Seu Sonhador

O seu Sonhador, das Ilhas de Prata, não era apenas um senhor. Era um sozinho, ele mesmo, solitário nas Ilhas de Prata. Foi-se para lá bem pequeno, não se lembrava bem quando, mas era bem pequeno e cansado das terras passadas. O seu Sonhador tinha esse nome porque sonhava – ele mesmo é que havia se batizado. Sonhava todos os dias, assim como todos nós, mas lembrava-se de todos e tudo quanto havia de detalhes neles. De noite, o mundo ganhava vida na cabeça daquele homem e por vezes sorria, por vezes chorava. Foi por isso que resolveu partir, não precisava para viver mais que terra, água e um punhado do que comer. A vida estava nele mesmo, os amores e as dores, “um sítio qualquer era só paradeiro do corpo” ele dizia. A falar em corpo, era figura serena, magro de dar pena, que perambulava por aí sem nem ninguém notar – assim foi fácil sair. De dia deitava na areia da praia e deixava o mar gelado molhar seus pés. Esses momentos, disse-me ele um dia, eram como “um prefácio da noite, um comecinho de sonho”. Imaginava as coisas aquele homem. Quando desembarquei na ilha e ofereci-o abrigo e regresso, abraçou-me forte e agradeceu, mas disse que esperava pela noite já e sem ela não poderia partir. Coisa de doido, pensei naquele tempo. Mas ele insistia que não era necessário voltar, a vida no mundo das gentes correu tão depressa que ele já nem mais existia – e tinha ele uns poucos trinta anos. Figura doce. Quando me convenci de que o homem queria ficar, resolvi não mais importuná-lo e deixar as ilhas, sua terra solitária. Despedi-me e ele me deu uma cabaça seca de coco partida ao meio, com uns desenhos feitos com pedra pontuda, objeto muito bonito. Entregou-me e, quase no mesmo momento, agarrou meu pulso e disse-me firme “vais sonhar essa cumbuca, toda vez que nela beber, vais sonhar e vais viver”. Confesso que assustei-me um momento com aquilo, mas logo ele sorriu benevolente e tomei como algo de conselho. Já embarcado acenei à ele que retribuiu apenas com um levantar de mão, como um totem enfiado na areia, alto e magro, talvez maltratado pelo vento. Não via mais as ilhas a dois dias quando resolvi beber um gole d’água na cumbuca do seu Sonhador. Mil coisas me passaram pela cabeça antes de fazer aquilo, fiquei apreensivo, desconfiado – afinal, o que iria me acontecer? Bebi. E não houve nada, ri só para mim, medroso que fui. Relaxei e botei-me a cama. Foi aí que experienciei a noite mágica. Infindáveis imagens, histórias e coisas inexplicáveis povoaram minha mente e meu sono e acordei maravilhado. A cumbuca tinha realmente poderes, absolutos poderes, o homem estava certo. E toda noite passei a beber naquela cumbuca antes de dormir. Toda noite sonhava maravilhosamente, até mesmo quando os sonhos traziam-me tristezas, apreendi-os como sentimentos bonitos, sentimentos só, que nos entram a fundo e nos fazem o que somos. Que poderes tinha aquele homem? Meus dias eram mais alegres, sutis, distraídos. As noites eram o consolo, ou a recompensa, pelos dias desgraçados que vivia naquele navio. Não suportava mais nada daquilo e ainda recebi o chamado do capitão pelo rádio: teríamos de passar uma temporada em terra. Que desgosto. Contei minhas economias todas e resolvi não fazer absolutamente nada nesse intervalo, bem uns três meses. Comprei mantimentos suficientes e tranquei-me no quartinho do porto, escuro e mofado, mas ainda um abrigo. Os outros marujos iam a seus trabalhos temporários, fazer um pé de meia ou arranjar algo que comprar a suas esposas. Eu fiquei, sozinho, fiquei. Toda noite seguia meu ritual: bebia um algo qualquer quente naquela cumbuca e sonhava. Era maravilhoso, eu nem me lembrava do mundo aqui fora. Com o passar do tempo, passei a ter sintomas da síndrome de fadiga crônica e bastava