LÁGRIMAS DO DRAGÃO

Havia dois dias que chegara. Ou dois anos? Não sabia, perdera completamente a noção do tempo. Dois dias, confirmaram-lhe. Permanecera incógnita com a ajuda da mais nova amiga. Nutria por ela um carinho especial, dado que talvez fosse a única coisa boa que sobrara de sua recente história mal sucedida. História mal sucedida, belo nome inventara a sua ferida bem no meio do peito.. Esta, que pretendia curar à partir daquele momento.

Entrou naquele recinto estranho com a confiança de quem estivera ali por muitas vezes. Se pensou em algum tremor ou vacilo o olhar da doce amiga acalmou-a. Parecia dizer que iria conseguir.

Logo foi notada. Olhares curiosos perguntavam-se quem era ela. Olhares simplesmente. Nada ainda a interessava. O ambiente , no entanto, agradava. As músicas eram de seu gosto. O homem que tinha o microfone nas mãos também.

Seu olhar logo guiou-se espontâneo para aquilo que procurava. Nos olhos daquele, que a pouco tempo a fez esquecer de sua alma de dragão. Não estava sozinho. À sua direita estava ela, sua cúmplice. Cúmplice mesmo? Ou seria ela a mentora do plano e ele um mero coadjuvante? À sua esquerda seu melhor amigo, que não por maldade seu primeiro alvo. Aproximou-se deles. O melhor amigo pareceu não acreditar que a via. Veio abraça-la com entusiasmo. Apenas conteve-se um pouco quando lembrou do amigo às suas costas. Aquela manifestação de apreço, imaginou ser considerada por ele uma traição. Não conseguiu controlar-se . Gostava dela. Não tinha nada que ver com a história mal sucedida.

Ela mesmo fitando o melhor amigo, concentrou-se na parede. Sim, parecia não ter nada à sua frente do que uma parede branca..Com os mesmos olhos observou os movimentos da cúmplice de seu inimigo, já que ele parecia não mais respirar, completamente impassível. Viu no olhar da cúmplice que a reconhecera pelo espanto e raiva. Viu-a enlaçando as mãos de seu acompanhante e que pela expressão dela imaginou estarem frias ou trêmulas. Quis arrasta-lo dali, mas ele não se moveu, enquanto ela sorria mentalmente aos gestos quase imperceptíveis dos dois.

Não soube o tempo que ficou a conversar com o melhor amigo e a fita-los. Tempo suficiente para o cessar da música e para o episódio que se seguiu, que nem feito sob encomenda sairia melhor.

O homem do microfone aproximou-se de seu grupo. Estonteante voz rouca, pediu ao melhor amigo que o apresentasse às moças. Ela sentiu aprovação no olhar da amiga. Dados os cumprimentos, o homem do microfone desacarregou todos seus elogios a elas, dando ênfase àquela desconhecida de pele bronzeada e de um sorriso
enganadoramente genuíno. Em alto e bom som ela fez-lhe um pedido. Que cantasse a música que mais mexia com seus sentidos. Aquela sobre ela mesmo. De um dragão que mesmo poderoso, derramara todas suas lágrimas a ponto de congelar-lhe as emoções.

Para provar sua paixão por tal música, abusou da sua sensualidade de fêmea de dragão, apoiando a perna, abaixando-se, abrindo o zíper da bota longa que usava e exibindo orgulhosa no tornozelo a mini figura de um dragão tatuado. Discreto, mas como ela gostava de dizer, intenso.

O homem do microfone, também em bom som, disse-lhe que o faria com todo prazer e qualquer outra coisa mais que ela quisesse. Voltou ao palco e soltou vaidoso sua bela voz.

Desde as primeiras notas ela voltou-se a seu inimigo e imaginou não ter mais niguém a sua volta. Apenas os dois penetrando um ao olhar do outro. Ele impassível, encostado ainda na parede `a meia escuridão, mas pelos movimentos das veias do pescoço dele , ela sentiu que cada nota musical era uma alfinetada no seu corpo. Enfim , ele não era de aço.

Porém, momentos não são eternos e aquele transe acabara ao final da música. De novo havia uma multidão. O melhor amigo estava de novo ao lado dele e também completamente irriquieta, a cúmplice. Ele parecia petrificado.

Terminada as apresentações, o homem do microfone, voltou acompanhado de um amigo felino e ofereceu proteção às duas moças para a satisfação da mulher da tatuagem.

Deu o braço a seu acompanhante e pôs-se em direção à saída, não sem antes olhar para traz e ver talvez um resquício de ira no olhar do inimigo, mas não o notou. Mal sabia ela que assim que perdeu-se da vista, o homem impassível respirou longamente como se antes faltasse o ar e irritou-se com o melhor amigo, rodeado de outros, respondendo com satisfação à curiosidade deles sobre a desconhecida.

