Muralha de espinhos

Não é como dizem por aí. Nunca foi. Sabemos que é sempre assim, quando histórias começam a correr na boca do povo e já não há mais nada a se fazer pra evitar isso. Quem me dera eu fosse de todo essa malévola que dizem que sou, ao menos não teria feito o que fiz e assistiria a desgraça tomar conta do reino. Mas não foi assim que aconteceu, sabemos disso.

Eu era nova, não é como inventaram por aí. Como uma velha teria toda essa inocência, ou até mesmo essa disposição para tamanha maldade (como todos ouviram ser). Não. Começo a desmentir-lhes por aí. Era jovem e ingênua, e acreditava que poderia ajudar o reino.

Passava meu dia a tear, como muitas mulheres da minha época. Quando eu tinha tempo livre, gostava de brincar com a transformação das coisas. Este é um segredo meu que sempre guardei, assim como o fato de ver sobre o futuro enquanto teava. No início das minhas aventuras, conseguia mudar apenas pequenas coisas. Hoje, já posso me transformar em um dragão caso quisesse. Nunca o quis, mas eles fizeram questão de dizer o contrário.

Foi enquanto eu teava que eu vi. Falam que foi maldição, mas foi mais uma premonição. Ainda há histórias onde falam de uma profecia. Acreditem no que quiserem, sei que o que vi foi isso, enquanto teava. E eu tinha de avisar a todos. Vesti meu primeiro manto que alcancei e corri para o castelo. Era batizado da filha do rei.

Não sei quanto tempo eu levei para alcançar o castelo, nem como fiz para atravessar a bateria de guardas que estavam em meu caminho, talvez eu tenha voado, ou simplesmente aparecido lá dentro. Sei que fui a pé, mas não me lembro do trajeto, estava desesperada demais para avisá-los do mal que estava por vir.

Quando entrei no saguão, todos me olharam. Eu estava molhada de suor e provavelmente estava imunda, mas não me importei, caminhei até o rei e a rainha assim mesmo. Os olhares me acompanharam em silêncio e eu me sentia constrangida, mas não deixaria isso me impedir de fazer o que fui fazer. Parei à beira de seu berço. Era uma linda menina, um bebê gracioso, assim como toda a realeza deve ser.

Juntei toda a segurança que tinha em mim e falei. Falei para todos ouvirem. Minha voz ecoava e eu sentia a segurança presente no meu modo de falar, apesar de tamanha segurança não estar presente em mim. Eu disse tudo o que vi e tudo que aconteceria. O olhar de espanto deles era óbvio, e nada mais justo após o que acabaram de ouvir. Esperei que houvesse algum tumulto por parte dos pais do bebê, que brincava gentilmente com um móbile que havia ganhado de presente de uma das madrinhas. Ah! As madrinhas eram todas tão belas, belas como fadas! Se me dissessem eu até acreditaria que eram, mas sei que não poderia ser verdade.

A expressão na face do rei foi mudando de espanto para raiva e em seguida, preocupação. Só pude afirmar mais uma vez antes de partir às pressas. “Aos 15 anos!” e então parti. Corri por aqueles corredores lutando ao máximo para não ser vista, e no fim, acho que consegui. As histórias, depois ouvi dizer, dizem que desapareci em uma nuvem de fumaça, outras dizem que sai voando como um corvo. Claro que não aconteceu assim. Só eu, eu e Deus, sabemos o quanto corri para sair viva daquele castelo.

Chegando em minha humilde residência, decidi me isolar. Juntei tudo o que tinha, algumas roupas, mantos, cobertores e minha roda de tear, com algumas agulhas e linhas. Juntei tudo que me era capaz e levei para uma cabana que minha família tinha construído no meio da floresta há muitos anos.

No dia seguinte, ouvi rumores de que o rei havia proibido a arte de tear na cidade, e recolhera toda e qualquer coisa que fosse usada em tal atividade. Pensei em entregar a minha que estava escondida no meio da mata, mas minhas necessidades eram mais fortes, eu não podia parar de tear. Sendo assim, me calei.

Durante anos me mantive isolada no casebre no meio da floresta. Evitei ao máximo povo do vilarejo, apenas indo até lá por necessidades mais extremas. Ano após ano eu teava com menos frequência. A culpa de ainda ter aquela máquina me corroía, mas eu não podia deixar de fazer, minha alma pedia por isso. Foi nessa época em que desenvolvi minhas habilidades secretas de transformação. Também foi nessa época a primeira vez em que consegui mudar minha forma.