eu me sentar para que começasse a cochilar quase que espontaneamente. Resolvi então beber na cumbuca a todo o momento e a todo o momento sonhava e me maravilhava. Não conseguia mais saber se eu estava a dormir ou se estava acordado. Imagino que um longo tempo permaneci assim, pois, num dia derradeiro, a porta do quartinho escuro veio abaixo e uma luz forte quase me cegou. Eram os marujos, achando que eu havia padecido de alguma doença lá dentro, que vieram a arrombar a porta e me levar de volta para o navio. Fiquei estarrecido com aquilo tudo, como se tivesse levado um soco muito forte, fiquei meio sem ar, sem saber se estava sonhando, mas algo me dizia que era real. Os homens recolheram minhas coisas e me botaram de volta no RMS Message de La Mer, nosso gigantesco navio de trabalho. Após algumas semanas recuperando meus sentidos e alguns quilos perdidos, sendo cuidado pelos companheiros que me traziam sopa na cumbuca, fiquei refletindo sobre todo o ocorrido naquele quartinho. A que ponto havia chegado? Que feitiço aquele homem que parecia tão benevolente, o seu Sonhador, poderia ter me rogado? Não cheguei a conclusão alguma sobre aquilo. Notei, porém, que nessas semanas todas bebi e comi naquela cumbuca, aquela cabaça de coco ornada por ele, e ainda assim não tive um sonho sequer. Como seria possível? Outros amigos também dela beberam e não caíram no sonho profundo, poder mágico daquele coco morto. Desisti de todos esses pensamentos por um tempo e voltei àquela vida desgraçada de marujo. Muitos anos se passaram depois disso. Uma expedição de um canal de TV, depois de eu lhes enviar uma carta com um breve relato sobre aquele senhor, voltou às Ilhas de Prata, mas não encontraram o corpo do homem. Havia sim sinais de que ele esteve lá, pude ver nas filmagens que foram transmitidas pela televisão. O repórter fez ainda questão de ler uma frase que o homem havia deixado gravada numa pedra, exatamente assim: “Das preciosidades das terras todas, eu resolvi uni-las única e definitivamente. Vieram às Ilhas de Prata o ouro das joias, as pedras cobiçadas, as maravilhas que fez o homem. Vieram todas em minha bagagem e agora estão unidas todas, preciosidades apartadas pela história: os metais e as pedras raras, a terra e o mar, o ar e o céu nosso. O homem”. O apresentador fez piada da frase, mas penso que algo dela compreendi. Porém uma coisa tive certeza naquele momento: a cumbuca era mágica sim, tinha grandes poderes, assim como tivera aquele homem, uma lucidez inalcançável. Tinha o poder da imaginação. Toda vez que eu bebia naquela cumbuca era a esperar e povoar minha cabeça de imaginações de como sonharia naquela noite. Assim era que sonhava tanto e tão bem, havia recuperado o poder de imaginar, tão libertador da ditadura do dia-a-dia. Repassava sempre aquela frase que ele me dissera nas ilhas, “vais sonhar e vais viver”, e alimentava minha mente como se aquilo fosse uma profecia. Poderoso sábio, poderoso homem. Pois que não havia nada naquele poder que não fosse o poder do homem, o poder de imaginar e de sonhar. Poder que nós perdemos todos os dias, esquecemos, ou botamos a dormir sem lembrar de acordá-lo. Entendi também o porquê daquele asilo solitário escolhido por ele, assim como escolhi aquele quartinho no caís. Tive essa conclusão da história toda, não sei se aqui ou se em sonho, num pensamento sem parágrafo que interrompesse: quem tem em si o poder da imaginação não precisa mais nada para viver, não precisa mais ninguém. Uma ilha deserta, um navio à deriva, uma varanda fresca ou um cigarro bastam para que o corpo durma e o homem sonhe, o homem viva.

Vinicius de Andrade
Enviado por Vinicius de Andrade em 23/05/2013
Código do texto: T4304843
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