O Trocinho

Eu vivia com meus amigos. Nós morávamos todos juntos, de certa forma amontoados, protegidos dentro de nossa caixa. Todos pequenos e frágeis, feitos de papel pintado e papelão. Tínhamos cada um a sua estampa, e cada um o seu formato, todos com base em um formato padrão. Éramos todos diferentes, mas todos de alguma forma interligados. Éramos tão unidos, que quando nossos humanos moviam nossa caixa, todos nós nos movíamos juntos. Fazíamos um som agradável e harmonioso quando cada um de nós escorregava sobre os outros e alegremente batia nas paredes da caixa. Eu gostava muito desse ambiente em que vivíamos. Era um lugar só nosso.

Aos poucos, percebi que cada um de nós sabia que pertencia àquele grupo e àquele ambiente. Então tive curiosidade e perguntei a um colega:

– Como você pode ter certeza de que cada um de nós pertence a este grupo?

– É claro que eu sou daqui. Olha lá: eu estou ali pintado na tampa da caixa!

E, de fato, bastava olhar para a tampa da caixa para perceber que cada um de nós estava ali estampado. Dessa forma, nossos fabricantes, nossos vendedores e nossos donos (que chamávamos de nossos humanos), mesmo que mexessem em nossa casa, ou carregassem de lá para cá, sempre conseguiam saber que eu e os outros pertencíamos ao mesmo grupo.

Certa vez, algo muito inusitado aconteceu.

Eu senti a força da gravidade agindo de maneira muito repentina. Parecia que o chão estava se aproximando de mim rápido demais. Deduzi que eu estava caindo. E pior: estava sozinho! Meus amigos não estavam comigo. Eu não via ninguém por perto, apenas o piso se aproximando cada vez mais. Que desespero! Eu gritava:

– Socorro! Não quero cair! Não quero cair!

Mas minha voz não saía. Eu só ouvia um zumbido surdo, e sentia como se o tempo e tudo o mais tivessem parado, e existisse apenas aquela sensação de queda interminável.

Era uma sensação de mudança muito diferente de quando nossos humanos moviam nossa casa de lugar. Eles geralmente faziam isso devagar e de maneira cuidadosa. Mas agora o movimento era brusco.

Quando percebi, bati direto no chão com toda a força do meu próprio peso. Caí desgraçadamente sobre uma de minhas saliências. Fiquei achatado, dobrado e torcido. Tudo na mesma hora. E como se isso não bastasse, ainda saí rolando e fui parar em um lugar escuro, sujo e assustador.

Senti muito medo. Fiquei tão amedrontado, que qualquer mínimo barulho já me causava um calafrio que arrepiava as pontinhas do meu papelão. Eu olhava para todos os lados e só via a escuridão. Fui me sentindo oprimido por uma sensação de confinamento no espaço em que fui parar. Parecia que era muito menor do que a minha velha casa. A altura entre o chão e o teto era certamente muito menor. Eu me sentia como se o peso do mundo estivesse sobre a minha frágil superfície. E além disso, aquele ambiente também parecia desesperadoramente vazio. Passei segundos intermináveis tentando perceber algum vestígio de luz e tentando discernir algum som familiar. Mas tudo era silêncio e escuridão.

Respirei fundo e tentei buscar uma saída para essa situação. Pensei em minha caixa, minha querida caixa, onde eu vivia tão bem... Passei um tempo falando sozinho:

– Bem, tenho que analisar os fatos. Estou aqui, confortável, na posição horizontal. Não percebo nenhuma ameaça aparente. Não tenho grandes ferimentos, apenas uma pequena deformação por causa da queda.

Considerando friamente a situação, eu estava quase concluindo que até não estava tão mal. Foi quando, de repente, um clarão de luz inundou uma imensa área, distante do lugar onde eu estava.

Nesse momento, o ofuscamento me dominou. Essa sensação foi absolutamente assustadora para mim, pois até então era completamente desconhecida. Eu me sentia atordoado pela sensação da luz.

Mas naquele momento pude enxergar uma vasta extensão horizontal. Percebi que me encontrava em uma região ainda limitada pela escuridão. Eu conseguia divisar uma área iluminada que se estendia, a partir de uma espécie de portal, uma linha divisória logo à frente de onde eu estava. Dessa linha para trás de onde eu estava, tudo era escuridão.

Para piorar a situação, percebi que a altura do espaço era ainda menor do que eu havia pressentido. Não passava de quatro ou cinco vezes a minha altura. Certamente era menor do que a minha largura ou comprimento, se eu estivesse em pé.

Distingui próximo a mim duas ou três formas desconhecidas. Uma delas falou comigo:

– Oi. Acho que você não é daqui, né?

