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Alves Filho

Prezado Diabo (Satanás, Capeta, Jurupari, Demônio, ou, simplesmente, Demo)

Tomei a liberdade de escrever-te esta mensagem eletrônica, aproveitando as facilidades propiciadas pela Internet. Imagino qual tua surpresa ao abrires teu Outlook e encontrares a mensagem deste pobre mortal. Disseram-me que vocês aí do Inferno não dão colher de chá à modernidade e estão conectados à Grande Rede. Obtive teu e-mail em uma dessas listas ou comunidades que pululam na Internet. Parece que foi na Orkut? Não estou certo!

Apesar de ser nosso primeiro contato na condição de internautas (só havia te visto uma vez, durante uma batalha de confete), não sei se te causaria algum incômodo tratar-te na segunda pessoa e chamar-te apenas de Diabo em vez de “senhor Diabo”, “seu Diabo” “doutor Diabo” “meritíssimo Diabo” “excelentíssimo Diabo”, “ilustríssimo Diabo” ou outras designações que empavonam os terráqueos. Como a maioria dos brasileiros, cultivo esse hábito da intimidade à primeira vista. E assim o farei, se não fizeres objeção.

A razão desta mensagem eletrônica é a necessidade que tenho de esclarecer algumas dúvidas acerca de tuas diabruras e tantas outras coisas que dizem que tu fizeste e andas fazendo, cá na Terra.

Quando eu era criança, contavam-me inúmeras histórias a teu respeito. Algumas me divertiam e até mesmo me fascinavam, confesso-te. Afinal, diziam os lá de casa, eu era um menino levado do diabo. Admito, no entanto, que outras histórias contadas a teu respeito me assustavam.

Minhas beatas tias Santinha e Angélica descreviam teus empreendimentos, benzendo-se incessantemente. Elas faziam cruzes com os dedos ao falar da diabolepsia, momento em que te apossas de um corpo humano e passas a dirigi-lo. Diziam que eras o responsável pelas guerras, pelas doenças, pelas brigas de vizinhos, pelas chifradas (nos seus diversos sentidos), pelas topadas, e até pelas travessuras da meninada. Hoje, certamente, elas diriam, se fossem vivas, que tu terias articulado todas as patifarias correntes no planeta Terra. Dona Círia, minha professora de religião, quando eu traquinava nas aulas de catecismo, dizia que eu estava com o diabo no couro. Assim, te entendiam por trás até mesmo da miséria dos retirantes nordestinos que, fugindo da seca, vieram para a Amazônia atraídos pela borracha durante a Segunda Guerra. Lembro-me que nessa época a imprensa não te poupava. Noticiava em suas manchetes que os retirantes que aqui desembarcaram, estavam passando o que o diabo enjeitou ou comendo o pão que o diabo amassou. Publicava, também, que diversos desses retirantes não resistiram às precárias condições que lhes foram impostas e levaram o diabo, ou em outra linguagem, estreparam-se. Como vês, quando não te acusam de autor, dizem-te responsável ou conivente. Tu estás em todas!

Pensando bem, não sei como encontras tempo para tantas feituras. Programar todas elas e, ainda, promover as sórdidas guerras, a repulsiva escravidão, a exploração sexual, o estupro, a hedionda pedofilia e outros crimes, deve ser diabolicamente complicado. Tudo isso, acrescido do calor do Inferno (vocês ainda não aderiram ao ar condicionado?), deve te deixar à beira da exaustão.

Mas o falatório sobre ti não tem termo. Um dia, dona Otacília, nossa vizinha, me contou a história de um menino que ao responder malcriadamente para sua mãe, teve seus lábios queimados pela mão-quente do diabo. Ele (o menino) passou o dia inteiro chorando à beira do lavatório tentando amenizar o ardor. Contou-me ainda que, numa ocasião, te viu com seus próprios olhos. Descreveu-me como eras. A descrição que ela me fez coincidiu com o Diabo que eu vi desfilando na avenida Presidente Vargas, cá na minha cidade. Era carnaval e num dos blocos de foliões, lá estavas tu todo vermelho, exatamente a cor com que dona Otacília te havia pintado para mim. Tua cauda era comprida. Tão comprida que eu não conseguiria medi-la com a fita métrica da vovó Marocas. Teus chifres até que não eram tão grandes como os da vaca do seu Peixoto, o leiteiro do bairro. Mas teu tridente era preocupante. Eu te observava atentamente e ficava agoniado quando corrias em nossa direção, pensando na possibilidade de nos espetares. Tu estavas – e não podia ser diferente – endiabrado. Só fiquei tranqüilo, quando o bloco passou e desapareceste na primeira curva da Avenida.

Naquela noite, confesso-te, custei a conciliar o sono. Tua imagem pulante não saía do meu pensamento.

Ao mesmo tempo em que admirava muitas de tuas traquinices, o medo de estar contigo no calor do inferno inibia minhas travessuras! Quando eu ia aprontar uma daquelas, imaginava-me numa grande churrasqueira e a diabada a me empurrar com seus tridentes para mais junto da brasa. Certo dia, num raro lapso, eu decidi pregar uma peça em meu irmão mais velho. Do topo da escada, soltei uma mijada sobre meu irmão que, lá em baixo, de paletó, estava de saída. Era seu primeiro dia de trabalho. A bronca foi séria. Quase levo uma sova do meu pai, não fosse a intervenção, generosa e oportuna, de minha mãe. Mas confesso-te que meu tormento foi maior quando pensei na possibilidade de ir para o Inferno. Será que uma mijadinha tão inocente me levaria a um lugar tão dantesco como aquele que eu havia visto numa ilustração da Divina Comédia, cujo exemplar meu pai possuía em sua estante? Perguntava-me incessantemente. Os dias subseqüentes me foram de intranquilidade.

