O livro de Ezanyan

* Em homenagem a Eons, de Rita Maria Félix da Silva.*

“O mundo é um lugar muito injusto!”

Zero não tinha dúvidas quanto a esse respeito. Aquela era uma dessas manhãs em que você acorda de mal consigo mesmo e com tudo o que o cerca. Apesar de Nehar brilhar em toda a sua força, aquecendo aquele dia de verão, Zero só conseguia pensar que Kainin era um mundo terrivelmente injusto.

Não era justo que as pessoas indesejadas pelos governantes do mundo fossem isoladas em uma ilha seca e cercada de águas turbulentas. Não era justo que os ricos morassem numa ilha artificial também cercados de águas turbulentas e recebessem o que de melhor o planeta tinha para oferecer. Não era justo que quatro tiranos isolassem as Ilhas Priscot (por muito tempo centro espiritual de Kainin) do resto do mundo para assegurar seus interesses. E, acima de tudo, não era justo que ele, Zero, tivesse que usar aquele chapéu ridículo de abas largas para esconder suas orelhas pontudas dos outros.

Que droga, por que os Andarilhos tinham que ter orelhas pontudas? Por que não podiam ter, digamos, uma marca no peito ou pêlos azuis debaixo do braço, ou algo assim fácil de esconder? O menino jogou água no rosto pela décima vez, com raiva. Secou-se e enfiou o chapéu, amarrando as abas sob o queixo.

O mercado da Ilha Ramani (a maior das Ilhas Priscot) estava cheio naquela manhã. Zero comprou tudo o que Aila pedira, o suficiente para encher um saco de aniagem pouco menor que ele. Com dificuldade, o menino erguia o pacote, dava alguns passos hesitantes e o colocava no chão de novo. Nessa toada, chegaria na casa da vidente só ao meio-dia.

Mal saíra do meio do tumulto, o menino se viu cercado. Terri, o líder do grupo, era um garoto enorme para a idade. Era cotado para ser o futuro campeão de manejo de espada das ilhas.

_Ei, chapeuzinho cinza, onde pensa que vai sem pagar pedágio?

Zero lançou-lhe um rápido olhar de desprezo e seguiu andando. Terri empurrou-o, ele caiu sobre o pacote que carregava. Os outros riram. Violentamente corado, Zero ficou de pé e retirou a espada de madeira que carregava nas costas. Partiu para cima de Terri e os dois começaram a brigar. Terminaram com Zero comendo terra e os outros rindo. Cabisbaixo, ele pegou seu pacote e voltou para casa.

_Aqui está a encomenda da manhã, Srta. Aila.

_O que é isso? _ela arregalou os olhos distantes. _Parece que você voltou de uma guerra!

Envergonhado, o menino contou sobre a briga. Ia ficando cada vez mais indignado e arrematou:

_Isso não é justo, senhorita, não é! Por que Terri é grande e forte, enquanto eu, da mesma idade, sou um mirrado? Por que ele se aproveita dos outros só por que é mais forte? De que adianta ser bonzinho, fingir que não viu que ele falou um desaforo, se o mundo é todo errado?

Ela levantou o rosto dele para olhá-lo nos olhos. Mandou-o se lavar e medicou seus ferimentos. Depois de comerem, levou-o ao quarto onde se retirava para entrar em contato com os Protetores e com os Espíritos de Salaham. Puxou um livro muito antigo, carcomido, encadernado em couro. Sentou-se sobre as pernas, pôs a mão sobre o coração e abaixou a cabeça, o sinal de respeito religioso a alguma coisa. Zero imitou-a perguntando-se o que viria.

_Este, Sr. Zero, é o Livro Sagrado de Kainin, onde estão histórias que já se foram e histórias que virão. Muito respeito com o que está escrito aqui, porque essas são as palavras sagradas de Salaham, escritas pelos homens.

Abriu o livro e folheou-o até chegar a uma determinada página.

_Este é o Livro de Ezanyan, um dos profetas mais sábios que já habitou essas ilhas. É um relato que Salaham revelou a ele, sobre a ascensão e a queda da civilização de Hadah. Ouça com atenção as palavras do profeta.