No caminho de volta, nem sabia ela para onde, já não lhe interesava mais o homem do microfone. Sentiu-se frustada. O que conseguira? Nenhum gesto, palavra, reação mais intensa. Não havia doído. Sabia que embora surpreso, ele não dera a ela o gosto de vê-lo pertubado.
Fracassara. E quis então livrar-se do homem do microfone. O problema é que sua amiga parecia não querer livrar-se do amigo felino dele.

Como recompensa ganhou as chaves da casa onde estava hospedada. Separaram-se e ela ainda demorou um bom tempo para livrar-se dos ímpetos do homem do microfone, que lhe pareceu mais útil enquanto ainda o possuía.

Suspirou aliviada por não se perder. Quis gritar de frustação quando achou a fechadura. Seu plano récem começado, terminara. E na primeira volta para abrir a porta, quis gritar novamente de susto com o vulto que surgia à sua frente. O homem do microfone? Não. Era ele. O assassino de sua alma de dragão. Ousado!

Mal sabia ela que durante alguns minutos escondido na penumbra ele havia transpirado , tremido, gelado. Não sabia no seu íntimo qual seria sua reação se a visse chegar semi nua , acariciada pelo idiota do microfone, soltando gemidos ávidos de um prazer maior.

Pagara para ver. E o preço era alto. Os olhos dela, passada a surpresa tornaram-se negros, escorrendo rancor pelos cantos.
Subestimara-a. Lá estava ela, vinda de tão longe para assombrar sua pacata vida. E como a conhecia bem, adivinhara a pergunta que vinha. A cúmplice? Nem resposta deu ela soube então que era mesmo uma coadjuvante, não suportando a pressão do pequeno pedaço da noite de hoje. Fraca. Era a ela a quem tinha se juntado? Tolo. Uma pequena vitória.

Agora vinha a pergunta principal. Por que estava ali? Porque era a ele quem ela viera procurar, respondeu. Viu o desdém no rosto dela e então resolveu fazer algo que não sabia se devia. O dragão. Nunca perdera o espírito do dragão, disse-lhe. Incrédula, furiosa, ia dizer-lhe que era profano, antes de ve-lo levantar a camisa e ver tatuado no peito uma imensa figura de dragão. Imponente, poderoso, intenso.
Estarrecida quase não sentiu o feitiço que julgara quebrado apossar-se novamente. Sentiu o dragão dentro dela ressurgir como a Fênix. Das cinzas. Do lago congelado. Pode sentir o gelo começar a quebrar-se e redemoinhos volverem dentro de si.

E como não podia suportar essa força sozinha, puxou-o para ela bebendo-lhe toda a saliva da boca. Sentindo o dragão movimentar-se nele. Sentindo as labaredas expelidas por ambos. Unindo-se. Confundindo-se.

Levou-o porta adentro com a pressa de quem esperara séculos, com a avidez de quem precisava de um néctar para não morrer, mas sentia-se mais viva do que nunca e forte e louca.

Nem lembrando dos passos anteriores viu-se unida a ele sem limites entre um corpo e outro, confundindo até mesmo os cheiros, as forças dos dois dragões apenas adormecidos. E não souberam se demoram milhares de horas ou segundos para que a chama mais potente explodisse dentro de ambos quase em um mesmo tempo.

E então os dragões recolheram-se e lá estavam eles de volta sem saber o que dizer, apenas com a certeza que havia uma decisão a ser tomada. E ele, o dragão mais forte, resolveu partir. Os dois sabiam que não podia ficar. Embora da mesma espécie, seus habitats eram completamente diferentes. E da vez que tentaram uni-los, ele o dragão mais forte, feriu-a quase de morte e apenas soube o quanto na profundeza de seu olhar gélido de poucos momentos atrás.

Novamente ela começara a sentir-se derrotada. Não conseguira vencê-lo. E sabia que agora além da ferida levaria em seu corpo aquele veneno por toda sua vida. Não era fatal, mas nunca haveria cura. As outras pessoas só poderiam amenizar-lhe os efeitos., mas nunca suga-lo para fora. Mas antes que ele fosse, ela viu o que parecia impossível. Ele, o dragão mais forte, derramou uma furtiva lágrima, que talvez nem ele próprio houvesse percebido. Então o dragão dentro dela novamente brilhou. Sentiu-se tão forte , tão intensa.

Soube por essa lágrima que ele também sugara o veneno. E ficaria nele para sempre, sem cura. Amargando -lhe a alma, enfraquecendo-lhe o espírito do dragão, fazendo com que talvez derramasse tantas lágrimas a ponto de congelar-lhe as emoções.

Ele olhou-a pela última vez e sorriu. A ela bastou. Vencera. Estava vingada . Voltaram aos seus mundos reais. E enquanto a notas continuavam a tocar, o segredo permanecia em suas mentes. Imaginavam que seus dragões agora adormecessem para sempre, a não ser que encontrasssem um ao outro novamente
.