O ENCONTRO DE MOÇAS NÃO MUITO COMPORTADAS, SOB A MANGUEIRA CENTENÁRIA

No primeiro domingo de dezembro de 1993, por ocasião do encontro de ex-alunas da primeira e segunda séries do ginásio nos idos de 1952 e 1953 do antigo colégio de freiras Nossa Senhora do Patrocínio, em Itu, São Paulo, muita coisa aconteceu.

Nesse dia, entre abraços e apresentações – de maridos, filhos e netos – partimos para a rememoração do nosso passado de adolescentes internas (internadas, melhor dizendo) num colégio de freiras extremamente conservador. Aquilo que eu pensava esquecido voltou e, então, passamos o dia todo entre gargalhadas. Sentadas à sombra da mangueira, árvore centenária, eu e minhas colegas de ginásio começamos a fiar o tecido retrospectivo de nossas vidas.

O reencontro, depois de 41 anos, foi incrível e patético. Munidas de fotos, diários, santinhos, faixas com os nomes escritos, com datas e as épocas do nosso passado, tentávamos-nos “achar”. Naquela época éramos adolescentes de 11 ou 12 anos. Hoje, mulheres feitas, senhoras gorduchinhas, enrugadinhas, vovós. Algumas estavam bem conservadas, outras menos. Nos reconhecer nessas condições, seria muito difícil, senão impossível!

O agrupamento inicial foi providenciado pela Irmã Cândida de Jesus (Candinha) que, apesar de muito idosa, nos recepcionou logo à entrada do Colégio. Havia colocado faixas indicativas da primeira série de 1952 e da segunda série de 1953. O resto foi mais fácil e, assim, nos reencontramos. Algumas já haviam falecido: a Ema, por exemplo, nossa colega mais engraçada – para nós, meninas, o nome lhe era propício, pois era muito alta, quadril largo, como uma ema -, falecera em 1989 sentada na sua cadeira de balanço onde ninava seu netinho. Ficamos chocadas!

Mas, o que mais entristeceu o grupo, foi a notícia da morte de nossa querida Irmã Ida de Jesus, dois sábados antes do nosso encontro.

Irmã Ida de Jesus, pessoa especial, linda, meiga, mestra de francês, amiga das meninas, sempre estava pronta a nos mostrar as possibilidades que tínhamos para escolher, com respeito e dignidade, com coragem e sabedoria, o caminho que nos levaria a considerar nosso próprio desejo, sem ferir os demais – coisa muito difícil, principalmente na adolescência! Para ela tudo era humano, portanto, passível de entendimento e compreensão e, jamais, de repreensão. Quantas vezes ríamos dela, pois, apesar de ter dentes muito alvos, eles eram ligeiramente separados, o que a fazia sibilar quanto entrava na sala de aula: “Bonjour, Nous vous salut Marie! Aujourdou’hui nous verrons um verbe a la vox passive, conjugé avec être: être aimé”. Falar de amar e ser amado em francês era nossa glória e ela sabia disso. Era sua forma de tocar em assuntos tão proibidos na ocasião, mas tão necessários para nossa vida futura. Mostrando-se avançada e corajosa para o tempo e para o seu grupo, ela conseguia tudo o que queria de nós, nos ajudando nas nossas questões pessoais. Aprendíamos a amar e a ser amadas, sem medo, sem pecado, sem vergonha!

E a sua aula passava voando! Quando Irmã Ida saía, ficávamos indignadas com a diferença da mestra seguinte, a Irmã Metilde, mestra de latim, mulher fria como um gelo, branquela como uma lesma, incapaz de esboçar a menor emoção ou uma palavra afetuosa para as meninas. Sempre carrancuda, escondia um rosto bastante bonito por traz daquela máscara. Que sabia latim, isso era verdade, mas que não entendia - ou não queria entender – nada de mocinhas adolescentes, longe de seus pais, isso não entendia mesmo! Nós a odiávamos. Voz soprano maravilhosa, além do latim, era a nossa mestra de canto orfeônico.

Como podiam ser tão diferentes? As duas eram freiras, quase da mesma idade, mas, naquela época, nada sabíamos das subjetividades.

Irmã Ida estava com 76 anos quando faleceu vítima de um câncer que lhe consumiu o seio e lançou metástase pela coluna, tomando-lhe todo o corpo que era tão bem feito. Lembramos como ficávamos admiradas com a sua cinturinha fina e seus seios fartos, próprios para amamentar, ocultados pelo pesado hábito preto. Lembramos das inúmeras vezes que lhe perguntamos, curiosas: “— Por que a senhora é freira?”, “— Já teve namorado antes de ser freira?”. Nossa curiosidade juvenil às vezes ultrapassava certos limites. Nossa imaginação, fértil, estava sempre bolando histórias sobre o porquê que aquelas mulheres eram freiras. Achávamos que eram freiras porque tinham sofrido desilusões amorosas ou tinham sido proibidas pelos pais de se casarem com homens que eles provavelmente não achavam adequados para suas filhas ou, essa era a pior: tinham ficado grávidas e haviam sido expulsas de casa, nada mais lhes restando a não ser ir para o convento, ou para a prostituição. Preferiram o convento! Enfim, todas as histórias tinham sempre uma conotação erótica, talvez pelo intenso controle de qualquer demonstração da nossa sexualidade emergente. As idéias brotavam como flores na primavera de nossas cabecinhas.

