CONTOS DRACONINOS 6 - RENASCER

Acima da linha do horizonte o sol ergue-se majestoso. Já havia percorrido dois terços de sua jornada em direção ao oeste. Naquela mesma direção os picos das montanhas, cobertos pela neve do eterno inverno das altitudes, parecem dentes de uma besta voraz e gigantesca.

De longe o Comandante, em sua reluzente armadura, fitava-os imóvel. Seu rosto nada revela o que sua alma guarda. Sua montaria, um robusto garanhão negro, impaciente bate os cascos no solo rochoso da planície.

-Senhor! Fala um homem ao aproximar-se.

-Sim, Capitão?

-Quais são suas ordens? O Comandante move o olhar para direita deparando-se com a desértica planície a estender-se por milhas, rumo ao norte, a esquerda vislumbra a misteriosa floresta situada a menos de mil metros dali e atrás de si um mar de três mil lanças, escudos e elmos, a Companhia Dourada, seu exército.

- Vamos esperar. Responde.

- Sim, senhor. O Capitão saúda-o afastando-se.

O Comandante acompanha-o com o olhar. O Capitão é um homem taciturno com um passado obscuro. No entanto, essa é uma característica predominante entre os homens que lidera. O Comandante não sabe ao menos qual o seu verdadeiro nome, sua nacionalidade, sua origem. Mas demonstrou possuir extensa experiência no oficio da guerra e da caça de feras, como atestam suas cicatrizes as quais ele as chama de troféus. Relatam alguns que certa vez, sozinho, enfrentou e matou um grande dragão cinzento. E que o tesouro, que estava no covil do monstro, ele dividiu com seus comandados e com os aldeões que foram atormentados pela besta. Verdade ou fantasia o Capitão demonstrou seu valor e sua capacidade nos combates em que travou sob as ordens do Comandante. Por estas razões o nomeou seu oficial imediato.

Deixando o capitão e a Companhia Dourada o comandante volta a contemplar as montanhas e o céu. A visão do azul celeste e infinito o faz rever o jovem camponês que fora um dia. Segundo a tradição familiar seus ancestrais foram camponeses presos a terra que cultivavam e subjugados por seu senhor. Seu destino seguiria o dos seus antepassados quando encontrou na floresta o dragão branco. Enorme com escamas alvas que pareciam feitas de aço, era um ser mitológico e fabuloso que, até então, habitava as lendas do vilarejo onde morava. O Comandante recorda-se do seu encantamento com a fera. “Como eu fui tolo” pensou. Aquele encontro mudou para sempre a sua vida e dos habitantes de sua pequena vila.

Então uma imensa sombra paira sobre sua cabeça, atrás de si a Companhia Dourada agita-se. Ao erguer os olhos depara-se com uma gigantesca criatura alada planando no céu. Suas extensas asas em movimento provocam redemoinhos ao seu redor. O dragão branco pousa suavemente cinqüenta metros a sua frente. O Comandante tem dificuldade para controlar sua montaria. Deixando o garanhão negro de lado ele caminha ao encontro da fera.

- Jovem Karl, faz muito tempo que não o vejo! Troveja o dragão.

- Ormuz Daksha já se passaram quinze anos desde o nosso primeiro e ultimo encontro. Vejo que se recuperou bem dos ferimentos. Ormuz ergue a asa esquerda.

- Mesmo nós velhos dragões temos nossas artimanhas, jovem Karl. Mas vamos ao que interessa, pois, acho que seus homens não estão à vontade na minha presença. O Comandante volve o olhar para a Companhia Dourada. Os arqueiros estavam com as setas assentadas sobre os arcos preparados para atacar. Logo atrás os besteiros perfilados com suas armas engatilhadas.

- Não se preocupe, só agirão se eu os ordenar ou você der motivos. Ormuz sorri.

- Isso me deixa mais tranqüilo, jovem Karl. O dragão move as patas dianteiras de forma que seu rosto fique na altura do Comandante. “Recebi sua mensagem através de um dos meus irmãos dizendo que deseja falar comigo. Pois bem, aqui estou e disposto a ouvi-lo”. O Comandante fita com severidade Ormuz.

- Sei que em breve vocês realizarão uma assembléia draconiana e gostaria de estar presente para lhes fazer uma proposta. Ormuz permanece em silêncio por alguns minutos tomado pela surpresa.