– O-oi. N-nã-não, eu caí aqui agora há pouco. Estou... acho que... um pouco... perdido. Você pude me ajudar. Podemos ser amigos?

– Ah, eu logo percebi. A sua forma é bem diferente. Nós somos todas esféricas, e você é assim, meio... achatado!

– Realmente, eu sou meio achatado mesmo. Vocês são belas esferas. Puxa, nós somos bem diferentes. Sei que devo estar no lugar errado...

A forma esférica parecia que ia responder alguma coisa, mas não conseguiu nem começar a falar.

Naquele instante, inesperadamente, um monstro descomunal se materializou na área iluminada. Sua chegada foi tão inusitada, que mal pude perceber o que estava acontecendo. Só ouvi um forte ruído de raspagem e, em não mais do que um rápido instante, o monstro invadiu nosso espaço escuro. Sua passagem foi avassaladora! Ele entrou por um extremo do portal, avançou escuridão adentro com seu barulho assustador, e foi abarcando e levando adiante consigo tudo o que encontrou pela frente. E depois saiu impunemente pelo outro extremo, carregando o que conseguiu pegar e encerrando seu ruído de raspar.

Só consegui perceber a sensação de ser carregado violentamente de um lado para outro e de deslizar para a escuridão depois da passagem do monstro. Pensei em voz alta:

– Que coisa tão estranha e apavorante aconteceu! Eu me sinto atordoado! O que era aquele monstro medonho? Será que existem outros monstros neste lugar? Que medo!

Enxerguei perto de mim outras formas desconhecidas e iguais entre si. Eram duas. Uma delas falou comigo:

– Oi. Acho que você não é daqui, né?

– Oi... Puxa vida, alguém já me perguntou isso... Não sou daqui, recém vim parar aqui. Posso ser seu amigo?

– Eu logo vi. Sua forma é diferente das nossas. Nós somos cúbicos, e você parece meio... irregular. E achatado também! Você não terá chance contra os monstros deste lugar.

– Desculpe pela minha forma. Percebi que somos bem diferentes. Eu gostaria de ser menos... estranho. Desculpe pela minha presença. Vou embora assim que puder. Todas estas formas diferentes da minha, este lugar com estes perigos... Estou perdido.

Não sei se as formas cúbicas iam dizer alguma coisa, deixei de ouvi-las. Nunca me senti tão sozinho em toda a minha vida. E isso que eu ainda não sabia o que estava por vir.

Olhei para o outro lado e encontrei outra coisa inesperada... Formas achatadas! Eram umas quatro ou cinco, ou talvez meia dúzia de pequeninas formas achatadas! Apertei os olhos para observar melhor, e percebi que pareciam ser feitas de papel, como eu.

Algumas delas também pareciam irregulares, dobradas, deformadas, assim como eu. Um sentimento intenso se apoderou de mim naquele momento. Fiquei me sentindo eufórico. Que sensação maravilhosa a de encontrar formas como a minha! Era um grande alívio encontrar aquelas improváveis formas irregulares, minhas possíveis futuras amigas. Imediatamente me aproximei delas, não sentia mais receio de puxar conversa:

– Oi. Eu não sou daqui, recém vim parar aqui. A forma de vocês é parecida com a minha. Podemos ser amigos?

– Oi. Nós reparamos que você não é daqui. Claro que nós...

Mas não pôde concluir o que estava dizendo. Em um instante, se desfez a sensação boa. Na mesma hora, um barulho ensurdecedor tomou conta de tudo. Parecia que o mundo inteiro estava ruindo sob um som fortíssimo, como o de gigantesco motor. As frágeis formas de papel começaram a gritar terrivelmente assustadas umas para as outras.

– Socorro! Socorro! Aí vem o monstro do vendaval. Protejam-se! Fiquem juntos!

Seus gritos expressavam o genuíno desespero de quem conhece o tamanho da ameaça de perigo que se aproxima. E o perigo surgiu logo, vindo da região além do portal. Ele se aproximava rapidamente, na forma de um monstro horroroso que controlava o vento.

O vendaval começou violentamente. Parecia que começava em um extremo do portal e vinha cada vez mais se aproximando de nós. O barulho era atordoante, e o deslocamento do ar nos carregou, a mim e às levíssimas formas de papel, causando ainda mais confusão. Nós voávamos pelos ares, virávamos cambalhotas de um lado para o outro, batíamos no piso e no alto do espaço onde estávamos, tudo aos trambolhões. E fomos sendo lançados para mais perto do portal, para dentro da boca do monstro.

