Vermelha

- Olhe para o outro lado da rua – o homem menor, ou melhor, o mais baixo, olhou na direção que o outro homem, o mais alto, havia lhe indicado. – Vê aquela mulher?

A noite estava escura; um breu. Sem estrelas, sem lua e sem nuvens. Uma noite absoluta, indiscutivelmente perfeita. Se não fosse a boa iluminação da cidade, o pequeno Hafron não teria visto a mulher que seu amigo lhe apontara, ainda mais porque ela estava usando um casaco comprido e preto, estava quase camuflada. Ela estava parada sob um dos clarões de um poste e parecia estar um pouco impaciente. Batia o salto do sapato na calçada, brincava com um pingente que trazia entre os seios e mexias nas pontas do cabelo longo e castanho. Hafron não pôde ver mais do que isso.

- Estou vendo sim – ele respondeu sem tirar os olhos da mulher. – O que tem ela?

- Não está reconhecendo? – o outro insistiu.

- Não, ainda não – Hafron apertou os olhos. – Não, acho que não – ele riu.

- O nome dela é Marina – o mais alto conteve um risinho e continuou em tom debochado. – Pensei que você, talvez, pudesse conhecê-la.

- De onde eu poderia conhecê-la? – Hafron perguntou inocente.

- Ela é famosa.

- Famosa? O que ela tem de mais? – ele caçoou.

- Não muito – o tom debochado voltou. – Ela não é nada mais do que a portadora do Eterinu.

- Do o que?

- Hafron, seu inútil – agora, além de debochado ele foi um pouco agressivo. – Não prestou atenção na última reunião no café?

- A reunião no Maya? – Hafron colocou um dos dedos na testa enrugada, como se estivesse procurado dentro de sua cabeça o que seria o tal Eterinu. – É o amuleto da reunião? – apesar de não ser nem um pouco gago, ele gaguejou.

- Sim, caro amigo. Ela está com o temível amuleto no pescoço.

Enquanto eles conversavam, a inquieta Marina continuou lá, esperando. Mas não ficou por muito tempo. Um carro desceu a avenida e parou diante dela. Em um segundo ela não estava mais lá. O carro arrancou e desapareceu ao dobrar a esquina seguinte.

- Ela se foi – Hafron deixou seus olhos acompanharem o carro.

- É melhor assim.

Os dois foram até onde ela estava. Por sorte a rua estava deserta e eles não precisaram tomar muitos cuidados, mesmo porque eles não eram muito bons nisso.

- O que diabos ela estaria fazendo aqui? – Hafron coçou o queixo barbudo.

- Ela veio deste beco – o outro acrescentou.

- Você quer entrar aí? – Hafron arregalou os olhos.

- Sim, sim – o mais alto respondeu animado.

Hafron voltou-se para a coluna de noite mais escura que vinha do beco. Era estreito, úmido e, possivelmente, assombrado.

- Há alguma alternativa além dessa? – ele perguntou, mesmo já sabendo a resposta.

Os dois entraram. Hafron foi primeiro, porque se fosse por último não ia conseguir ver nada além das costas do seu companheiro mais alto. O lugar estava completamente alagado, provavelmente havia algum vazamento nas encanações. O cheiro era igualmente molhado, cheiro de mofo e lodo. Em dois minutos seus sapatos ficaram ensopados e o desejo de dar o fora dali já estava tão grande quanto a curiosidade que os fizera entrar. Andaram por muito tempo. O corredor dava voltas e mais voltas e ficava cada vez mais estreito. De repente eles avistaram uma luz fria e esverdeada. Ela estava alguns metros à frente, cercada por uma nuvem densa de noite. Hafron e o homem mais alto aproximaram-se cautelosamente, como se estivessem com medo de alguma coisa. A luz vinha de uma lamparina que estava presa em um gancho sobre uma porta de madeira ensebada. Ela era da largura do beco e um pouco mais alta do que uma porta normal, então, para Hafron, era enorme.

- O que faremos? – Hafron olhou para trás e perguntou ao amigo.

- O que acha de entrarmos?

- Se queremos entrar é melhor batermos antes, não é? – Hafron retrucou.

- Sim, sim – ele balançou a cabeça. – É mais educado.

