Perdida (Força 1- Desconhecido)- cap. 1- continuação

Acordei num quarto pequeno, sobre uma cama que me pareceu estranhamente familiar. O que me assustou, porém, foi a quase ausência de luz ali. As coisas pareciam organizadamente fora do lugar. Até mesmo o que estava no chão parecia ter sido posto ali de propósito. Bem em frente à cama, um velho guarda roupas com um espelho no meio. Ri ao ver minha imagem nele refletida. Meus cabelos estavam desgrenhados e os olhos inchados, como se eu tivesse dormido por horas a fio. Nas paredes, nada. Nenhum quadro, nenhum cartaz de banda, nenhuma fissura. Num canto uma pequena mesa e sobre ela, um notebook. Quase tive um acesso de curiosidade, mas, sabendo quem era o dono, resolvi não arriscar. Ergui-me ainda tonta. Ouvi um barulho vindo do pequeno corredor e dirigi-me até lá. Meus passos estavam atropelados, meu corpo parecia tombar. Recostei-me na fria parede antes de chegar ao que parecia ser uma cozinha. Fechei os olhos e lembrei-me do meu pai. Naquele momento, ele me xingaria por completo se soubesse onde eu estava. Seria capaz de me condenar à forca por ter procurado um bruxo. “Médium”, me corrigi mentalmente. Mas ele não saberia daquilo.

O tremor de minhas mãos denunciava o frio que eu estava sentindo. Não conseguia distinguir se era dia ou noite e, por algum motivo, me sentia cansada. Dei dois passos e parei. Encostei-me novamente levando às mãos à cabeça. Aquilo era loucura! O que eu estava fazendo na casa de um completo desconhecido? Será que eu havia perdido o juízo, afinal? Sorri ao lembrar a expressão de Micaela, a única das minhas amigas que haviam restado, quando lhe contei da minha hipótese sobre Lara. “Você perdeu completamente o juízo, Laisa! Bateu com a cabeça, foi?” Agora, ali naquela casa, realmente me parecia loucura. Ouvi passos e o leve perfume amadeirado tomou meu olfato, fazendo com que eu erguesse a cabeça, tentando abrir os olhos. Encontrei os dele, já não mais vermelhos, mas de um negror assustador. Só assim, de perto, iluminado pela fraca luz do microcorredor, pude observá-lo. Peter tinha traços no rosto que pareciam terem sido esculpido em mármore, tamanha era a delicadeza das suas linhas de expressão. Lábios finos de um tom terroso, semicerrados num sorriso irônico. Parecia ter uma testa enorme escondida sob as mechas de seus negros cabelos. Ele sorriu, sem aquela pretensão anterior e eu deduzi que havia lido meu último pensamento sobre sua testa.

-Você disse que não leria mais...

-Seus pensamentos? Não preciso.

-Porque riu então?

-Apenas intrigado com essa sua observação sobre mim. Achou algo interessante?

“Presunçoso” pensei.

-Não, só estou impressionada com o tamanho de sua testa.

Ele gargalhou. Literalmente. E aquela risada poderosamente inebriante ecoou pela casa, me deixando satisfeita por, pelo menos aparentemente, ter quebrado o gelo.

-Cabeças grandes, cérebros brilhantes.

-Que idiota disse isso?- eu indaguei, recuando um passo, já incomodada com a presença dele tão perto de mim.

-Eu disse. - ele foi seco. Ok. Arrependi-me do “idiota”- Você está se sentindo bem?

-Sim, mais ou menos, sei lá...

-E quem vai saber, se não você?- ele estava sendo irônico. Não respondi nada. Normalmente, eu iria rebater até vencer aquela discussão. Mas meu cérebro não estava trabalhando bem, então, me calei. Ele virou-me as costas e seguiu, virando à direita. Eu o segui. Finalmente, luz. Senti-me meio cega a princípio, mas aos poucos minhas pupilas acomodaram-se à claridade da sala/biblioteca.

-Eu dormi?- perguntei, enquanto olhava aquela imensidão de livros distribuídos em prateleiras antigas.

-Por quase três horas.

Hein? Como? Olhei para ele procurando o semblante irônico, mas não achei nada de brincadeira. Pelo contrário. Ele estava sério e muito compenetrado em minha curiosidade sobre seus livros.

-Isso é sério?