Há uma coisa que eu continuo sem compreender. Por que, depois de tanto tempo nesse braseiro que é o Inferno, vocês não ficam tostados. No mínimo, deveriam ter virado tição ou, quiçá, cinzas. Eu me lembro como ficavam os pedaços de alcatra que dona Adelaide, a nossa cozinheira, esquecia no fogareiro. Quando houver oportunidade, me explica como vocês conseguem isso. Se for algum protetor solar mais eficiente do que esses que são vendidos em nossas drogarias, por favor, dize-me onde posso encontrá-lo. Quem sabe, em algum site desses que vendem de tudo?

Como deves ter observado em tuas andanças pela Terra, algumas pessoas, por simpatia ou por convicção, não concordam com aqueles que te imputam tudo de ruim que aqui se sucede. Acredito-me nesse rol. Mas é difícil te defender. Meus argumentos tornam-se ocos e sem ecos diante do libelo acusatório arquitetado contra ti. A malignidade a ti atribuída já está incorporada ao imaginário popular. Quando saio em tua defesa, não falta gente para insinuar que estou com o espírito do cão, ou seja, do diabo. Como é difícil!

Outro dia, passando em um desses templos que proliferam pelas cidades de nosso país, ouvi um alarido. Curioso, parei para ver do que se tratava. Parecia um ritual que, aqui denominam de exorcismo. Os presentes estavam querendo te expulsar do corpo de um desgramado que estrebuchava no chão. Um deles, pelo gestual e pela voz de execução, parecia ser o celebrante ou qualquer coisa no gênero. Gesticulava e não parava de gritar. Algumas frases chegaram aos meus ouvidos:

-- Sai Satanás, ordeno-te que abandones este corpo!

-- Retira-te, Satanás!

-- Vai para as profundas do Inferno, em nome de Jesus! – continuava o celebrante.

Pouco tempo depois, os demais participantes também começaram a gritar. Mas tu, Diabo, parecias resistir. Acho que não querias deixar o corpo do desgramado. A coisa se tornou uma celeuma. Eu, da porta e atônito, assistia a tudo. E assim o ritual se prolongou até que o desgramado se levantou. Zonzo e trôpego, esboçou um sorriso amarelo (tive a sensação de que havias perdido aquela parada). O celebrante, aparentando segurança, anunciou:

-- Milagre! Milagre! Milagre! Este é mais um milagre de Jesus! Jesus livrou este homem de Satanás. Vá meu amigo, você agora está livre. Disse, apontando para o desgramado. Uma salva de palmas foi ouvida. Não entendi pra quem eram aquelas palmas. Seriam para o desgramado? Ou para o celebrante? Ou para todos que participavam do ritual? Talvez fossem pra Jesus. Mas certo eu estava de que para ti é que não eram.

Após aquela sessão de exorcismo, fiquei a imaginar teu estado. Agredido, traumatizado, alquebrado, humilhado, tu deverias estar à beira de um estresse sem limites, O estresse, seguido da virose, é o diagnóstico mais comum aqui na Terra. Quem sabe, até mesmo, se não terias mergulhado numa depressão daquelas que divã algum resolve. Cheguei a te esperar na porta do templo. No entanto, acho que, envergonhado, em down, optaste por alguma outra porta secundária. A dos fundos, talvez. Eu só queria te consolar, prestar minha solidariedade. Para mim, aquela gente toda é que estava com o diabo nos chifres. Ah! Desculpa, usei teu nome injustamente e em vão. Foi sem querer!

Mas me confessa uma coisa: tu não estás por trás de um tal cidadão que, quando rapaz, de tanto haver assistido a filmes faroeste, decidiu assumir o papel de mocinho do Mundo e da História? Esse tal cidadão, em nome da paz, anda por aí espalhando medo, morte, destruição e ainda tem o cinismo, a cara-de-pau de chamar os outros de terroristas. Teve a ousadia de forjar uma lista de “inimigos” a que denomina “eixos do mal”. Ele é de pele avermelhada (não o creio um pele-vermelha). Se fosse um pouquinho mais vermelho, eu pensaria na possibilidade de ele vir a ser teu parente. O dito-cujo deve ter nascido com os cornos atrofiados. A cauda, se é que tem, deve estar escondida por dentro da cueca. Pois bem, o danado brande suas armas e ameaça Deus e o mundo. Chegou a promover invasões, usando argumentos mentirosos. Mente e inventa como ninguém. Só não o comparo com o Pinóquio porque este, apesar de mentiroso, era bom. E Gepeto jamais teria construído coisa tão perversa, tão ruim como esse tal cidadão. Na tua resposta, esclarece-me esse enigma: tu estás ou não estás manipulando a mórbida mente desse tal cidadão?

Vou aguardar tua mensagem explicando tintim por tintim as dúvidas por mim levantadas. Como acontece com freqüência na Terra, as altercações e axiomas são, paradoxalmente, verdade e mentira. A ética acaba por depender da ótica e a ótica por depender da ética. Há uma forte tendência ao maniqueísmo. A santidade e o diabólico. Mas mesmo assim, vou me esforçar na perspectiva de uma investigação que permita, num julgamento menos parcial, colocar santos e diabos nos seus devidos nichos.

Abs (forma abreviada de ABRAÇOS, na linguagem dos internautas do meu país),

Um admirador

Alvesfilho
Enviado por Alvesfilho em 06/05/2007
Reeditado em 04/06/2007
Código do texto: T477438