Fragmento. (Testamento de Cristo Homem ao pé da Cruz)

Quando todas as chagas secarem, sobrarão apenas as máculas clareadas. Mas a mente, ah, a mente, essa sangrará sem cessar. Braços abertos, ajoelhado, treme o corpo todo. Mente quem diz que perdoei, mente quem diz que voltarei, mente. Na verdade nunca estive, nunca vim, nunca me chamei, nunca.

O vinho, o pão, nada mais são do que vinho e pão. Lá de cima vi lágrimas, mãos dadas. Sim, vi, se é que seja possível ver, a fé nos poros de tantos. Não pedi nada disso, aliás, não pedi nada além de descanso. Sei que não me darão. Tudo o que disse foi transfigurado. Lendas de outros, misturadas com minhas andanças.

Sei que me colocarão rosto conveniente, palavras que nunca disse, ações que nunca tive. Dirão de minha vida fatos inexistentes. Erguerão pedras colossais, matarão, roubarão, tudo sobre a minha égide inexistente. Haverá aquele que tornar-se-á rei, político, usando de minha imagem. Haverá aquele que será perdoado, mesmo tendo cometido a mais brutal das ações, também usando de minha imagem.

Bem-aventurados aqueles que me deixarem em paz, pois serão livres para pensarem. Caso contrário, serão apenas sal, apenas terra. Não há fogo, julgamento, Sinédrio, não há nada. Assim que tombar este corpo já arrebatado pela mulher que escondem o nome, sobrarão estes panos encharcados de sangue, de sal. Sobrará esta coroa de rígidos espinhos, como rígidos serão os homens que usarão de minhas frases. Sobrará a dúvida do que eu disse, se disse.

Deixo tudo isso, renuncio a tudo isso. À carga das palavras, à dor dos golpes, ao peso das imprecações, ao sabor da traição, ao deserto de areia e nada mais, o túmulo de pedra que me aguarda, ao lado direito do pai que nunca tive. Renuncio aos títulos, aos milagres, às visões e vozes. Até mesmo ao próprio corpo, ao próprio nome.

Quero um campo livre, com algumas oliveiras e galhos secos. Nada de vinho, nada de pão, uma vez que serei apenas matéria.

Agora, livre das mãos em desespero, das rezas, das moedas, tudo. Livre agora, o corpo. Mas a imagem, essa será eterna refém. Mente quem diz que perdoei, mente quem diz.

6/6/2013, numa aula.