A MENINA E O POETA I - O Sonho

I

O Sonho

Na Praça Saens Pena, uma menina cresceu olhando pombos voarem sobre as cabeças de velhinhos aposentados e pousarem a seus pés. Acompanhou muitas vezes os grãos de milho que escorriam de dedos envelhecidos, e amarelavam o chão sujo da praça. A praça se localizava na Tijuca, bairro de classe média do Rio de Janeiro. E aquela cena, e muitas outras, e muitas coisas mais de sua história pessoal, a fizeram olhar a vida com um outro olhar, amar escrever e sonhar transformar o mundo com suas idéias. Nem que fosse apenas seu próprio mundo particular...

Ana Luiza era uma garota tímida, recém chegada à adolescência. Vivia seus conflitos interiores de uma forma diferenciada, por conta de uma família onde a mãe era mais presente, e dava as cartas na liderança daquela cabecinha inquieta que procurava na leitura, a descoberta de um mundo que ninguém lhe passaria de mão beijada. Ela deveria construir sua própria história sem as interferências de tradições familiares, conceitos pré-formulados e religiosidades milenares. Era este tipo de educação que recebia dentro de um psicologismo barato de que “é proibido proibir”. Mas, a geração que assim pensava já se perdeu em muitas “drogas, sexo e rock-and-roll”.

Enquanto passeava nas alamedas que margeavam a praça, Ana Luiza ia olhando para os pombos esvoaçantes e lembrando dos versos de Augusto Gil:

“Rola que estás arrulando

À beira do poço fundo,

Eu também sofro e não ando

A queixar-me a todo mundo...”

Aqueles versinhos singelos, lidos alhures em outras páginas literárias, acompanhavam a pequena naquelas andanças matinais pela praça. E os pombos arrulhando infernalmente, como que a preencher sua cabecinha ainda em formação, de um lamento profundo de existir...

A menina tinha suas dores. Tinha ela seus temores. Chorava. Mas sabia chorar. Fazia-o às escondidas, no seu quarto de dormir, com a cara colada no travesseiro limpo, com cheirinho de amaciante de roupas, no qual a empregada se esmerava em trocar a fronha todo dia para que a pequena tivesse uma noite de sonhos... Ela não era como os pombos que freqüentavam uma terapia coletiva matinal à cata de alimentação por meio de um lamento gutural. Já com onze anos descobrira os livros. Fora apresentada a eles por pura curiosidade. Ao ouvir falar numa reportagem televisiva sobre o conteúdo de um livro, lembrou que já tinha visto um volume do mesmo sobre a escrivaninha de seu pai.

Quando estava sozinha em casa, foi pé ante pé ao escritório do pai e lá compulsou exaustivamente o livro que lhe chamara a atenção, tendo acesso a informações que, de outra forma, só saberia num tempo posterior de sua vida. Aprendeu com isso que os livros escondem mundos e revelam realidades que nem sempre as conversas de casa e da escola apresentam. E foi a este mundo que passou a ir, sempre que sua cabecinha inquieta pedia novas descobertas...

A partir daquele momento, Ana Luiza tornou-se uma leitora obcecada, deixando-se preencher pelo sonho de se tornar também uma escritora. Ela procura vencer todos os seus medos, lendo tudo que se deparava diante dela. Ela começou a perceber que diante de um livro sua timidez se acabava. Ela incorpora os personagens e apropria-se de sua força. Por conta de sua timidez e de uma série de decepções na vida, tornara-se uma menina retrancada, medrosa. Tinha receios de ser decepcionada, de sair frustrada de relacionamentos, assim como percebia algo de muito tênue no relacionamento de sua mãe com seu pai. E isso lhe causava estranheza.

A pequena, sem que os pais o soubessem, afinal de contas estavam ambos muito ocupados em seus afazeres, iniciou uma jornada criteriosa pelo labiríntico mundo dos livros. A mãe, uma médica, cumpria agenda diária intensa nos atendimentos do Consultório e do plantão hospitalar, além do curso de pós-graduação que fazia para incrementar a carreira profissional. O pai era um desempregado que vivia diuturnamente - segundo ele mesmo afirmava -, numa maratona pelas ruas em busca de solução para sua vida, sem conseguir êxito. O fato, que já se estendia por longos dois anos, trazia desconforto visível ao relacionamento conjugal. Mas, como estava dizendo, a menina, sem o conhecimento dos pais, que estavam muito atarefados para terem tempo de cuidar da formação da filha, tornou-se uma inveterada leitora de livros de filosofia, de auto-ajuda, esotéricos e afins; livros existencialistas, biografias e relatos nada edificantes de comportamentos sexuais de adolescentes e prostitutas deste mundo.

A sordidez do mundo caiu-lhe no colo de forma avassaladora de modo que, sem sair de casa, Ana Luiza conheceu o submundo do crime, da prostituição, da política e da mente humana, ao ponto de se questionar se a vida valia mesmo a pena, ou não seria melhor aproveitar seus dias entornando garrafões de vinho com os amigos e declamando poesias e textos de Leconte de Lisle, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Paul Verlaine, Tristan Tzara, Bertolt Brecht e Ezra Pound, dentre outros, em tardes e noitadas que promoviam nas casas uns dos outros, sob o pretexto de estudar as tarefas escolares. Se houvesse um copo de absinto à disposição, com certeza aquela cambada de adolescentes sonhadores experimentaria o mundo romântico e nefelibata da Paris de fins de Século XIX.

A menina, porém, enquanto agente de seu próprio destino, entregue à própria sorte da formação intelectual aprendida nos livros e da formação para a vida extraída de experiências de terceiros, vai tendo um amadurecimento precoce de tal forma que, aos quinze anos, já possui uma experiência intelectual acima da média para a sua idade, embora o amadurecimento emocional ficasse um pouco a desejar, pois os parâmetros que tivera não possuíam a força do peso da experiência familiar, o que perdia em impacto na sua vida e a tornava um tanto quanto insegura diante de certos fatos que a vida, já nesta fase, lhe começava a impor.

Mãe e filha são resolvidas enquanto detentoras de papéis sociais que as aproximam. Só que a menina ainda não se deu conta de que sua mãe é uma mulher madura, de personalidade e vida definidas. Ela, porém, é apenas uma sonhadora garota, que quer ser feliz na vida. Ana Luiza tem, porém, em si o germe da busca do novo. Ela avança em sua busca, sequiosa de conhecimento, e com isto vai construindo seu mundo ainda que com os retalhos da vida de terceiros colhidos nos livros.

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(*)Observação: Se deseja continuar a ler o conto em seu próximo capitulo, O ENCONTRO, acesse o link abaixo:

http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/397200

ALEX GUIMA
Enviado por ALEX GUIMA em 28/02/2007
Reeditado em 02/03/2007
Código do texto: T396527