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* Essas são as palavras de Salaham, Aquele que é, que era antes do início e será após o fim, reveladas a Ezanyan, seu humilde servo, a respeito da gloriosa civilização de Hadah, seus dias iniciais, os dias de glória e os dias de desespero. Nem uma palavra foi acrescentada e nem uma palavra foi retirada, e aquele que o fizer, que sofra todos os tormentos da ira de Salaham. *

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Capítulo 1

O INÍCIO de Kainin aconteceu e passou-se tempo, tempos e sete tempos de Salaham. À beira do Grande Rio, pastores cuidavam de suas ovelhas, construtores construíam e as mulheres cuidavam de seus filhos. Eram uma família unida e vivam em paz uns com os outros. De todos os povos, seus vizinhos, eram os únicos que não marchavam para a guerra e eram os únicos que não se punham nas mãos de feiticeiros idólatras e depravados.

2 Mas eram, por sua vez, idólatras, adorando muitos deuses. Porém, tão retos eram em suas atitudes, e tão pacíficas suas famílias, que Salaham apareceu em toda a sua glória para o vidente desse povo e disse: “Largai seus muitos deuses e prostrai-vos diante de Mim, e eu vos darei uma terra maior e mais fértil e farei de vós o maior e mais esplendoroso povo de Kainin”.

3 O povo, então, rejeitou seus muitos deuses e creu em Salaham. Uma peste dizimou os povos ao redor do Grande Rio e o povo escolhido de Salaham pôde ocupar todo o território que ia do Grande Rio às Montanhas de Ashid.

4 E mais uma vez eles creram em Salaham, e Salaham os abençoou.

Capítulo 2

SALAHAM voltou a falar com o vidente, “Sede fiéis apenas a Mim e cumprirei minha palavra, sereis o maior povo que já pisou esse chão. A partir de hoje, essa terra se chamar Hadah, e vós sereis os hadanitas, Meu povo.”

2 E os hadanitas creram em Salaham, e Salaham abençoou os hadanitas. E os hadanitas se espalharam para além do Grande Rio, e grandes foram seus feitos.

3 E vieram as chuvas, e vieram os ventos, e veio o frio, e vieram as flores. Os soberanos de Hadah eram sempre homens sábios e logo a fama desse povo se espalhou pelo mundo. Vários soberanos de outros povos vinham receber conselhos e davam grandes quantidades de presentes a esses reis.

4 Povos invejosos fizeram marchar seus exércitos contra Hadah, mas Salaham estava com eles, e Salaham lutava ao lado dos carros de guerra dos hadanitas.

5 E logo não havia país maior, mais belo e mais cheio de sabedoria que Hadah. Eles conheciam todas as artes e todas as ciências e todas as feitiçarias e todos os segredos dos Protetores e dos Espíritos de Salaham.

6 E enquanto eles creram em Salaham, Salaham os abençoou.

Capítulo 3

MAS o Enganador tudo via das profundezas do Abismo, e invejava a glória que o povo escolhido rendia a Salaham. Invejava a fidelidade dos hadanitas para com Salaham e tramava contra a cidade.

2 O Enganador fez-se estrangeiro de boa aparência, que foi acolhido entre festas pelos hadanitas. Deram-lhe um lugar de honra ao lado do rei, cobriram-lhe de presentes, levaram-no para assistir às festas.

3 Ele gozou de todas essas delícias e conquistou a confiança do rei e do povo. Quando viu que todos riam de seus gracejos e acolhiam seus conselhos, começou a aplicar o fel da lisonja no coração dos hadanitas.

4 Disse a eles que eles eram o orgulho de Salaham e que eram os melhores e mais justos homens da terra. Disse que podiam fazer o que desejassem, pois nada lhes sucederia. Disse que todos deveriam se curvar ao seu poder.

5 Assim, o Enganador semeou a arrogância no coração dos hadanitas.

Capítulo 4

HADAH continuou crescendo, e Salaham os abençoava porque eram justos e criam Nele. Os sábios hadanitas criavam armas de guerra mais precisas, e formas de fazer as plantas darem mais frutos na colheita. As músicas de Hadah eram as mais melodiosas e suas cidades, mais alegres.

2 O veneno do Enganador, porém, começou a ferir o coração deles e eles começaram a se achar mais justos que os outros povos. Começaram a julgar questões entre dois povos, e decidir quem tinha razão. 3 Diziam que todos os povos deveriam adorar Salaham, falar a língua dos hadanitas, comer e jejuar nas horas em que eles comiam e jejuavam.

