A vingança do sapo

 
Selena era uma mulher de pavio curto e muito intensa.
Costumava, logo pela manhã, fazer a agenda psicológica do dia.
Avaliava as emoções assim que acordava. Pensava na roupa que iria usar, o tempo que levaria naquela tarefa, no café da manhã.
Então, lembrava dos sonhos da noite.
Às vezes vinha tristeza, em outras, a euforia.
Os sonhos, eram, portanto, importantes.
Depois gostava de ficar longos minutos na cama no escuro das cortinas fechadas. O ninho. O momento de paz. O sagrado minuto onde o mundo parava, sem som, compromisso ou vida lá fora.
E na sequência da agenda matinal, queria um café em silêncio, onde o dia começasse ameno.
Primeiro, porque não tinha capacidade mental para acompanhar qualquer coisa naquela hora do dia. Segundo, porque acreditava no recomeço a cada manhã.
E era aí que ela se enganava.
Sistematicamente, dia após dia, caía.
Caía na armadilha de reagir as primeiras notícias do dia.
Desfalecia com a mancha antiga no chão da cozinha.
Perdia para o pensamento que insistia em fazer perguntas bobas.
E ainda embriagada com o conforto da cama aconchegante, errava.
E errava feio porque em pouquíssimo tempo, estava irritada.
Por quase nada sentia o sangue fervendo. Uma hora era a TV do vizinho, em outra, a torneira que pingava e mais terrível de todas: o sapo.
Ah, o sapo... uma criatura verde e gosmenta que coachava no jardim noite após noite como para lembrá-la de que estava ali para ficar. Não adiantava reclamar porque ele morador antigo e já estava ali bem antes dela.
E assim os bons momentos da manhã se dissipavam e a contrariedade e a ira queimavam mais do que o café quente.
Uma lástima. Porque ela não era daquelas que esquecia. Levava horas para tirar a substância tóxica das veias.
Um dia cansou. Resolveu mudar de vida. Que coisa! Que falta de inteligência para quem tinha curso superior! Método, forma, organização.
Nichos, dobraduras, listas sem fim, limpeza incansável, oração e muita meditação.
Uma guerreira de projetos e vassouras em punho. Uma obcecada por arrumação, quem sabe até dava um jeito naquele sapo irritante.
Ouvidos moucos, língua presa, pensamento alheio, mente quieta, idiotice quase completa para sobreviver, fez os cálculos, pensou em tudo que precisaria. Terapia?
Meu Deus, que coisa mais sem sentido, grunhia.
Era mais idiota que a própria situação.
E no dia que corria, a úlcera antiga enervava ainda mais e a raiva gritava solta na boca do estômago.
Alguém sugeriu remédio, outros igreja e teve um que sugeriu expiação.
Selena engoliu o oitavo analgésico. “Agora vai!” Falava em alto e bom tom.
Sabia de tudo, conhecia todas as informações.
Repetia até a exaustação as fórmulas que a salvariam.
Dez voltas no quarteirão!
Proteína, muita água, prece, respiração!
Sal no sapo!
Roupas claras, cabelos presos, olhar vivo e alegria de sobra para quem não conseguia a própria.
Uma heroína, mulher de fibra, resolvida, de bem com a vida e que desconhecia humor ruim.
E a casa sacudia. As roupas resplandeciam, o trabalho se fazia por alguma obra mágica que beirava a perfeição.
No oitavo dia, porém, tudo mudou. Selena não viu o sol.
Ninguém soube o motivo, simplesmente deixou de respirar e caiu durinha sobre a eterna mancha no chão da cozinha.
Não havia motivos, nem pista da gadanha que cortara o cordão. Nada! Exceto uma protuberância na garganta.
Uns diziam que foi surto, outros, ataque cardíaco, susto, congestão, pressão ou enxaqueca. Ninguém sabia.
Na gaveta da cômoda, listas e mais listas de consertar a vida.
Tudo em vão. Anotações meio bobas sobre baldes, sabão e conta bancária.
O sapo sorrira antes do golpe fatal na goela da vítima. Vingança, afinal!
Mas tudo tem um preço... até para os batráquios, acredite.
Depois da morte de Selena nunca mais um sapo se atreveu a morar naquele jardim.





 
Edeni Mendes da Rocha
Enviado por Edeni Mendes da Rocha em 08/05/2014
Reeditado em 15/04/2020
Código do texto: T4798940
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