- Meu caro, acho que não seja uma boa idéia você ir a assembléia. É conhecido como notório caçador de dragões e muitos dos meus irmãos, mesmos os que não concordam com a guerra contra humanos, não são tão tolerantes quanto eu. A face do Comandante não moveu um músculo sequer ante as palavras de Ormuz.

- Desejo pôr um fim a esta guerra que tanto prejudica a vocês dragões e a nós humanos. Acredito que também queira a paz entre nossas espécies. Se há uma chance para atingir este fim todo risco é valido. Responde o Comandante.

- Supondo que eu o leve ante meus irmãos o que tem você a nos oferecer que garanta a paz?

- Homens e dragões já coexistiram pacificamente neste mundo na antiguidade. Podemos tentar novamente desde que sejam estabelecidos limites territoriais. Vocês poderia se fixar nas terras ermas que se encontram além do grande mar. Alternativas não faltam, basta que dialoguemos. Ormuz fita-o demoradamente.

- E com que autoridade você irá falar aos meus irmãos, uma vez que estará sozinho e como seus semelhantes respeitarão o acordo?

- Tenho comigo um tratado assinado por inúmeros governantes nomeando-me como seu representante. Além disso, eu e meus homens ganhamos muito dinheiro com esta guerra, nós somos os menos interessados em acabar com ela. Argumenta o Comandante.

- Suas palavras são coerentes e justas, mas mesmo assim, creio que não convencerão meus irmãos.

- Ormuz, estou lhe pedindo uma chance para fazer algo que possa pôr fim a esta guerra. Os riscos são meus, você não tem nenhuma obrigação para comigo. Se eu sobreviver ou morrer a responsabilidade é toda minha. O dragão fita-o demoradamente estudando-o.

- Tudo bem, o levarei até meus irmãos. Está pronto? Indaga o dragão.

- Só o prazo de entregar o comando da Companhia ao meu oficial imediato. Responde o Comandante. Ele afasta-se de Ormuz indo ao encontro do Capitão que o aguarda logo a frente dos mercenários. Passados alguns minutos retorna. “Podemos ir a hora que desejar”.

- Ótimo! Suba no meu pescoço. Ormuz abaixa-se e o Comandante salta agarrando-se as escamas que revestem seu corpo.

- Não é tão confortável quanto minha sela, mas, não chega a incomodar. Por quanto tempo terei que ser um peso para você?

- Não muito! Está preparado? O Comandante responde com aceno de cabeça. Então o dragão, movimentando suas asas, ergue sem imenso corpo no ar como se fosse tão leve quanto uma pluma. O Comandante observa seus homens, a floresta e planície tornarem-se cada vez menor à medida que Ormuz eleva-se. Aproximadamente a cem metros de altura o dragão inclina o corpo na direção das montanhas e veloz manobra rumo aos alvos picos.

O vento frio bate com vigor no rosto do Comandante. Ao seu redor não há nada além do vazio do céu. Fechando os olhos sente o coração pulsar e do fundo de sua mente rever um garoto sonhando em voar nas costas de dragões. Em seus sonhos o garoto era levado até as estrelas, visitava outros países, conhecia o que se esconde atrás do horizonte. Eram sensações doces e dolorosas que tomam conta de sua alma. Então ele desperta e reconhece quem de fato é. “Aquele garoto não existe mais, está morto juntamente com seus sonhos, só restou o Comandante, só restou eu” diz mentalmente a si mesmo.

Ao abrir os olhos depara-se com os picos gelados das montanhas crescerem a sua frente. Abaixo vislumbra a neve cobrindo as encostas rochosas. Haviam percorrido uma grande distância, mas ainda reconhece onde se encontram. “A informação estava correta” pensa o Comandante.

O vento gélido não atrapalha o dragão em seu vôo. Com as asas abertas Ormuz aproveita as correntes de ar para planar por entre os rochedos. Há milênios seus ancestrais dominam os céus. Não havia nada que provocasse mais terror às criaturas terrestre do que a visão de um dragão no céu. Às vezes a presa só percebia sua presença quando era tarde demais para fugir. Foram tempos em que estavam no topo da cadeia alimentar.

