DEUS VELA PELOS DE BOA VONTADE.

Era um homem idoso, aí pelos setenta e dois anos. Uma sexta-feira. Cada um tem o seu jeito e os seus hábitos, e seus tiques, suas manias. E os costumes se arraigam no correr do tempo. Pois a sexta-feira era o seu dia de caridade. Antigo, isso, pode-se dizer, antigo. Iniciara-se na infância, acompanhando a mãe. Era uma pequenina cidade do Sertão Nordeste, onde todas as pessoas conheciam todas as pessoas, mais pobres, menos pobres, mais necessitadas, menos necessitadas. Aliás, todos ali eram pobres. Mas sempre há esse mais e esse menos no mundo inteiro, em toda parte para todas as situações.

Na sexta de manhã, pelas nove e meia, dez horas, sua mãe se punha na porta da casa com meia saca de farinha ou de feijão – variava: sexta uma, sexta outra coisa. Nunca se lembrou de perguntar porque sempre na sexta e não no sábado ou domingo, não na segunda ou terça, quarta ou quinta. Poderia ser, veio a imaginar nos longes da vida, um costume que nascesse na colonização, com os jesuítas, os quais, por alguma razão agora inimaginável, firmassem o esmolar na sexta-feira. Sabia lá. O certo é que aprendeu que a boa ação devia ser na sexta e nessa se firmou.

Agora, velho, aposentado... Costumava dizer que era um erro da lei impor a aposentadoria aos setenta anos pondo homens sadios, competentes na ociosidade com o dinheiro público, quando poderiam oferecer sua participação e experiência, seu trabalho à sociedade. Havia quem argumentasse, a favor disso, com a necessidade de abrir espaço aos moços. Mas não era por aí, ele sustentava. O espaço aos que se iniciam na vida cria-se com o desenvolvimento e este com o trabalho. Não é remunerando a ociosidade que se faz uma sociedade desenvolver-se, senão, pondo-a a trabalhar. E fechava o argumento:

- Aprendi com um educador de minha infância, que o trabalho faz a riqueza e a ociosidade é a chave da pobreza. Em que primeiro livro de escola primária do tempo antigo que ainda alcançou o meu tempo se escreveu isso? A boa educação mudou-se em baderna e a cultura em batucada e pornografia...

Sim, era na sua sexta-feira de praticar a caridade. Morava na cidade grande. Salvador. Ia com os bolsos das calças cheios. Lado direito cédulas de um mil reis, lado esquerdo um montão de moedas de quinhentos reis. O bolso direito mostrava um grosso volume. Seguia para o centro histórico. Desceu do ônibus em frente ao cine teatro Glauber Rocha. Sentiu uma pessoa lhe meter a mão no direito. Rápido – estava na mão direita de forma que ninguém a percebia – mete a algema no braço aventureiro e tem o dono deste preso ao seu pulso. Era um garoto de treze, quatorze anos, que desandou a chorar. Ele, calado, olhando o guri e balançando a cabeça no sentido negativo da direita para a esquerda, da esquerda para a direita. Chega um praça que fazia vigilância na área e já vem de braço levantado para o menor.

- Não, não, não, esse assunto é comigo.

O praça só então o olha fixamente e reconhecendo diz:

- Dr delegado... É o senhor... Com que rapidez segurou o moleque. Esse é conhecido velho. Cansei de lhe dar cascudos, só indo para o SEAM.

- SEAM? O SEAM é uma escola de marginalidade, rapaz. Leva-o ao Juizado de Menores e diz a quem o receber, que fui eu que mandei. Dá meu cartão e diz que daqui à uma hora, duas no máximo, estarei lá (passou o cartão ao praça e tirou a algema ao garoto).

Suspirou e continuou:

- Destino meu, dar esmolas também a marginais. Estou reconhecendo o pequeno. É um dos que me freqüentam a sexta-feira. Hoje adiantou-se e quis deixar os companheiros na mão. (Virando-se para o este: - é ou não é, rapaz, me conhece ou não?).

- É, conheço sim sinhô. Mas não tinha reparado qui era o sinhô...

- Leva-o ao juizado de menores, repete ao praça e diz que fui eu que mandei. Lá todos me conhecem. Trabalhei nessa área até a aposentadoria. Aí o cartão, não deixa de apresenta-lo. Dentro de duas horas, no máximo, estarei lá. Segurem o guri até que eu chegue. Olhe, por favor, não o maltrate. Isso não se faz com ninguém. Contra um menor é um crime, você bem sabe. Se educando não se corrige, espancando estimula-se ao crime. Cria-se no menor em erro social de hoje, o bandido de amanhã. Você tem filhos, faz a pergunta pessoal, quase íntima ao praça:

- Tenho sim senhor?

- Ensina-os espancando?

- Hein? Eu...

- Aí. Já confessou que espanca seus filhos. Não faça isso. Pelo a mor de Deus. Está criando a revolta e o desamor.

Logo mais no Juizado. Cumprimenta o juiz, que o esperava e recebe com um abraço.

- Então é o delegado aposentado que ainda faz dessas?

- Aprendi a tratar com esses danadinhos. E ainda tenho razoável agilidade. Fui criado com leite de cabra. Olhe doutor, mantenho, com ajuda de amigos uma casa que chamo de Lar do Menor Carente de Afeto. Está em fase de legalização e registro. Se me dá a honra da sua confiança, levarei esse cabrito para juntar aos dez outros que mantenho, E vamos ver no que dá. Sei que o senhor está na bica da compulsória. Uso o ensejo para convida-lo a participar de um novo trabalho, esse não remunerado.

- Batido, doutor delegado. Leva o teu pupilo. Em pouco estarei ao teu lado para mais uma tarefa de apoio ao menor sem lar e sem família ou integrante de uma família miserável, de uma família transviada, que há dezenas destas.