O Flautista de Hamelin

Eles surgiam de noite enquanto todos dormiam. Vindos dos esgotos, dos bueiros se esgueirando para dentro das casas, assaltando as despensas. Nada podia pará-los, eles destruíam os sacos de mantimentos, devoram até a carne salgada, mesmo os gatos trazidos do Egito não foram capazes de vencê-los. E quando o dia raiava, gritos de desespero ecoavam por Hamelin. A horda de ratos era tão insaciável que pulavam até mesmo dentro dos berços dos recém-nascidos. Ninguém estava a salvo daquela praga bíblica. O povo, reconhecendo sua impotência ante ao mal que se abatera sobre eles, foram até a igreja rezar e pedir ajuda. E em uma manhã de sol eles foram atendidos.

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Um flautista apareceu na cidade dizendo-se capaz de libertar Hamelin. Havia algo de estranho, encantadoramente desafiador, ameaçador, naquela figura. Um bardo insano, um bobo da corte que conhece os segredos mais terríveis de seu monarca, um lunático. As pessoas não o queriam por perto, porém como nada mais fazia sentido, deram-lhe uma chance. O prefeito selou o acordo: para cada roedor, uma moeda. Ninguém sabia quantos ratos havia, ninguém esperava que ele conseguisse.

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Enquanto todos dormiam o menestrel esperava. A lua o banhando. Um pouco depois da meia-noite os guinchos agudos começaram a ser escutados nos becos escuros. Ligeiros e furtivos eles se multiplicavam, centenas, milhares, tomando as ruas. O flautista então pegou sua flauta e docemente pôs-se a tocar.

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Os ratos pararam como que encantados e se voltaram todos para ele. Então vagarosamente se aproximaram, cheirando seus pés, alguns brincando com os guizos de suas roupas, roendo seus cadarços. E mais, começaram a escalar suas pernas e a entrar por suas roupas, mesmo assim, o flautista não parou um segundo.

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As pessoas despertadas pela música abriram suas janelas e portas e viram sua cidade infestada. As mulheres gritaram horrorizadas, as crianças choravam de medo. O flautista estava coberto pelos animais, como um monstro, uma legião partilhando uma mesma consciência saído dos pesadelos do povo de Hamelin. Só depois que a cidade testemunhou seu feito que o flautista calmamente começou a andar pelas ruas, sem cessar de tocar e os ratos hipnotizados pela melodia o seguiram.

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Marchou como um conquistador liderando seu exército em frente de todos e seguiu pelo cemitério até a saída da cidade ganhando a estrada. O povo descrente do que acabaram de ver seguiu os passos do flautista.

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Às margens do rio Weser o flautista que agora começava a dançar em transe derrubava os ratos de si e eles agitados se atracavam uns contra os outros. Quanto mais ele dançava e rodopiava mais enfurecidos ficavam os ratos até que foram se aproximando do rio e se jogando, um a um, nas águas turvas. À medida em que os passos ficavam mais rápidos - dançava como se estivesse possuído - mais e mais ratos pulavam para a morte.

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O povo chorava de alegria, alguns riam histéricos, todos se abraçavam, os casais se beijavam, as crianças corriam de um lado para o outro gritando. O padre ajoelhado orava aos céus, o prefeito tragava com vontade seu cachimbo. O flautista exausto os fitava, com olhos negros. Nenhuma pessoa lembrou-se dele, lhe agradeceu, todos estavam em êxtase por se livrarem de seu castigo. Rindo e cantando em júbilo se foram sem dizer ao menos adeus. Hamelin festejou como nunca o fizera pelo resto de toda a noite.

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A cidade amanheceu em silêncio. As crianças dormiam tranquilas pela primeira vez em muito tempo. Os casais cansados pela noite de amor dormiam profundamente. O padre embriagado de vinho repousava o sono dos justos e o prefeito inacreditavelmente satisfeito por ter dado cabo do problema da cidade sem gastar uma só moeda, já que não sobrou nem ao menos um rato, dormia com um sorriso estúpido estampado no rosto.

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Assim o flautista encontrou Hamelin, indefesa, esgotada. Apenas os pássaros o recepcionaram com suas canções de primavera. Sem ninguém que o impedisse ele entrou nas casas e se serviu: fez um belo e farto dejejum, banhou-se com óleos de além-mar e perfumes caros, trocou suas roupas rotas e maltrapilhas por trajes de seda fina e encheu os dedos com anéis de prata.

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Porém o que fez seus olhos brilharem mais do que qualquer outro espólio que pudesse desfrutar foram os filhos de Hamelin. Belas criancinhas gorduchas, loiras, de pele clara como leite, rosadas até. Querubins rechonchudos e cheirosos, doces. Os meninos com seus calçõezinhos curtos e as meninas com suas camisolinhas de renda.

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Sorrindo maliciosamente o flautista alcançou sua flauta. Apenas as crianças em seus sonhos podiam ouvir o chamado. De olhos fechados e pés no chão as crianças pisavam nas pedras do calçamento seguindo o flautista que saltava como um fauno guiando cordeiros para a floresta.

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O povo quando finalmente acordou mal pôde acreditar no que acontecera. Das crianças nada mais se soube, apenas suas pegadas e camas desarrumadas ficaram para trás.

José Rodolfo Klimek Depetris Machado
Enviado por José Rodolfo Klimek Depetris Machado em 03/08/2012
Reeditado em 05/08/2012
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