4 Salaham chamou o vidente e mandou dizer ao povo de Hadah: “Hadanitas! Não entrai em guerras que não vos pertencem, nem vos corrompais com os outros povos! Eu irei salvá-los ou perdê-los quando for o tempo! 5 Apenas creiais em Mim e Me obedeçais, e irei dar a vós prosperidade e supremacia. Se quiserdes mais do que vos dou, a vós estará reservado o castigo dos ímpios!”

6 Mas o coração do povo estava duro como pedra e eles murmuravam entre si. “Salaham nos deu essa terra e nos fez o maior de todos os povos. Devemos, pois, governar os outros povos e fazê-los largar suas práticas idólatras e impuras.”

Capítulo 5

OS HADANITAS viraram seus olhos cobiçosos para as terras além das suas. Achavam que, por serem os escolhidos de Salaham, tinham direito aos melhores frutos das outras terras. 2 Suas artes deixaram de ser cantos de louvor a Salaham e sua obra para serem cantos aos prazeres da carne. Sua ciência tornou-se serva exclusiva da guerra. Sua feitiçaria passou a ser apenas para seu deleite. Distorceram os segredos dos Protetores e dos Espíritos de Salaham de acordo com suas idéias orgulhosas.

3 Marcharam contra as outras terras e as submeteram. Para guardar as riquezas que pilhavam, construíram um templo enorme e ímpio. Era um templo belo, mas suas fundações eram regadas de sangue. 4 Salaham os avisou várias vezes de sua conduta ímpia, mas eles ignoraram todos os avisos de Salaham.

5 Do alto de seu orgulho, seguros de sua feitiçaria, os hadanitas não perceberam o que pouco a pouco haviam se tornado. Mas Salaham percebeu, e chamou o vidente que vivia dentro do templo.

6 “Hadah, Hadah! Vossos pecados se amontoaram e chegaram até Mim, nas alturas. Que fazeis de teus irmãos, a quem determinei que désseis o exemplo de retidão e virtude? Que fazeis dos dons que permiti que possuísseis para espalhar Minha palavra e Meu amor? 7 Quantas vezes vos adverti? Quantas vezes vos fizéreis surdos às minhas advertências? Basta! Mil vezes basta! Ouçais, hadanitas, e ouçais bem: só não destruo vosso povo por amor aos justos que aí estão. O dia em que o último justo morrer, Hadah morrerá com ele.”

Capítulo 6

DESESPERADOS, os hadanitas começaram a procurar pelos justos de seu povo para protegê-los e, assim, proteger todo o povo. Mas era a vontade de Salaham que os hadanitas pagassem seus pecados, de modo que os justos morreram todos.

2 Um morreu de grave e misteriosa doença, outro morreu atacado por feras e ainda outro morreu atingido por um raio. Não importava o que as artes, as ciências e a feitiçaria dos hadanitas fizessem, a morte ceifou os justos um a um.

3 Até que restasse apenas um menino. Esse menino foi entregue ao Chefe do templo, um homem que não era justo, mas era sábio, e ensinou ao menino a palavra de Salaham e o Caminho da Virtude.

4 E o menino cresceu e, como era justo, as palavras frutificaram em seu coração. Sem o saber, os hadanitas haviam criado sua própria ruína.

Capítulo 7

O ÚLTIMO JUSTO era amado por Salaham por seu coração reto e sincero, mas viva apenas dentro dos limites do templo. Por medo de que isso maculasse o coração dele, os hadanitas não lhe contaram sua negra história, nem permitiam que ele convivesse entre os homens.

2 Mas Salaham viu a verdade e a coragem no coração do justo e mandou um forte vento do leste, que abriu os olhos dele para tudo o que acontecia no mundo sem que ele soubesse. Ouvindo isso, ele se encheu de disposição para a luta que restaurasse a justiça.

3 Confiou ao vento suas disposições e este partiu para trazer pessoas que quisessem colaborar com as disposições do justo. 4 Dentro do templo, o justo passou a espalhar suas idéias aos hadanitas que quisessem escutá-los. Estavam corrompidos demais para voltarem tão facilmente ao Caminho da Virtude, mas alguns decidiram lutar ao lado dele.

Capítulo 8

NO DEVIDO TEMPO, o vento do leste voltou, trazendo consigo um exército de todos os seis elementos, para lutar ao lado do justo. 3000 entidades da terra, 3000 entidades dos ares, 3000 entidades do fogo, 3000 entidades da água, 3000 entidades da luz e 3000 entidades das trevas se apresentavam a Hadah, e se lançaram contra o templo que era o orgulho dos hadanitas.