Então surgiram os homens, criaturas medrosas e insignificantes que serviam de alimento a diversas espécies, inclusive aos dragões. Jamais seus ancestrais imaginaram que aquele parente de símios fosse um dia tornar-se-iam o maior predador do mundo, que dominariam o fogo, transformariam o planeta de tal maneira que secariam rios e derrubariam montanhas.

Ormuz recorda-se da primeira vez que os vira a sete mil anos. Reuniam-se em grandes bandos nas planícies orientais. Por onde passavam devastavam florestas inteiras. Erguiam abrigos de pele e caçavam grandes animais que vagavam pelas estepes. Ormuz admirou a sagacidade e poder de tais criaturas. Desde então os acompanha estudando e observando.

- Chegamos! Ruge o dragão. Ormuz, inclinando o corpanzil para a direita, contorna um pico pousando com habilidade numa extensa clareira. Ao saltar do dorso de Ormuz o Comandante depara-se com dezenas de outros dragões. Eram de diversos tamanhos e cores, no entanto nenhum se comparava ao imenso dragão branco que o levara até ali.

- O que significa isso? Trovejou uma voz vinda dos céus. O Comandante ergue os olhos e vislumbra a criatura escarlate que pousa no centro da clareira. O dragão vermelho era tão grande quanto Ormuz. Ao movimentar suas asas provocou redemoinhos envolta de todos logo abaixo de si. “Ahriman” reconhece o Comandante ao fitar os seus tenebrosos olhos flamejante.

- Irmãos esse é o jovem Karl e o trago diante desta assembléia para que apresente um proposta de paz. Fala Ormuz.

- Está louco? Só haverá paz quando não existir mais nenhum deles sobre a Terra. Rebate Ahriman.

- Está enganado e ...

- Cale-se, humano! Não lhe é permitido erguer a voz aqui. Fala furiosamente o dragão vermelho. Seus olhos tornam-se duas labaredas.

- Este humano está sob minha proteção e como dragão rogo a vocês, irmãs e irmãos, que ao menos ouçam o que ele tem a dizer. Ormuz dá um passo a frente ficando entre Ahriman e o Comandante.

- Você é um tolo, Ormuz, sempre nutriu admiração por estas criaturas. Quando será que você entenderá que não há lugar neste mundo para nós e eles? As palavras do dragão vermelho soam alto.

- Acredito que há lugar neste mundo para humanos e dragões, irmão. Todos aqui sabem muito bem que sou e sempre fui contrário a esta guerra. Este humano eu conheci a muitos anos quando fui ferindo por dois dragões enviados por você, Ahriman, para matar-me. O dragão vermelho fita-o num silêncio furioso e ameaçador. “Ele, juntamente com outra humana, cuidou de mim. Por este ato sou-lhe grato e mais uma vez peço que o ouse”. Discursa Ormuz. O Comandante permanece em silêncio. Os dragões entreolham cheios de dúvidas e desconfiados. Diante da resposta silenciosa o Comandante se coloca logo a frente do dragão branco. No outro extremo Ahriman agita-se furiosamente.

- Tudo que Ormuz diz é verdade. Também creio que há possibilidade de coexistirmos pacificamente. Mas, ao contrário dele, nem sempre eu pensei assim. Logo após Ormuz estar curado e partir outros dragões apareceram em nossa aldeia e a devastaram sem piedade. Minha família, meus parentes e amigos ou foram devorados ou queimados. Eu e meia dúzia pessoas fomos o que restou da aldeia onde havia mil almas. O Comandante silencia-se por alguns instantes até os ouvintes calarem-se. “Desnecessário dizer o quanto estava revoltado. O ódio devorava as entranhas como uma chama que nunca se apaga. Para apagá-la passei a caçar seus irmãos e irmãs...”.

- Ormuz você trouxe até nós um maldito caçador de dragões. Gritam os dragões em alvoroço. Veloz Ahriman salta sobre o Comandante. Mas antes que o atinja Ormuz golpeia-o afastando-o.

- Está louco, como ousa proteger este infeliz que assassinou seus semelhantes? Urra o dragão vermelho que atordoado tenta erguer-se.

- Eu sei exatamente quem ele é, peço apenas que o escutem. Troveja Ormuz.

- Por mais absurdo que pareça sei o que sente. Mas tenho que ser sincero com vocês para que entendam o que tenho a propor. Pois bem, cada dragão que eu matava somente aumentava minha dor e agonia. Em alguns anos tornei-me exímio caçador e fiz fortuna com este ofício, tanto que tenho sob meu comando três mil homens, a Companhia Dourada. Ante aquele nome novamente os dragões se alvoroçam.