Hafron respirou fundo e bateu três vezes. Em menos de meio segundo alguém abriu a porta.

- A senhora voltou? – disse uma voz esganiçada pela fresta. – Quer mais alguma coisa? – quando percebeu que não era sua senhora que estava ali, o dono da voz tentou fechar a porta depressa. Mas, Hafron e o homem mais alto empurraram também e como eram mais fortes acabaram vencendo a disputa. O homenzinho caiu de costas no chão e não pôde impedir que os dois entrassem. Era uma criatura esquisita. De membros longos e ossudos, pele branca e veias salientes e azuis. Quando viu que os dois haviam entrado, disparou pelo corredor longo e cheio de portas. Seus pés mal tocavam o assoalho, ele precisava se esconder o mais rápido possível. Encontrou uma porta aberta e saltou dentro dela. Hafron e o homem mais alto se entreolharam sem entender o que estava acontecendo. O corredor era muito comprimido, parecia não ter fim e se estendia como uma caverna, úmida e escura. Um vento frio vinha lá de dentro, tinha cheiro de medo e dor.

- É melhor fecharmos a porta – a voz do homem mais alto quebrou o silêncio. - Antes de entrarmos nisso aí – ele olhou para o fundo do corredor, mas sua visão não pôde alcançá-lo.

Eles fecharam a porta por onde haviam entrado e começaram a andar cautelosamente. Verificaram algumas portas, estavam todas trancadas. Depois de muito procurar, encontraram uma aberta, somente uma entre centenas. A maçaneta estava muito fria e Hafron quase ficou com a mão pregada nela. Além da porta, havia apenas escuridão e um pequeno ponto de luz minguado a alguns metros de distância. O homem mais alto acendeu a luz.

- Encontrei o interruptor – ele sorriu.

- O que será isso? – Hafron se espantou ao ver o que havia na sala. Sobre um suporte de madeira, havia um grande frasco de vidro do tamanho de uma piscina, só que era comprido, como um tubo de ensaio gigante. Em um dos lados, de frente para Hafron, havia uma escada de seis degraus que levava até a borda do frasco. Hafron olhou para o homem mais alto, como se esperasse um sinal de aprovação, e depois se voltou para o pote. Ele subiu os degrau e debruçou-se na beirada. Lá dentro havia um monte de peixes esquisitos com dentes protuberantes e olhos esbugalhados. “Essas piranhas devem ser bravas”, ele pensou. Bem lá no fundo, estava o brilho que ele havia visto no escuro. Ele vinha de dentro de outro vidro que estava mergulhado dentro do frasco maior. Esse, por sua vez, era muito menor e estava tampado, provavelmente, era um vidro de azeitona que foi reaproveitado.

- O que será que tem dentro daquilo? – Hafron olhou para trás e perguntou ao homem mais alto.

- Uma lâmpada?

- Claro que não! – Hafron ficou bravo. – Deve ser algo importante, parece que esses amigáveis peixinhos estão vigiando o vidro que está lá dentro.

- Tome – o homem mais alto enfiou a mão no bolso do casaco comprido, marrom e puído que ele estava usando e tirou um emaranhado de linhas de lá. – Dá um jeito – ele entregou as linhas ao Hafron.

- Você quer que eu pesque o vidrinho? – ele arregalou os olhos. – É isso?

- É, oras – ele levantou os ombros.

Hafron pegou uma das pontas do bolo de linhas e amarrou em um anzol. “Sim, ele anda com anzóis no bolso”. Verificou se estava firme e jogou o anzol dentro da água. Ele afundou vagarosamente até tocar o vidrinho. Hafron ficou nas pontas dos pés para enxergar melhor. Balançou, puxou, esticou a linha até prender o anzol na tampa do vidrinho. Começou a puxar delicadamente. Ele estava subindo, os peixes ficaram nervosos, começaram a nadar de um lado para outro e tentavam abocanhá-lo. Depois de algum tempo ele já estava na superfície, Hafron o tirou rapidamente de lá. Levantou o vidrinho e olhou dentro dele. O brilho não era de uma lâmpada ou de um vaga-lume, era de uma fada, de uma brilhante fada vermelha.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 28/04/2007
Reeditado em 27/01/2008
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