2 Hadah não esperava tão temerário ataque e, apesar de suas assustadoras máquinas de guerra, não puderam vencer facilmente. Salaham estava não mais do lado deles, mas do lado do justo e de seu exército. 3 A batalha demorou quarenta e nove dias e quarenta e nove noites.

4 Na quadragésima nona noite, o líder do exército hadanita, o homem de coração mais negro entre todos, feriu de morte o justo.

Capítulo 9

O JUSTO, o último justo de Hadah, expirou nos braços do vento leste. Este tornou-se uma tormenta, que uivou, derrubou tudo ao redor e espalhou por todo o exército das entidades a dor da perda.

2 O céu escureceu e os trovões ribombaram. O vento levou as entidades que restaram de volta ao nascente, aterrorizado com a tempestade que se aproximava. 3 Os hadanitas bradaram alto o seu triunfo e se embriagaram com a felicidade da vitória. Blasfemaram e chamaram o justo, o vento e as entidades de covardes.

4 Mas a palavra de Salaham é lei. A tempestade caiu com toda a fúria dos Espíritos. A chuva era tão violenta que varria as plantas do solo. Os raios eram tão fortes incendiavam tudo o que tocavam. 5 Vieram furacões e os terremotos abriram grandes fendas no chão. O dia se tornou noite e a escuridão não permitiu que os hadanitas perscrutassem sua intimidade.

Capítulo 10

DURANTE três dias e três noites, Hadah se convulsionou horrendamente. Os hadanitas procuravam fugir, mas em vão. Depois da terceira noite, tudo o que sobrava da orgulhosa nação era uma pilha de ruínas e cadáveres.

2 Os que haviam escapado, o conseguiram apenas para espalharem a história e receber o castigo quando fosse a hora devida.

3 Quem tem olhos e ouvidos e inteligência ouça a história de Hadah. Essa história, que Salaham determinou que seja conhecida por todos os cantos de Kainin, para servir de exemplo e aviso.

4 Quem divulgar essa história, que receba as bênçãos de Salaham. Quem ocultar essas palavras, que receba uma parcela do castigo dos hadanitas. 5 Quem tem olhos, e ouvidos, e inteligência, ouça as palavras de Salaham.

6 Zureh! [= “dê-se cumprimento”]

Aila terminou a leitura e estudou atentamente as reações do garoto. Colocou a mão sobre o ombro dele e disse, muito séria:

_Como pode ver, Sr. Zero, esta história é a prova de que Salaham preza muito os justos e que, enquanto houver apenas um deles, todo um povo pode ser poupado. Procure ser sempre esse justo, Sr. Zero. Talvez não dependa de você o futuro de um povo, mas o futuro de uma pessoa ou de uma idéia. Se os outros não são justos, esse problema é deles, e não seu. Agora vá, e continue seus exercícios com a espada.

O menino assentiu. Juntos, reverenciaram o livro, e ele deixou o aposento com a testa franzida.

Aila ficou à janela. Às vezes, tinha dúvidas de que aquele garoto pequeno e ainda cheio de sinais do coma prolongado que sofrera poderia ser o libertador pelo qual as Ilhas Priscot suspiravam tanto. Porém, quando via a vontade com que Zero treinava, a obstinação de seus olhos e a firmeza de seus princípios, seu coração serenava novamente.

De repente, sentiu que omitira algo importante ao não contar ao menino que o livro de Ezanyan não era um relato de coisas passadas, mas um livro de profecias ainda não realizadas. A apreensão durou apenas um instante. “Quando ele crescer, saberá.”

A ex-amazona voltou-se novamente para o pupilo e seu coração apequenou-se por ele. “Não será um fardo muito grande que coloco, pouco a pouco, sobre seus pequenos ombros? Salaham, que seus Espíritos e os Protetores velem por essa criança... E pelo povo sofrido de nossas queridas Ilhas.”

Uma brisa um pouco mais morna fez-lhe cócegas no nariz. Ela sorriu. Era o jeito carinhoso como o Protetor dos Ventos das Ilhas Priscot lhe dizia que ele e seus companheiros não haveriam de abandoná-la.

Strix Van Allen
Enviado por Strix Van Allen em 16/04/2007
Reeditado em 18/04/2007
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