- Agora é prova definitiva de sua loucura Ormuz. Este maldito assassinou mais irmãos nossos do que qualquer outro caçador em toda a história. Urra o dragão vermelho posicionando para novo ataque.

- Já disse antes e repito eu sei exatamente quem ele é, mas ouçam o que ele tem a dizer. Matá-lo não irá trazer nossos irmãos à vida. No entanto, podemos impedir que outros morram. Retruca o dragão branco encarando Ahriman. Os ânimos se acalmam e o Comandante retoma a palavra.

- Eu e minha companhia viajamos mundo a fora caçando e matando todo e qualquer dragão que cruzasse nosso caminho. Até aquele momento eu tinha como certo que o mundo seria melhor sem os dragões. Mas uma noite olhando para o céu na direção do norte me deparei com a constelação do dragão. E recordei da história que minha avó me contava quando era menino. Ela dizia que aquelas estrelas era Tawret, a deusa do norte, protetora do nosso povo. Diante de tais recordações refleti demoradamente. Um dia os dragões foram vistos como deuses e nós lhes rendíamos oferendas. Então compreendi que a guerra nos mostrou que vocês nunca foram deuses ou estavam acima das outras criaturas. Vocês possuem defeitos e qualidades, fazem parte de algo maior no qual cada criatura viva esta inserida e desempenha um papel. Se um dia forem extintos se abrirá uma lacuna no universo que jamais irá se recompor novamente. Assim sendo, daquela noite em diante percebi que a saída tanto para vocês quanto para nós é a paz. Esta guerra já não tem sentido. Os dragões entreolham-se incrédulos.

- Belas palavras, mas vazias. Você mente como todos da sua espécie. Pois, o que vocês humanos sabem fazer melhor é mentir e destruir. Olhe ao seu redor homenzinho, não há mais como voltar atrás. A guerra continuará até o ultimo dragão. Urra Ahriman.

- Isso é o que você quer ou o que deseja seus irmãos? Indaga o Comandante.

- Agora chega, já suportei por muito tempo sua presença homenzinho. O dragão vermelho abre as asas e avança sobre o Comandante. Ormuz salta a frente de Ahriman segurando-o com suas garras. O dragão vermelho se desvencilha de seu captor e em seguida lhe morde a asa direita abrindo uma larga ferida. O sangue jorra abundante encharcando as alvas escamas de Ormuz. Com um movimento de sua cauda o dragão branco arremessa Ahriman contra o rochedo. Os outros dragões observam silenciosos, o desenrolar do combate. Não há nada que pudessem fazer, pois, os combatentes são os dragões mais velhos e poderosos que caminham sobre a Terra. O Comandante procura um lugar seguro entre as rochas, como os outros dragões menores, ele apenas aguarda o desfecho da batalha.

Ahriman atordoado fita seu opositor cambalear a sua frente. Poderia lançar fogo sobre Ormuz, labaredas poderosas que derreteriam até as rochas. Mas não ia adiantar muita coisa, pois, dragões são imunes ao fogo. Então, com um salto, ganha os céus e do alto projeta-se em grande velocidade sobre o dragão branco. O choque entre os titãs produz um som dez vezes mais intenso que os trovões e abre uma cratera de centenas de metros. Ahriman enterra as garras na garganta de Ormuz. O dragão branco sente suas escamas cederem à pressão e o sangue brotar. Se não reagir rapidamente sua garganta será dilacerada.

Num ato de desespero Ormuz reúne suas últimas forças, posiciona suas patas traseiras no ventre de Ahriman e utilizando o próprio corpo como alavanca consegue arremessá-lo novamente contra a encosta da montanha. Dessa vez o dragão vermelho sente todo o impacto. Rola inconsciente encosta abaixo. Ofegante tenta erguer-se, mas o mundo rodopia enlouquecido e furioso diante de seus olhos. Em resposta lança intensas labaredas em todas as direções. Algumas caminham até o refugio do Comandante, mas ele se enterra mais profundamente na rocha para escapar das chamas.

