Testemunhas do luar 
 

Mais de quinhentos anos se passaram, e ela continuava chorando, as lágrimas vinham ao vê-lo...
Ele estava no balcão, servindo os fregueses enquanto ela tomava seu suco na mesinha em frente.
O rapaz não podia se lembrar do que houve centenas de anos atrás, mas ela...
... Bom, ela ainda estava varrendo a dor de seu coração...
 
* * *
 
Magia, viagem astral, regressão a vidas passadas... Débora podia vê-lo, ainda, como se fosse ontem. Mas seu nome não era Débora quando o conheceu. E admirando o lindo rosto do atendente, ainda e misteriosamente com alguns traços da beleza jovial que tinha em sua vida passada, Deirdre lembrava, tristemente, da história de amor que teve com ele em outra encarnação, séculos atrás.
 
Aquela seria a última vez que o veria. E ele até já a conhecia, de tanto que ela frequentava aquela lanchonete somente para admirá-lo.
Mas agora, com um aperto no coração, sentia que já era hora de deixá-lo livre, e também de seguir seu caminho.
Faltavam poucas horas para a celebração na floresta, um evento exótico em que ela usaria uma vassoura para varrer todo o passado, abandonar o antigo e deixar o novo entrar em sua vida. Dançar ao redor da fogueira de forma libertadora, libertar-se, varrer a dor!
 
* * *
 
No passado, Deirdre achou que ele estava morto, ou mesmo que tinha desistido dela. Ma hoje, como Débora – A Bruxa, ela pôde ver, emocionada, que ele nunca a esqueceu.
No início foi apenas por curiosidade. Iniciar-se no caminho da bruxaria, até o dia em que aprendeu a voltar ao passado, ver tudo que ocorreu além de seus olhos. Tudo que ela não pôde ver porque estava atrás daquelas pequenas grades, de onde só podia ver a lua.
E hoje, ela medita com um pouco de assombro sobre o destino que a fez, como uma força interior, seguir esse caminho para poder, finalmente, reencontrar seu amado.
Porém, ela agora sentia que a coisa certa a fazer seria deixá-lo livre, e varrer sua dor.
 
* * *
 
Seu nome era Deirdre, e o dele era Noise. Foram impedidos de ficarem juntos pelo rei Conchobar, que esposou e prendeu Deirdre em seu castelo para que seu amado Noise pensasse que ela tinha desaparecido, e ela, tendo ao menos a lua surgindo e iluminando sua solidão através de uma pequena abertura com grades na parede, sentia essas “visitas lunares” como se fossem o próprio Noise. Seria a presença de seu amado, após ter sido morto pelos mercenários enviados pelo rei? Ela não sabia se ele realmente tinha morrido, mas somente hoje ela soube que todas as suas súplicas foram respondidas pelo seu amado, e que suas súplicas, na verdade, eram as respostas dela às súplicas dele...
 
* * *
 
Deirdre,
 
a lua parece tão perto... e você tão distante...
Lembra-se de quando prometemos olhar a lua cheia, todas as noites, para que tivéssemos a certeza de que nunca esqueceríamos um do outro?
Estou olhando para a lua, minha amada. E tenho certeza de que você também está fazendo o mesmo.
Não posso ir até onde você está, correntes me aprisionam!
Aaahh Deirdre! A saudade que sinto é maior que essa imensa lua cheia. Precisamos nos encontrar, mas enquanto isso não acontece, enquanto não posso olhar em seus olhos, tenho de me contentar em saber que seu olhar é refletido na lua em minha direção, radiando nossa relação, e iluminando nosso amor, Deirdre.
...
 
Noise,
 
a lua alcança a plenitude do meu amor... o vento gelado solavanca minha pele nua de prazeres e corta meu corpo, como lâminas flamejantes de uma espada prestimosamente afiada.
Enquanto contemplo a lua (aqui deste calabouço, em que talvez eu esteja para sempre encerrada), os ares salubres que permeiam meus pulmões, são fragmentos de você. Meu sonho de vida...
Meu amor, como eu gostaria de estar com você, antes ainda que a lua descesse. Como eu gostaria de estar com você, antes mesmo que me esquecesse! Antes mesmo que eu me esquecesse... e que nossas almas que unidas se enchem, minguassem como a lua, que por hora, ainda é plena!
...
 
Deirdre,
O tempo que se aproxima parece uma tempestade, mas é tão calmo...
Essa luz que a lua espalha calmamente ao meu redor deixa tudo azul, tão azul que chega a dar náusea.
E tudo ao redor parece em paz, mas dentro de mim agita-se um turbilhão teleológico incoercível, uma guerra, um caos...
A lua, desta vez, não veio trazendo a sua luz de forma brilhante o suficiente para me dar esperanças. Nuvens, vez ou outra, passam na sua frente, e muitas nuvens preenchem o céu de melancolia...
Estou acorrentado, Deirdre. Passaram-se meses de martírio, passaram-se meses sem você...
Talvez o rei Conchobar tenha mesmo vencido, e agora ele a possui de vez.
Mas por que será que essa lua insiste em aparecer, mesmo o céu estando tão cheio de nuvens de melancolia, mesmo o ambiente estando tão enjoativamente azul?
Acho que é a esperança, Deirdre. Essa esperança que aos poucos nos motiva a continuar vivendo no reino da morte, essa esperança que traz um pequeno facho de luz na escuridão, essa esperança que traz lembranças suas em minhas lágrimas, essa esperança que enferruja minhas correntes...
...
 