Um dia combinamos, sigilosamente, que iríamos descobrir como as freiras dormiam, se de hábito ou se colocavam camisola para dormir. Se raspavam seus cabelos era a nossa maior curiosidade. Foi então que planejamos a façanha o ano todo.

Para terem uma idéia, o dormitório dos Santos Anjos era enorme. Doze camas “patente” colocadas paralelamente no lado direito e doze no lado esquerdo. No início do conjunto de camas da direita e da esquerda havia um quartinho, cujas paredes eram de cortinas de pano branco. Neles dormiam duas freiras que controlavam o dormitório durante a noite, circulando intermitentemente, como que vigiando nosso sono, nossos sonhos, além de controlarem a posição de dormir, do lençol, do virol, do cobertor! E assim revezavam-se até que todas nós dormíssemos. Então, elas também iam dormir.

Pois bem, durante o ano todo ajudadas pelos nossos irmãos que nos visitavam aos domingos, fomos guardando bolinhas de gude que eles nos traziam aos poucos, escondidas, para que ninguém desconfiasse. Guardando não! Escondendo, pois se as freiras descobrissem, estaríamos perdidas.

No final do ano, quando já dizíamos os famosos “Deo Gratias” pela proximidade de nossas férias, tínhamos tantas bolinhas que os nossos sacos-bolso estavam cheios. Todas nós podíamos carregar, amarrado na cintura, por baixo do pesado uniforme azul marinho de casimira, um saco-bolso, inspecionado pela mestra de classe em horários e dias aleatórios para ver o que carregávamos nele. Não podíamos ter espelhos, pentes, nada que cuidasse da nossa beleza. Só lenço, santinho e terço. Nem mesmo uma bala para chupar durante o recreio, porque tudo tinha horário e lugar corretos para acontecer. Recreio era para brincar e não chupar balas. Mas, apesar dessa vigilância incansável, conseguimos superar todas as dificuldades e já íamos executar o plano, que era o seguinte.

Depois de fingirmos estarem todas dormindo e as freiras do dormitório deitassem certas de que tudo estava na mais perfeita ordem celestial, as duas alunas que deitavam nas últimas camas da direita e da esquerda, levantariam cuidadosamente e soltariam os dois sacos cheios de bolinhas de gude por debaixo das camas “patente”. Como o chão era de assoalho de madeira, com certeza o barulho, supúnhamos, seria infernal e faria com que as freiras saíssem correndo de seu quartinho sem terem tempo de se trocar e nós teríamos a chance, única, de saber se estavam ou não de camisola, se eram carecas. Enfim, saberíamos de tudo...tudinho... desvendaríamos segredos de estado! Planejamos o feito para o final do ano justamente para evitar qualquer tipo de punição mais severa. No máximo seríamos advertidas, nossos pais saberiam de nosso ato vil, mas que importaria? Eles também estavam saudosos de nossa companhia e não iriam ficar bravos ou nos castigar. Quando regressássemos o próximo ano, ninguém mais falaria no caso.

E fizemos como planejamos. Quando as bolinhas foram soltas, parecia o fim do mundo. O barulho foi tão intenso que acordou o colégio inteiro. Até o Padre Capelão foi saber o que tinha acontecido. As freiras saíram de seus quartinhos do mesmo jeito que sempre estavam: de hábito preto. Que decepção! Um plano tão bem bolado e planejado para nada! Fomos castigadas indo para a capela rezar, ajoelhadas, até a Santa Missa às 5h30m. Que belo castigo!

No dia seguinte as irmãs queriam que contássemos sobre o acontecido e quem tinha sido a mentora do plano. A solidariedade dos transgressores falou mais alto e ninguém abriu o bico, nem mesmo a chata da Salette Liliane. Ela sempre nos delatava quando transgredíamos. Nunca entendemos porque ela fazia isso, afinal era aluna e não freira! Soubemos que ela se casou com um mexicano, engenheiro e que mora no México. Será que continua a mesma? Foi a pergunta que todo o grupo fez.

Mas, desta vez, ela não nos delatou, provavelmente porque a ameaçamos de enfiar-lhe uma lata de leite em pó pela goela abaixo, caso contasse alguma coisa!

“— Vocês se lembram da história do leite em pó?” perguntou Estelita. “— Claro que sim!”, respondemos.