Ormuz arrasta-se deixando atrás de si um rio de sangue fumegante que brota de sua asa direita e de sua garganta. O dragão vermelho desesperadamente debate-se tentando erguer-se. Ao seu redor uma poça rubra cobre o gélido e alvo solo. Ao perceber a aproximação de Ormuz lança os últimos jatos de fogo que lhe restam. O dragão branco ignora as chamas e cambaleante prossegue.

- Irmão isso não deveria acontecer. Argumenta Ormuz. O dragão vermelho o fita com um sorriso sarcástico.

- Sabíamos que esse dia chegaria e que um deveria eliminar o outro, irmão. Responde Ahriman. “Vamos, acabe o que você começou” ordena o dragão vermelho.

- Não! É você que precisa terminar o que começou. Essa guerra e a morte dos nossos irmãos foi obra sua. Olhe ao seu redor todos estão aguardando suas palavras, suas ordens. Sabe tão bem quanto eu que o nosso tempo acabou e que esta guerra é inútil. Temos que seguir o que determina a natureza e ninguém e nada está acima dela. Se prosseguir com essa loucura outros tantos morrerão. Dê ao menos uma chance para que eles recomecem e tenham a oportunidade de salvar a nossa espécie em algum lugar distante, longe dos humanos. Nós dois já percorremos o mundo inteiro e sabemos que ainda há ilhas perdidas nos oceanos que os humanos ainda não povoaram por completo. Talvez aí nossos irmãos possam ter uma chance de viver em paz por mais alguns séculos. Pense nisso antes de falar alguma coisa. Então o dragão branco, ofegante, tomba.

Ahriman permanece em silêncio por alguns instantes degustando o discurso de Ormuz. Erguendo-se nas patas dianteiras o dragão vermelho percorre com o olhar o mundo ao seu redor. Finalmente compreende o que Ormuz quis dizer. Diante dele estão jovens dragões que pouco ou nada sabem da vida e estão assustados. Os mais velhos e mais experientes, seus generais, haviam perecido nos combates contra os humanos. O inimigo havia aprimorado armas e táticas. Agora os caçadores contavam com canhões, engenhos metálicos que cospem balas a longa distância e as escamas de dragão não suportam o seu impacto. A cada confronto morre mais e mais dragões.

Contrariado o grande dragão vermelho constata que Ormuz está com a razão. Não há meio de derrotar o inimigo. Contra os canhões o fogo dos dragões é inútil. Pois, devem estar a uma curta distância para lançar as chamas. Com esse movimento tornam-se alvo fácil para os atiradores que os derruba em pleno vôo. Nem mesmo no céu estão a salvo uma vez que balões, outra invenção humana, estão sendo usados como arma de extermínio da sua espécie.

Os dragões aguardam as palavras de seu líder. Estão paralisados de temor. Ahriman sente o pavor que emana dos olhos de seus comandados. No entanto, sabe que se os ordenar que prossigam a guerra eles assim o farão, mesmo sabendo que será o fim de todos, seguirão suas ordens sem hesitar. O dragão vermelho também reconhece a gravidade de seus ferimentos; sua espinha dorsal partiu ao meio, ainda que se recupere jamais voltará a andar sobre as quatro patas ou voar; perdeu muito sangue e dores intensas o atormenta. Seu fim é certo e nada do que faça mudará isso. Mas deve dizer algo aos outros dragões, algo para orientá-los após sua partida.

- Irmãos. Fala Ahriman com autoridade e serenidade. “Rumo ao oeste, fica a praia do penhasco que marca o fim do continente e inicio do grande oceano. Seguindo três dias de viagem nesta mesma direção há um pequeno arquipélago formado por quatro ilhas” o dragão vermelho interrompe seu discurso quando uma forte dor ataca-o. “Destas a que aponta para o poente é a mais isolada e deserta delas” fala Ahriman após recuperar-se. “Lá terão abrigo por muitos e muitos anos. Pois, nela não há humanos”.

- Ahriman, a guerra acabou? Indaga um dragão cinza.

- Não, Tohil. Mas teremos que recuar para reorganizar. Agora partam em breve os humanos estarão aqui com seus canhões.

- Não podemos deixá-lo aqui ferido. Retruca uma jovem fêmea esverdeada.

- Não seja tola Ixchel. Eu sou Ahriman e não há humano que possa me destruir ferido ou não. Responde o dragão vermelho. “Partam, isso é uma ordem”. Um a um os dragões vão ganhando os céus voando na direção do ocidente.