Então eu me vi tragado para dentro das entranhas do monstro do vendaval. Ao entrar pela sua boca, a ventania me conduziu por um túnel interminável de escuridão até o fundo de seu compartimento mais profundo, onde fui jogado por cima de outras vítimas da fúria da fera.

Lá dentro, o barulho cessou completamente. Nesse momento, minha confusão era total. Nenhuma luz, nenhum som, nenhum contato com o mundo exterior. Nada.

De repente, uma voz fraquinha se fez ouvir:

– Amigos, estão todos bem? – e outras vozes trêmulas responderam: – Estou bem. – Ouvi outras tímidas e emocionadas vozes, que então associei às pequenas formas de papel.

– Amigos recém chegados, há quanto tempo não nos víamos! Que felicidade nos reencontrarmos! É lastimável que estejamos em tão má situação.

– Amigos de outros tempos, percebo que sofremos o mesmo trágico destino de vocês ao sermos tragados pelo monstro. Ao menos, nos alegramos por estarmos juntos.

– Mas, amigos, vejo que junto de vocês veio alguém diferente de nós.

Acho que se referiam a mim, então me intrometi na conversa:

– Sou apenas um recém-chegado ao mundo de vocês lá fora. Estou sozinho, longe de casa e não tenho ninguém. Eu estava tentando encontrar amigos... Mas agora, eu e vocês estamos todos aqui, unidos pela infelicidade.

– Acalme-se, recém chegado. Perceba que ainda estamos todos bem. Nós já estamos aqui há muito tempo, mas nunca abandonamos a esperança. Sabemos histórias de quem já esteve aqui e depois conseguiu sair e voltar para os seus. Agora, em meio a este período de dificuldade, tivemos a felicidade de receber nossos velhos amigos, recém capturados. Quem sabe se um dia os seus próprios amigos não poderão encontrar você? Tenha coragem.

Ouvi aquelas sábias palavras, meditei sobre sua clareza e sabedoria, e assim comecei a ficar mais corajoso.

Nesse momento, como que ilustrando a iluminação que eu estava prestes a alcançar, um clarão de luz surgiu no alto do nosso compartimento. Parecia que o teto inteiro tinha sido retirado! E fomos inundados por aquela luz que vinha do alto.

Uma grande mão desceu então sobre nós e se dirigiu diretamente a mim, enquanto ouvi uma voz doce e calorosa dizer isto que soou para mim como uma canção:

– Oh, tu estás aí! Que bom te encontrar! Eu estava há muito tempo te procurando.

Esta mão bondosa, acolhedora e quentinha me apanhou com todo o cuidado, me ergueu muito alto, para bem longe das entranhas do monstro, e ficou me acariciando com seu fofo e carinhoso polegar. Tudo que sentia era uma sensação de segurança e aconchego.

Ainda pude ver que, lá embaixo, as pequenas formas de papel, assim como as outras vítimas do monstro, foram resgatadas de dentro dele e levadas para longe, com o cuidado de manter os amigos todos sempre juntos.

A mão que me acolheu então me levou tranquilamente para um lugar ainda mais alto, de onde pude enxergar uma paisagem linda e grandiosa. A visão era arrebatadora!

Eu chegava a falar sozinho comigo mesmo, mas não tinha palavras para descrever a magnífica beleza que tinha diante de meus olhos. Só sabia dizer que era tudo lindo!

Mais do que lindo, eu também sentia no meu íntimo que aquela paisagem era msuito... estranhamente... familiar!, constatei repentinamente. E passei a me questionar:

– Como é que este lugar onde eu nunca estive antes pode me parecer familiar?

E encontrei a resposta em minhas melhores lembranças:

– Mas é claro! Era a mesma paisagem da tampa da nossa caixa, da minha casa onde eu vivia com meus amigos queridos!

E então aquele novo-velho mundo foi se descortinando à minha frente. Pude ver mais detalhes à medida que a grande mão me foi me levando para cada vez mais perto daquela belíssima paisagem. Uma sensação de alegria transbordante me envolveu quando vi que a paisagem era formada por todos os meus amigos, cada um no seu lugar, todos interligados uns aos outros.

Por fim, fui levado pela mão até um lugar muito muito especial naquela paisagem. Estavam ali à minha espera quatro de meus melhores amigos, os que melhor se encaixavam comigo. Fui pousado delicadamente junto deles, onde ficamos todos unidos, como em um seguro e amoroso abraço.

É dentro desse abraço, o melhor lugar do mundo, que me encontro até hoje. Aqui fico curtindo a cada dia a indescritível sensação de aconchego, paz e felicidade que permanece para sempre quando encontramos o nosso lugar no mundo junto daqueles que nos amam.