Noise, meu amor, essa lua insiste em aparecer, gigantesca como o amor que me devora, mesmo no vazio destes pálidos dias que dançam estericamente como defuntos...
O azul da tarde é estonteante e triste, porque agora você está aqui, porque agora você está distante, e assim sigo minha amarga e doce vigília, tristemente alegre. Porque no espelho das águas vejo junto a mim, a tua imagem, que dissipa-se como bruma quando tento tocá-la. Então, todas as vezes que esta lua se mostra plena, rogo a ela que desapareça, para que eu possa fervorosamente esperar o teu retorno, o teu retorno...
...
 
Deirdre...
Faz tanto tempo que não ouço sua voz, que parece que nos despedimos há anos... que há anos você sorriu docemente para mim... que seu sorriso parece ter vindo de uma outra vida... e parece que foi numa outra vida que nós fugimos felizes para os jardins do amor. No entanto, parece que foi ontem que você foi encarcerada. E eu sofri meu triste destino de uma existência miserável, porque sem você não vivo.
Deirdre, vejo a lua me iluminar entre nuvens passageiras de uma chuva suave de clima quente, e percebo que isso é vida, mas sem você apenas existo nessa vida, sem viver. E por mais que eu sofra acorrentado nesta minha existência miserável, por mais que essas correntes me torturem e me sufoquem, causando-me uma dor angustiante, nada disso me faz sofrer, porque não é a dor que me faz sofrer, Deirdre, e sim a impossibilidade de viver.
As terras da Irlanda me ensinaram a sonhar e ter esperanças. Deuses ocultos entre nós, indiferentes ao nosso sofrimento, continuam alimentando a natureza com a vida que se reproduz entre folhagens tão verdes quanto àquele bichinho, que se chama esperança e surge ao meu lado, lembrando que, além da lua, ele também existe para testemunhar nosso amor. E nós existimos para testemunhá-los também, minha amada. E você, eu, e esse bichinho chamado esperança, todos nós somos testemunhas do luar.
Deirdre, espero que um dia você entenda que, quando fui preso e condenado, tentei fugir, juro que tentei, meu amor. E não era minha intenção fazê-la sofrer com minha ausência. Mas o meu destino e o seu são iguais, e aqui estamos, a admirar a lua como se fosse uma imagem nossa, a nos trazer a lembrança um do outro.
Não sei... talvez você não esteja olhando para a lua, talvez você não possa... ONDE E COMO VOCÊ ESTÁ? AAH! MINHA DEIRDRE...
Não sei... não tenho como explicar isso, mas acho que sinto você me olhando pela lua, da mesma forma em que olho para você neste momento. Eu sinto...
E agora a lua se esconde entre as nuvens, e começa a chover forte. Por toda parte, tornando-se grandioso o tempo, tão grandioso como o amor que sinto por você, minha amada Deirdre...
... 
Noise...
...Após cinzentos dias tempestuosos, por entre os galhos verdes e frondosos das árvores a lua mostra sua face novamente. Tão brilhante e grandiosa quanto o sentimento que se eleva ininterruptamente em meu peito, que arde ainda mais intensamente quando vislumbro teu rosto, entre as névoas que dançam sobre o espelho lunar.
Contudo meu amor, não há estrelas sorrindo nos céus que recobrem a Irlanda esta noite, e amanhã, os galhos frondosos e verdes das árvores chorarão de novo, por mim e por você que desaparecemos com a lua. Enquanto os campos são irrigados e os soldados forjam armas ainda mais mortíferas, olhos vidrentos observam as mudanças e infiltram-se em minhas memórias como se participassem delas. Ignorando o fato de que a mim nada importa ou assusta, porque enquanto os relógios do sol estão congelados e a estação das águas se prolonga infinitamente, morro um pouco mais a cada instante que não poderemos ter de novo...
 
 
* * *
 
Noise morreu tentando encontrá-la, e ela morreu esperando por ele até o fim de sua vida passada. Mas agora, era hora de varrer sua dor.
Ela foi em direção a saída da lanchonete para nunca mais voltar, e de lá mesmo, daquela porta que ela finalmente criou coragem de ultrapassar, Débora deu um sorriso e acenou para o rapaz no balcão.
 
Noise acenou para ela de volta, apenas por gentileza, já que não se lembrava de sua vida passada, e nem poderia. Esse era um atributo exclusivo da bruxa, que viu emocionada o rapaz despedir-se e retribuir seu sorriso.
 
Ela finalmente sai do lugar, com um aperto no coração, mas livre. Sem nunca saber que nome ele tinha agora. Mas isso pouco importava agora que ela saía de encontro à lua cheia naquela noite mágica, porque para ela, ele seria sempre o seu precioso e amado Noise.
 
FIM
Sr Arcano
Enviado por Sr Arcano em 31/08/2012
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