O tobogã

Ele nunca havia estado ali antes, as ruas eram desertas e as casas desgastadas e velhas. Enquanto caminhava, pensou em sua própria vida, não tinha mais ninguém, nem filhos, nem pais, nem mulher, e acabara se acostumando com a solidão, a gente se acostuma com tudo. Achou estranho andar tanto sem ver ninguém, nenhum veículo, nenhum ruído.

Lembrou-se de que sentira essa desolação quando a mulher morrera naquele estúpido acidente de carro. Era um dia de chuva, a pista molhada e escorregadia, o veículo deslizou até chocar-se com uma árvore, e nesse acidente perdeu sua companheira. Não mais se casou, e durante anos um remorso infinito não o largava, mas o tempo é o senhor da razão e ele finalmente aprendeu a conviver consigo mesmo.

Assim refletia quando adentrou em uma rua lateral e de repente viu a construção. Era um tobogã, os mais jovens talvez nem saibam, mas era moda na década de 70, tinha em todo lugar, você pagava, subia, sentava-se em um tipo de toalha grossa e escorregava até a base, uma rampa ondulada. Sim, era um tobogã, apesar de bem velho parecia ainda firme. Intrigado, subiu as escadas, avaliando cuidadosamente a antiga estrutura, e decidiu arriscar-se.

Apanhou um dos tapetes disponíveis, grosso de poeira, e sentou-se deixando-se deslizar suavemente. O curioso é que a cada curva ele vislumbrava parte da cidade. Na metade da descida ocorreu algo insólito, avistou uma cidade diferente da atual, como se as construções mais recentes tivessem desaparecidas. Subiu e desceu novamente, contou, e na mesma curva lá estava a cidade antiga. Viu tudo em um segundo, e agora era a cidade de sua juventude, nem acreditava no que via, num impulso pulou da rampa para a plataforma. Assim que firmou-se olhou ao redor, e tudo havia mudado, o proprio tobogã se renovara, e agora algumas pessoas aguardavam sua vez, e por suas roupas reconheceu os anos 70, vivera muito lá para se enganar. Desceu as escadas extasiado e andou pelas ruas, agora habitadas por calças bocas de sino, cabelos armados, óculos escuros, golas altas, botas e aquela música de discoteca na rua. Uma chuva repentina começou a cair, e ele apressou-se através de um cenário ja conhecido, em direção a um velho endereço. Ao passar por uma banca de jornal espantou-se ao ver a data , era justamente o dia em que ocorrera o acidente, aquele que mudara sua vida.

Não demorou muito e lá estava a velha casa, no entanto agora era uma casa nova, e uma sensação de já visto o dominou. À frente da casa viu um carro já há muito conhecido, e de repente, no interior do veículo lá estava ela. Há anos manuseando velhas fotografias, e agora a realidade inconfundível estava a sua frente. Assim que o viu, ela abriu a porta; “Querido, estava te esperando, aonde você estava, vamos logo”. Confuso e trêmulo ele não pensou em mais nada, entrou no carro e ela sentou-se a seu lado. O futuro se adivinhava claramente, e ele tinha um plano para driblá-lo; acelerou, sabendo de antemão o momento em que a curva do destino surgiria.

A chuva aumentava dificultando a visão, mas ele sentindo-se seguro. desacelerou, o carro estabilizou-se e rapidamente a curva fatal ficou para trás. Eufórico, ele olhou para o retrovisor, enquanto espaço e tempo sumiam no horizonte, e então novamente o destino interviu.

Surgindo do nada (ou do imponderavel acaso ), um vulto atravessou a à frente do veículo, ele desviou mas não conseguiu evitar que o carro capotasse. De repente tudo escureceu antes de se iluminar com o brilho de mil sóis, e quando ele retomou os sentidos já não estava mais nos anos 70, estava no presente, na sua velha rua de sempre, e estonteado e cambaleante, achou sua casa. Hesitante, abriu o portão.

Curioso como suas pernas já não o obedeciam como antes. O endereço era o mesmo, mas agora tudo mudara, a casa era alegre, bonita, havia flores, nunca fora assim. Cuidadosamente atravessou o belo jardim e abriu a porta, parou na sala muito bem arrumada, diferente da que deixara há algumas horas, e então aquela mulher surgiu no corredor. Ela era de sua idade, ainda bonita, radiante, transparecendo vigor e felicidade. Ele empalideceu quando a reconheceu, e ela veio para ele sorrindo, um sorriso que conhecera tão bem.

Num vislumbre pareceu entender o que ocorrera, seu plano funcionara, o velho tobogã o levara ao passado e ele mudara o destino. Ela o beijou suavemente e disse “Querido, onde você esteve, você sabe que não pode andar muito”...Andar muito, o que ela queria dizer ? Ela adivinhou seus pensamentos; “Suas pernas, não pode força-las, não pode mesmo” Então ele sentiu como se uma fogueira tivesse sido acesa na sala, e uma fraqueza repentina o dominou.

Olhou vagarosamente para suas pernas, e tomado de terror levantou a calça, e até aonde pode ver, o metal brilhante reluzia impiedoso, e ele sentia plenamente o frio contato junto a sua pele. Não eram mais pernas humanas que ele tinha, sua carne eram dois pequenos apêndices, com grandes hastes de metal servindo de extensão. Eram pernas metálicas. Lagrimas escorregaram dos seus olhos e ele suspendeu a ela o olhar desiludido.

“Você ainda não se acostumou, né ? Depois de todos esses anos. Estou viva por sua causa, se não fosse você ter me tirado daquele carro em chamas, eu não estaria viva, as vezes morro de remorsos por isso, saber que você não tem mais suas pernas por isso”...e um choro já acostumado, já ensaiado por anos, já gasto, a dominou. Então ele a olhou com uma muda e infinita compaixão, e da neblina que invadia seus pensamentos rompeu uma réstia de luz, e a imagem de um velho tobogã esquecido em algum canto da cidade brilhou esperançosa no interior de sua alma.