Ver com os olhos de Deus

Eu estava voltando para casa naquela sexta-feira à noite sem nenhuma paradinha para happy hour ou coisa parecida. Minha mulher tinha telefonado para meu celular pedindo que eu trouxesse café e açúcar e eu estava me dirigindo para o supermercado para comprar as coisas. Estava na minha vida medíocre no meu cotidiano medíocre quando aquilo aconteceu. A bem da verdade o acontecimento a que me refiro é uma tomada de consciência e por si só não tem nada de acontecimento. Quer dizer, tem, mas não na maneira que estamos acostumados a descrever um acontecimento.

Tenho que dizer que o assombro tomou conta de mim nos primeiros momentos do acontecido e só não tive um estupor ou coisa parecida porque me controlei rezando uma antiga oração católica que um tio distante tinha me ensinado. Para resumir o que aconteceu, posso dizer que passei a ver em clarividência as auras das pessoas que estavam à minha volta. Uns tinham rabo, chifres e garras, os sinais da besta, 666. No começo, como eu disse, confesso que foi assustador ver as pessoas com chifres, rabos e garras, definitivamente não era uma visão agradável... Mas depois o grotesco e o bizarro pararam de ser grotescos e bizarros para serem norma, porque quase todo mundo na rua tinha o seu chifre e o seu enorme rabo e grandes garras. Olhava para mim e não via nada. Nunca fui um exemplo de ser humano, mas não era maldoso e poderia dizer que era uma boa pessoa. Vendo toda aquela gente “diabólica”, por assim dizer, por pouco, não desejei ter ao menos um chifrezinho.

Em termos de religião, eu sempre me considerei alguém com espiritualidade levemente desenvolvida, eu fazia minhas orações todo dia, meditava e fazia yoga. Se me perguntassem qual caminho eu seguia, poderia dizer que simpatizava com o espiritismo mas não seguia-o. Nunca havia frequentado mesas de centros espíritas nem tinha me aproximado de pessoas que houvessem desenvolvido a clarividência ou a mediunidade. De modo que ver com meus próprios olhos todo aquele festival de demônios, literalmente, não era coisa que eu sonhasse acontecer algum dia a minha pessoa.

Comprei o café e o açúcar no supermercado e estava voltando para casa, tentando não prestar muita atenção àquela gente diabólica que estava à minha volta, quando me veio a ideia de passar num sebo que tem perto, para comprar um livro que falasse de espiritualidade e me explicasse porque tinha começado a ter aquelas visões.

Por vezes, apressava o passo para não perceber os diabinhos que passavam e, por isso, entrei na livraria como um louco entra no consultório do psiquiatra, ofegante e de olhos esbugalhados... Cumprimentei a diabinha da atendente da livraria e fui até os livros. Olhei em volta e vi Ocultismo numa prateleira. Pus-me a procurar um livro que falasse de aura ou assuntos espirituais. Foi quando dei de cara com o maior diabo de todos que eu já tinha visto enquanto estava com aquela estranha capacidade. Uma grande coroa vermelha pontiaguda se avolumava na sua cabeça e um rabo maior do que nas outras pessoas se agigantava por entre suas pernas, sem falar nas garras que de tão grandes praticamente escondiam suas mãos.

-- Posso ajudar em alguma coisa? -- prontificou-se o diabão.

Entendi que ele era o livreiro do lugar, que eu conhecia há muito tempo, mas nunca tinha visto daquele jeito.

-- Estou procurando um livro sobre espiritualidade, um que seja bem forte.

-- Tenho o que você está procurando: o Livro de Avalon. O livro de Avalon conta a história dos cristais da Atlântida, desde antes do 1º dilúvio e do 2º dilúvio. O livro de Avalon se lido de forma correta, proporciona ao leitor uma iniciação nos mistérios da maçã. O livro de Avalon é o livro da ilha das maçãs e, nesse caso, a maçã como a que foi mordida por Eva, esposa de Adão. Aquele que ler o livro será dono dos conhecimentos do bem e do mal.

-- Tá bom. Vou levar.

Levei o livro para casa e quando tive um tempo, tentei ler o livro todo de cabo a rabo duma só vez. Não consegui. Era hermético demais, com linguagem rebuscada demais para ser lido assim. Dias depois minha clarividência tinha ido embora e eu já não via mais nenhum demônio no lugar das pessoas. Minha intenção era, naquele momento, me desfazer do livro porque não conseguia lê-lo e toda aquela história de ser “dono dos conhecimentos do bem e do mal” me pareceu falsa por demais. No entanto, um dia, no qual eu já tinha esquecido todo aquele pesadelo, quando eu estava colocando o lixo para fora de casa, tive uma grata surpresa; vi um grande anjo no lugar de um dos lixeiros que estava trabalhando no caminhão de lixo. Resolvi não perder a oportunidade e lhe pedir um conselho:

-- Ei amigo, se você tivesse um livro para ler que fosse como a maçã de Eva, você leria?

-- Um livro como esse, não é para ser lido. Vai contra a vontade de Deus.

-- Tem razão. Não vou ler isso não.

Longe de ser carola de igreja ou trazer a moral da Bíblia para a minha vida cotidiana, o que eu mais queria naquele momento mesmo é dar um fim aquela história de livro de Avalon. Ademais, eu não iria conseguir lê-lo mesmo. No mês seguinte passei na livraria e devolvi o livro ao sebo. Não sem antes ouvir do diabão/livreiro:

-- Vai se arrepender de não lê-lo.

Não me arrependi. Mas fiquei sabendo depois que o livreiro tinha ganhado na loteria uma bolada e tinha se tornado bilionário. Perguntei a mim mesmo, se ele não teria lido o livro e feito bom uso dele. Bom, isso eu não sei; só sei que hoje, minha “clarividência” me deixou por completo e não vejo mais nem anjos nem demônios. Se o passado e o futuro tem alguma relação intrínseca entre si que não apenas a do tempo cronológico, posso dizer que comecei a ver os demônios para poder encontrar o livro e vi um anjo para poder me livrar dele... No final das contas, o essencial é ver com os olhos de Deus.

Mauricio Duarte (Divyam Anuragi)
Enviado por Mauricio Duarte (Divyam Anuragi) em 12/07/2012
Código do texto: T3774515
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