Quando o último dragão desaparece no horizonte Ahriman deixa o corpo cair ao solo. Um vento gélido e insistente toca a pele do dragão vermelho fazendo o estremecer. De repente as trevas envolvem o mundo a sua volta. “Frio e escuridão são os arautos da morte? Que triste fim para um dos filhos do fogo e do sol...”. Seus olhos se fecham para nunca mais reabrirem.

O Comandante lentamente recobra a consciência. Quando Arhiman lançou suas chamas o impacto o arremessou contra a parede rochosa fazendo-o perder os sentidos. Atordoado ele caminha para fora do abrigo. Ergue o olhar na direção do céu e não sabe dizer se esteve desacordado por horas ou dias. Pois, o sol não está onde seus sentidos dizem que deveria estar. Percorrendo a visão ao seu redor depara-se com uma paisagem devastada. A sua frente vislumbra o corpanzil de Ormuz debruçado sobre uma poça de sangue e fogo. Mais a frente jaz o dragão vermelho. A sua volta não localiza nenhum outro dragão.

Aproxima-se do dragão branco. Toca-o a face ainda quente. Ofegante Ormuz abre os olhos.

- Jovem Karl, fico feliz em revê-lo. Fala com dificuldade o dragão branco.

- Eu também, Ormuz Daksha. Pena que a velha Helen não esteja aqui para dar um jeito nesses seus ferimentos.

- Mesmo que a minha velha amiga estivesse aqui ela não poderia fazer nada para curar essas feridas. As pálpebras escamosas de Ormuz pesam.

- O que aconteceu aqui? Indaga o Comandante tentando manter desperto o dragão branco.

- Um grande mal entendido, jovem Karl. Mas parece que meu irmão Ahriman, nos seu derradeiro momento de vida, recobrou a razão e deixou que os outros tivessem alguma chance. Ormuz silencia-se fixando o olhar num ponto distante e invisível. “Estou cansado, afinal de contas são sete mil anos que perambulo por este mundo. Ah, jovem Karl, tantas coisas belas e maravilhosas que vi e que não há palavras para expressa-las; tantos lugares e criaturas que conheci que mesmo após milhares de gerações de humanos vocês não seriam capazes de catalogar. Uma pena não poder compartilhar ao menos com você essas lembranças”. Fala pesaroso Ormuz.

- Pelo menos tente, estou aqui e não tenho nenhum outro lugar para ir. Conte-me a sua história. O dragão branco sorri ante as palavras do Comandante.

- Como queira, jovem Karl. Quando eu nasci os mamutes vagavam pelas pradarias do norte. Foram as maiores criaturas que pisaram na Terra, depois dos meus primos os dinossauros. Vocês humanos estavam edificando os primeiros povoados e ainda temia o sol, a chuva, o dia, a noite. Eram criaturas aparentemente frágeis. No entanto, eram engenhosos e erguiam grandiosos monumentos, inventavam artefatos para superar quase todas as suas fraquezas. Ah, como me encantou o potencial de sua espécie... E assim as palavras morrem nos lábios escamosos do maior e mais sábio dragão que caminhou sobre a terra.

Quando o Capitão chegou à clareira, acompanhado por centenas de soldados, encontrou o Comandante imóvel ao lado do corpo do dragão branco. Cauteloso aproximou-se.

- Senhor, está tudo bem? Indagou mantendo a lança segura na mão direita.

- Sim! Respondeu o Comandante sem mover-se.

- Estávamos preocupados com o senhor. Já havia se passado três dias desde a sua partida e vimos dragões voando para o oeste. Conseguimos abater alguns, mas a maioria seguiu na direção do poente. Nesse momento o Comandante move o olhar para o Capitão.

- Devemos partir, temos que prestar conta ao conselho de nobres.

- Quanto a esses dois? Indaga o Capitão apontando a lança para os dois dragões.

- Deixo-os! Já estão mortos. Responde o Comandante com o olhar fixo nos corpos a sua frente. Um subalterno entrega-lhe as rédeas de sua montaria. O garanhão negro impacienta-se na presença dos dragões. Com dificuldade o Comandante o controla. Imponente ele cavalga para longe da clareira levando atrás de si seus soldados. O Capitão aproxima-se.

- Senhor, posso lhe fazer uma pergunta?

- Fale, Capitão!

