brancas, nuvens altas tangidas pelo vento, desfilavam céleres assemelhando-se a reflexos das ondas no espelho límpido e azul do céu.

Restrito àqueles poucos metros quadrados do tombadilho do navio, um homem solitário conservava os olhos fixos no mar, enquanto seu pensamento voando para muito longe lhe dava a sensação da liberdade plena, da liberdade idealizada, da liberdade buscada, da liberdade infinita, embora sua viagem o conduzisse para o desterro.

Tendo já transposto a poucos a casa dos trinta anos, sentia-se ainda leve e sonhador como um adolescente. O seu idealismo anulava quaisquer dos efeitos daquela situação. Era como se todas as suas preocupações tivessem ficado retidas na alfândega, na hora da sua partida, sem lhe acenar sequer um solitário adeus. Quem sabe se, arrependidas, na tentativa de alcançá-lo, não tivessem se lançado ao mar onde foram impiedosamente tragadas pelas ondas? Sorriu desse pensamento surrealista.

Lá fora o mar. No tombadilho do navio o homem com os seus pensamentos que vagavam livres por inimagináveis lugares. Era a liberdade plena.

Mas e o degredo? A falta da família e dos amigos? Dez anos longe da pátria. E os sonhos, a namorada? Porque um homem tem que ser punido quando as suas idéias sobre liberdade, igualdade e fraternidade divergem da orientação oficial? Quando isso terá fim?

De repente, sem que houvesse qualquer testemunha, um corpo flutuou por instantes no espaço entre o céu e o mar; entre as espumas e as nuvens, enquanto o navio deixava as suas efêmeras pegadas que o mar rapidamente apagava.

Um pensamento, sem morte, ficou para sempre em algum lugar ou em todos os lugares no mesmo tempo.

Foi-se o homem. O mar recebeu em seu seio amigo aquele resto de sonho, de vida, de experiência, cuja alma atingira enfim a liberdade plena.

A gaivota que voava rápida descrevendo órbitas circulares mergulhou repentinamente no mar aprisionando um pequeno peixe para que ela, gaivota, pudesse, solitária, continuar a viver livre como é o seu destino. A gaivota não conhece filosofia, não faz planos, apenas vive.

O mar se recompôs tão logo o homem entrou com seus sonhos, tão logo a gaivota saiu com o seu peixe, e quem o visse então jamais imaginaria que nele a liberdade se havia expressado em duas formas distintas. Em formas antagônicas.

O vento agitou ainda mais o mar que agora tinha um novo habitante. O navio prosseguiu a sua viagem com um passageiro a menos. A gaivota continuou a voar em círculo buscando os seus peixes naquele cair de tarde. E a liberdade...