O BOBO DA BANDEIRA

O BOBO DA BANDEIRA

Via-o passar mancando pelas vielas e becos da cidade, empunhando o embornal a bandeira vermelha e sua inseparável amiga, a vara de pescar. Pontual com o sol no equador enquadrando o meio dia. Bastava o astro maior acimar-se de nossa cabeça e lá estava ele, manqueteando pela Praça da Igreja, descendo pela Rua do Picolé, e antes de chegar às margens do córrego, acelerava o passo, levantando até umas nuvenzinhas de poeira sobre a sua botina surrada, enfrentando os últimos contrafortes da esburacada Rua do Sapo. Os moleques como eu havíamos apelidando-o de BOBO DA BANDEIRA.

Não fazia mal a ninguém e ninguém prestava muita atenção no que ele fazia. Destarte. Vendo-o pescar sobre a sombra frondosa da imensa gameleira, que ora nos servia como trampolim, ora como lanchonete, ora nas cheias como lastro da enchente, ora na vazante como barranqueador de éguas, ora como papeador das galinhas ariscas que se aventuravam por aquelas bandas, e, naquela hora como ancoradouro dos sonhos daquele senhor, que todos sabiam da existência, todos o ignoravam como insignificante cidadão.

Como naquele momento fazia frio, a molecada não se aventurava ao costumeiro banho. Sem saber por que até um gostoso silêncio orquestrávamos. Lá da vara do BANDEIRA, podia-se notar um, dois, muitos piaus e outros tantos lambaris e chorões. Nós acostumados com a fartura de peixes, não dávamos muita importância pelo tanto que ele pescava. Em determinado momento levantou-se calmo, retirou o saco onde guardava o fruto do seu trabalho, pesou-o com leve levantar de braços, demonstrando experiência no que fazia, deu um sorriso de mofa, recolhendo toda a sua traia, indo embora, nos ignorando por completo, como ignorado também estava.

Doutra feita, ao largo do curral do Joaquim Lúcio, acompanhando um enterro onde o corpo do "dito-cujo" estava dentro de uma rede de dormir, avistamos nada mais, nada menos do que o Bandeira, mais uns quatro ou cinco acompanhantes, desentoada mente cantando uma ladainha:

- Ave Maria cheia de Graças... Coração santa sempre será... Cordeiro de Deus... Ave, ave, ave Maria...

Resolvi ali também acompanhar o cortejo fúnebre até ao destino final, por absoluta falta de diversão, na pachorrenta cidade onde eu passava as férias e pouca coisa acontece. Chegando ao Campo Santo da Árvore da Cruz, apearam o cadáver no chão, no cerimonial onde toda minha experiência até então se aproximava de nada, assisti estarrecido, o desembrulhar daquela carga macabra, jogando-a com suas paupérrimas vestes dentro de uma rasa sepultura, recolhendo a surrada rede xadrez vermelha, talvez a única herança deixada pelo retirante da vida. Adeus e amém.

O nosso conhecido comandou um palavreado estranho, de onde eu só consegui entender, o vai com Deus, que assim seja...

Voltei para o curral onde a gurizada participava de uma tourada de bezerros, estando quase todos sentados nas cercas, estando uns dois ou três estimulando os animais para investirem contra si, agitando as camisas coloridas.

No outro dia, a mesma hora sobre o sol tropical, mancando pela Rua do Sapo, lá ia o Bobo da Bandeira , procurando chegar ao riacho na sua costumeira pescaria. Como eu estava sozinho, resolvi acompanha-lo tentando conhece-lo melhor.

- Sê cansa não Banda?

- Canso não sô!...

- Todo dia sê pesca?

- Pesco!...

- Todo dia dá peixe?

- Não senhô !...

- E quando não dá peixe ?...

- Os tadinhos, ficam com fome!...

- Quem são os tadinhos?...

- Filhos dos outros sô!...

- Não são seus filhos?...

-Não sô... Sou defeituoso, muiê nenhum quê nada comigo não, eu só cuido dos filhos dos outros.

Resolvi então acompanha-lo a fim de me inteirar de sua estória, caminhamos para o outro lado da cidade, nos dirigindo lá pelas bandas das casinhas, onde a prefeitura havia construído e continuava construindo tantas, que era o lado da cidade que mais crescia. O nome popular do conjunto era Vila dos Pobres. Quanto mais andávamos, mais as pessoas cumprimentavam-o. A cada minuto alguém lhe dizia alô, uma cumprimentava dali outro, de lá, e continuávamos a andar. Parece-me que quanto mais andávamos, mais ele crescia e incrível, não mancava mais.

Chegava um moleque correndo e lhe falava:

- A Branquinha quer te ver...

Chegava outro moleque:

- A Linda te chama...

E mais outro:

- Dona Cota mandou pedir para você passar por lá...

Eram tantos os recados que até perdi a conta. Minha turma nem imaginava que alguém tão insignificante para nós, era tão requisitado por todos. E você Dori onde mora.

- Há o meu palácio já passou, é uma casinha pequenina que ficou lá atrás.

- Mais Banda você não me falou nada.

- “Portância não, vou lá tão pouco só para descansar e algumas noites para orar”.

- Mais Banda você reza?

- E como, primeiro gosto de ajudar os outros, segundo gosto de ajudar os bichos, terceiro gosto de rezar para todos, isso me faz muito bem.

- E seus pais?...

- Tem pais não...

- E seus parentes?

- Têm parentes não.

- Então você vive só?

- Vivo só não, todos aqui são meus parentes, meu pai, minha mãe, meus avós, minhas irmãs, meus irmãos.

- O que você faz então.

- Eu cuido de todos, quando um adoece eu levo ao médico. Quando um morre ajudo a enterrar. Quando algum tem dor eu procuro sarar. Quando alguém tem fome eu tento arrumar comida, ganho distribuo, vou pescar distribuindo o peixe que consigo...

Sai dali boquiaberto, pois nunca havia tomado conhecimento de algo assim. Já havia conhecido a maldade, o egoísmo, a ira, o ódio, o orgulho. Mais altruísmo foi a primeira vez. Fiquei pensativo, boquiaberto, pasmo de ver tanta bondade, de como um aleijado pequenino transformava-se em um gigante. Sai moralmente arrasado daquela vila. Não vi o sofrimento de ninguém. Só vi a vontade de servir a todos em primeiro lugar.

Chegando a tardinha no curral para participar das touradas, uma de nossas traquinagens preferidas. Tive a coragem de reunir primeiro a turma e contar a minha experiência, percebi que ninguém teceu nenhum comentário. Calei-me continuando a levar a vida que Deus nos deu. Anoiteceu.

Certo que ninguém havia gostado da minha estória de ontem, já por volta do meio-dia, peguei uma vara de pescar, corri ao encontro do Banda que estava passando, alcancei-o e fomos conversando até o riacho. Quando lá chegamos que surpresa, todos meus amigos indiferentes já estavam lá a pescar.

É pelo menos naquele dia não faltaria peixe para ninguém.

Goiânia, 18 de dezembro de 2013.

jurinha caldas
Enviado por jurinha caldas em 17/12/2013
Código do texto: T4614831
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