Era delicioso encher a boca de colheradas de leite em pó, sem poder falar, até que o leite começasse a se misturar com a saliva e nos deixasse com os dentes cheios daquela pasta que tanto saboreávamos. E é claro que nos lembramos de um outro plano que executamos, por ocasião do Retiro Espiritual de 1953. A então Madre Superiora da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, da mesma irmandade, veio para nos visitar e passar a semana do Retiro conosco.

O nosso plano era encher a boca de leite em pó e depois cuspi-lo no hábito da visitante ilustre. Mas, como íamos fazer isso sem que as freiras suspeitassem que era proposital? Aí, uma iluminação súbita: “—se cuspíssemos na hora que ela passasse por nós, durante o recreio? Nem iriam suspeitar que era de propósito! Poderíamos forjar um tombo ou coisa parecida!” sugeriu a Zeza.

Só para entenderem melhor é preciso contar que as irmãs superioras sempre almoçavam depois das alunas, em refeitório próprio e, para alcançá-lo, atravessavam o pátio do recreio acompanhadas pela Madre Superiora – a Madre São José -, quando aproveitavam para nos espiar e saber se estávamos brincando de brincadeiras de meninas. Além disso, é bom dizer que toda visitante ilustre era reverenciada por nós como se reverenciam as rainhas: pé direito para traz, joelho ligeiramente genuflectido e as mãos segurando a ponta da saia, o corpo ia abaixando lentamente e a cabeça pendia um pouco para a frente. Um verdadeiro malabarismo que fazíamos com toda a graça da nossa juventude.

Não é interromper a narrativa do plano para lembrar que só mulheres, à exceção de nossos pais e irmãos, entravam no colégio. Quando muito entravam encanadores ou eletricistas, jardineiros ou pintores, quase sempre velhos e de má aparência. Até o dentista era um velho. Vinha uma vez por semana e nunca cuidava de nossos dentes como hoje cuidam os dentistas, recuperando-os. Se sentíamos dor de dente, ele arrancava o maldito, pois provavelmente não enxergava direito onde estava a cárie. Ah! Tinha também um homem que morava no colégio e sobre quem tecíamos as mais escabrosas elucubrações: o padre capelão! Gordo e barrigudo, careca, com a pele tão seca que descamava e além de tudo tinha um cheiro nada agradável! A ele tínhamos que confessar, semanalmente, os nossos pecadinhos juvenis!!! E ele era quem ordenava a missa diária e as comunhões!

Bem, voltando ao plano, estávamos todas no pátio, brincando, quando avistamos a Irmão visitante – Madre Paula, se não me engano – acompanhada da Madre São José, da Irmã Inês do Sagrado Coração e de mais duas freiras de São Paulo descendo as escadas em direção ao pátio. Imediatamente nos entreolhamos e as meninas que tinham guardado o leite em pó em seus bolsos, o colocaram em suas bocas. Como tínhamos de parar de brincar para reverenciar as freiras quando passassem, fingimos perder o equilíbrio na reverência e caímos por cima das meninas que estavam com o leite armazenado em suas bocas. Diante do impacto estas engasgaram, e a pasta leitosa saiu de um jato só sobre o hábito preto. Que estrago! Uma correria! Segura aqui, limpa ali... enfim... ficamos felizes, pois provavelmente nem um hábito de reserva ela teria e provavelmente nenhuma de nossas irmãs poderia emprestar-lhe um, já que ela era enorme. Foi um plano certeiro para nosso orgulho de estrategistas!

Depois tivemos que lhe pedir desculpas pelo incidente e ouvi-las dizer que meninas bem comportadas, polidas e de boas famílias não poderiam ter maneiras tão rudes e deveriam tomar cuidado mesmo quando brincassem. E aproveitou para falar, também, das diferenças das brincadeiras de meninas finas e educadas e de meninas mal educadas! Imaginem só!!!

Ao lembrarmos disso, rimos muito. A única mestra que estava conosco no encontro ouviu tudo e riu conosco, como se o tempo presente, atual, lhe permitisse reviver o episódio e soltar o riso contido por tantos anos: “— Ah!... então foi tudo combinado?! Suas danadinhas...” foi o que conseguiu expressar!

É interessante como algumas experiências são comuns em intensidade e em marcas gravadas em nosso psiquismo. Esses episódios marcaram este grupo de forma tão intensa que todas nós os revivemos nitidamente.

Todas as reminiscências da juventude permitidas pelo tecer conjunto de algumas experiências do passado, foram uma brecha pela qual o trouxemos de volta tão intensamente.

Nosso domingo acabou-se quando o sino da Capela nos interrompeu anunciando o final do nosso encontro. Minhas lembranças foram interrompidas quando o meu relógio começou a tocar, despertando-me desse sonho lindo que misturou ficção e realidade!

Jozelia Regina Segabinazzi
Enviado por Jozelia Regina Segabinazzi em 03/07/2012
Código do texto: T3758597
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