O primeiro animal que eu me tornei foi um corvo. Isso me possibilitava visitar o vilarejo com mais frequência sem ser notada, e ainda me permitia passear mais a fundo na mata sem correr risco de ser surpreendida por ladrões ou criaturas desconhecidas que se escondem na natureza. Em um desses passeios que eu avistei então uma linda casinha que eu nunca havia notado por ali. Da chaminé saía uma fumaça que cheirava a bolo. Havia alguém morando ali, e isso era certo.

Então eu a vi. Depois de anos, eu a vi. Estava vestindo uma roupa simples, e dançava entre os animais. Sua voz suave ecoava no vento e seu cabelo dançava acompanhando o movimento de seu corpo. Porém algo chamava mais minha atenção que estes outros detalhes. Seus olhos, azuis como jóias raras. Era ela, o bebê que eu vira anos atrás quando fui levar aquela fatídica notícia ao palácio. Aquele foi meu momento mais feliz, ela estava viva! Nunca saberão como eu me senti feliz naquele momento. Eu havia feito algo útil pelo reino. Aquela manhã, quando voltei para meu casebre, estava decidida a levar a roda de tear para o castelo do rei, e escondê-la para que ela nunca a encontrasse.

Vesti meu manto novamente, mas dessa vez, preparei algumas palavras que me fizessem aparentar mais velha. Não podia correr o risco de ser reconhecida após ter ouvido na feira que o rei estava caçando a mim, a bruxa que rogara uma maldição em sua princesa. Assim que o encantamento fez efeito, preparei mais algumas palavras e guardei a roda de tear comigo, e então voei para o castelo.

Não pensei em nada, disso tenho certeza. Apenas segui para meu destino, onde eu haveria de sumir com essa roda de tear, junto das outras. Entrei por uma das janelas do andar mais alto e perambulei até achar um quarto que me aparentasse insignificante e inabitado o suficiente para eu despejar meu bem ali.

É então que novamente a história se distorce. Não posso reclamar, minha versão não é tão importante. Só não gostaria que as mentiras inventadas por eles, esse rei maldito e seu queridinho cunhado, o príncipe, não sobrepusessem a verdade. Enfim, não deixarei mais essas distrações interromperem meu relato.

Assim que entrei naquela sala e coloquei minha roda de tear ao centro do quarto, foi como se parte da minha memória fosse apagada. Quando dei por mim, eu estava sentada, teando naquela roda por uma última vez. Não sei quanto tempo fiquei sentada ali, mas creio que foi bastante.

Ela chegou sorrateiramente. Quando olhei, estava parada na porta do quarto. Linda como sempre, vestindo um vestido azul que realçava mais ainda seus olhos. Parei e fiquei olhando-a, teno certeza de que sorria. Ela caminhou até mim e sorriu.

- Que objeto engraçado, senhora!

Apenas pude sorrir.

- O que é este objeto tão incrível?

- É uma roda de tear, bela princesa. Desculpe-me o incômodo, mas não deveria estar lá em baixo onde sua festa acontece?

- Verdade, não posso descer até saber o que é este objeto tão diferente, minha senhora. O que ele faz?

Foi muito rápido quando tudo aconteceu. Um descuido e pronto, havia acontecido. E daqui pra frente, existem várias histórias. A verdade é que ela foi visitada pelo príncipe durante todo o seu sono. Não houve guerra, não houve resistência. Não houve um heroísmo contra os arbustos de espinhos. Ele simplesmente ia por satisfação pessoal àquele quarto, ou assim prefiro dizer aqui. Após isso se casaram, quando ela acordou. Sei que foi mãe de gêmeos, isso é um fato.

Quanto a mim, se eu ao menos não tivesse sido tão tola. Nunca me encontraram, vivo na eterna fuga e tentando suportar minha própria culpa. Se eu ao menos tivesse sido mais cuidadosa, se eu ao menos não tivesse deixado minhas sedes sobreporem o que era certo a se fazer desde o início. Agora já é tarde demais. Em uma das histórias, dizem que me tornei um dragão e morri lutando contra o príncipe. Não, não acontece isso. Eu fugi, por covardia, por vergonha. Se ao menos eu soubesse... Ah! Não teria que carregar essa culpa de ver aquilo acontecer, seus cabelos dourados, sua pele de seda, seu dedo na agulha, uma bela adormecida.

Pedro Casseb
Enviado por Pedro Casseb em 23/01/2014
Reeditado em 23/01/2014
Código do texto: T4662012
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