- Senhor, o plano era cercar os dragões nesta clareira, pois, já sabíamos que a assembléia se realizaria aqui, e matar a todos. No entanto, o senhor veio sozinho, não conseguimos matar a todos e o senhor poderia ter sido morto pelas feras. O que pretendia, senhor? O Comandante mantém o olhar fixo no caminho que serpenteia encosta abaixo.

- Capitão me responda: alguém sabia exatamente quantos dragões estavam aqui, ou quais os tipos de monstros enfrentaríamos?

- Não, senhor!

- Você é experiente na caça das feras me diga: mesmo contando com o elemento surpresa quais as possibilidades de que nós os eliminaríamos a todos?

- Não sei senhor, mas acredito que uma em cem. Responde o Capitão.

- Pois, bem iríamos arriscar três mil vidas num ataque inútil e suicida. Não, eu não poderia permitir que isso acontecesse, mesmo sabendo que todos da Companhia Dourada assinaram um contrato onde concordam com os riscos de morte. Então, no caminho rumo as montanhas mandei um recado para Ormuz, o dragão branco. Eu o conhecia e sabia de sua simpatia por nós e que ele era contrario a guerra entre dragões e humanos. Discursa o Comandante calmamente.

- Mesmo entendendo o motivo de sua atitude ainda acho loucura arriscar-se tanto assim como o senhor fez. Fala o Capitão.

- Talvez. Mas ao lado de Ormuz sabia que estava em segurança, pois, ele era o maior e mais velho dragão sobre a Terra, era até mais velho que Ahriman. Meu plano era abalar a liderança de Ahriman e fazer com que as feras atacassem uns aos outros. E assim nos poupar o trabalho de caçá-los.

- Então o senhor contava com a disputa entre Ormuz e Ahriman? Indaga o Capitão.

- Não. Ormuz, apesar de ser contra a guerra, era pacifico e jamais revidou com violência as tentativas de Ahriman para matá-lo. Ormuz era, até onde sei o último dragão herbívoro.

- Senhor, caço essas feras há muitos anos e nunca ouvi falar de um dragão herbívoro. Interrompe o Capitão a narrativa do Comandante.

- Acredite, eles existiram um dia. Como bem sabe os dragões são descendentes das serpentes marinhas. Algumas comiam algas marinhas, outras se alimentavam de peixes, baleias, focas, golfinhos e outros animais. Quando deixaram os oceanos para conquistarem a terra as serpentes marinhas evoluíram para dragões. Pois bem, em sua maioria eles eram animais carnívoros. Mas uns poucos mantiveram os hábitos de se alimentarem de plantas. Eram de natureza pacifica e observadores. Já os carnívoros eram agressivos e dominadores. Ormuz pertencia a primeira categoria e Ahriman a segunda. Não há registro sobre o que aconteceu com os herbívoros, sabe-se apenas que desapareceram restando apenas os carnívoros.

- Me desculpe a intromissão, mas com quem o senhor aprendeu tudo isso? Indaga incrédulo o capitão.

- Venho de um lugar onde os dragões eram adorados como deuses a milênios. E essas histórias fazem parte do conhecimento de meu povo a gerações. O Comandante silencia-se por alguns minutos quando atingem uma faixa estreita da trilha. “Respondendo a sua pergunta eu não acreditava que os dois se confrontassem pelo menos Ormuz não faria isso. Tanto é que ele me defendeu do ataque de Ahriman e não tomou a iniciativa do combate. Na verdade eu estava contando com que um dos generais de Ahriman o afrontasse”. Neste momento o caminho volta a estreitar-se e a tropa é obrigada a cavalgar em fila indiana. Alguns metros montanha abaixo a trilha se alarga e o Capitão aproxima-se novamente do Comandante.

- O senhor correu um grande risco.

- Eu sei, só lamento que Ormuz tenha sucumbido.

- Não compartilho esse desejo com o senhor. Para mim dragão bom é dragão morto. Mas, senhor, os dragões que escaparam poderão repovoar a Terra e voltarem a ameaçar os humanos, já pensou nisso?

- Claro! E enquanto essa possibilidade existir eu, você e tantos outros como nós terão o que fazer. O Capitão finalmente compreende o plano do Comandante e sorri.

Sannyon
Enviado por Sannyon em 19/07/2013
Código do texto: T4394857
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