Auto-engano
 
                                  "A ficção pode nos levar a uma
                                                  verdade mais aguda que a rea-
                                                  lidade cotidiana e aparente".
                                                                              Fellini


 
     Quando fico sozinho em casa, depois de ler meus autores preferidos,  ligo a televisão visando um bom relax das minhas leituras. E acabo também fazendo uma boa catarse. Como meus leitores sabem, o único palavrão que costumo falar é merda. Espero que os mais pudicos não se importem com isso e não me venham aconselhar a registrar este texto como erótico.
                        Ora, esse modesto palavrão é falado por todo o povo francês. É sabida a irritação do francês, que por qualquer coisa explode com um “merde”. É conhecida a piada do turista que visitou Paris. Perguntado se havia gostado de Paris, exclamou: - " Paris é adorável, sem os franceses".  Acho que isso vem de longe, desde a revolução francesa. Danton, Robespierre, Marat, até a rainha Maria Antonieta xingavam com a sofistificação  da língua francesa o seu “merde”. Chego a ouvi-la, dizendo: - " Merde, se falta pão que o povo compre brioches".  É possível que antes da revolução o precursor desse singelo xingamento tenha sido o notável Voltaire, um filósofo nada ortodoxo.
                        Mas como eu ia dizendo, fico mudando de canal o tempo todo e  descompondo os apresentadores de programas infames.  É a minha doce catarse, o que me livra de fazer uma análise freudiana terrível.
                        Outro dia, depois de insultar um conhecido apresentador, veio-me o pensamento de que poderia aparecer, de repente,  uma mulher totalmente nua, com apenas um pequenino brinco na orelha esquerda. E foi quando delirei. Imaginei a mulher saindo da tela e me saudando toda amável, com aquele ar de tentação que todos conhecem.
                        Cheguei à conclusão que apenas conversaria com a moça. Mandaria que ela se sentasse ao meu lado, na beirada da cama, numa boa.  Puxaria um “papo cabeça” com ela. Falaria da conjuntura econômica, da Copa do Mundo de 2014, dos black-blocs, se ela seria a favor ou não das biografias autorizadas, se os cientistas algum dia conseguiriam uma vitória sobre o câncer.  Perguntaria se ela estava por dentro dos novos gêneros de poemas. Da falta de melodia das músicas modernas.   Das atuais novelas, do César, de "amor à vida". Enfim, mostraria a ela, com todo respeito, que eu era um perfeito cavalheiro e que a violência da nudez dela  esparramada sobre mim não me intimidaria,  no máximo, faria tremer a minha mão direita. Alguém perguntaria: - Por que a direita? – ora, responderia categoricamente, - para não me confundirem com um retrógrado esquerdista.
                        Depois desse delírio todo, fiquei-me perguntando qual a razão de tanto respeito, de tanto cavalheirismo?   desta pose de um inglês da época vitoriana?  O meu espírito carioca teria fugido a um confronto tão desigual?  Foi quando me tranquilizei. Eu estava sendo vítima de um auto-engano da minha mente. Essas mentirinhas que contamos para nós mesmos!