-Claro que sim. Porque eu mentiria?

Bati a mão no bolso da minha calça jeans preta. Peguei o meu celular e liguei-o. Assustei-me com as quase 20 ligações do meu pai e pelo fato de serem quase sete horas da noite. Ergui o olhar e encarei-o.

-Não faça isso, a menos que queira desmaiar de novo.

Levei as mãos à cabeça. Isso queria dizer que eu havia passado mais de duas horas dormindo na casa de um bruxo que poderia ter feito qualquer coisa que quisesse comigo? Surtei.

-Porque você não me acordou?!?!

Ele riu.

-Por acaso, tenho cara de seu servo?

Senti vontade de estapear-lhe. Como eu conseguira dormir tanto? Esquecendo completamente o que me trouxera ali, marchei a passos firmes em direção a primeira sala, querendo alcançar a porta.

-Vai sair sem suas respostas?

-O que lhe interessa?- gritei, parando em frente à poltrona onde, aparentemente, desmaiei. Girei o corpo alcançando em poucos segundos a maçaneta da porta. Rápido como uma flecha, ele alcançou-me, agarrando minha mão, puxando-me, fazendo com que eu olhasse para ele.

-Me solte agora!!!!

E tão claro quanto tinta naquim no papel branco, eu li em seus olhos a mensagem que ele me mandou em pensamento. “Eu posso ajuda-la, mas primeiro você tem que confiar em mim...”. Senti meus olhos se encherem d’água. Ele soltou minha mão e eu saí, porta afora. A escuridão da noite me surpreendeu. Mas cruzei o pequeno jardim em direção ao pequeno portão de madeira, abri-o e, pegando meu capacete, montei na moto, dando a partida. Antes de sair, vi-o recostar-se na parede frontal da casa, com um sorriso cínico nos lábios, e aí veio a segunda mensagem. “Você vai voltar...”. Arranquei com a moto, deixando-o para trás. O que era tudo aquilo que eu estava sentindo? De onde surgira aquela falsa coragem? Senti lágrimas escorrerem no meu rosto, indo perder-se no tecido interno do capacete. Parei próximo a uma ponte que passava sobre um riacho, desci da moto e tirei o capacete, sentando-me no chão. Eu havia perdido o controle desde que Lara partira. E se eu acabasse louca, como a minha mãe, internada numa casa de recuperação psicológica? Meus amigos eu já havia perdido. Toda a aparente felicidade sumira quando Lara se suicidou. Éramos mais que irmãs. Andávamos juntas, contávamos todos os segredos. Nunca havíamos nos separado. Nove meses haviam se passado e eu não conseguia aceitar a partida dela. Senti o celular vibrar no bolso.

-Alô?

-Laisa?!?! Onde você está?!?! O que aconteceu?!?!

-Pai, estou bem, já estou indo para casa...

-Me diga agora onde você está! Você quer me matar do coração?

-Pai, não exagere, por favor...

-Exagerar? Liguei para Micaela, para seus professores, onde você se meteu, menina?!?!

-Pai, já estou indo. Em casa, conversamos...

Ouvi-o desligar. Ainda mais essa, enfrentar meu pai, furioso, quando chegasse a casa. O que eu diria a ele? “Ah, pai, eu tirei um cochilo de duas horas na casa de um bruxo. Mas não se preocupe, está tudo bem, eu só estava tentando encontrar Lara!”. Imaginei a cara dele e isso me fez desejar correr para longe, onde ninguém pudesse me achar. Peter. A culpa de tudo isso era dele. Porque eu desmaiara? E o que me fez dormir tanto? Ele era tão arrogante, tão presunçoso, tão irritante, tão... Intrigante... Eu tinha de admitir, poder ele tinha. Balancei a cabeça para ver se espantava os pensamentos, primeiro, eu tinha de pensar no que diria à meu pai. Depois pensaria em Peter e em Lara. Peguei a moto e voltei para casa.

Acordei no dia seguinte com uma terrível dor de cabeça, essa velha conhecida minha. Até onde eu lembrava em minha não tão longa vida, eu tinha dores de cabeça terríveis. Algumas delas eram tão fortes que me faziam chorar. Tanto havia doído que eu havia me acostumado à presença dela. Como eu já esperava, o sermão do meu pai na noite anterior havia me deixado de consciência pesada. Palavras como “Desculpa”, “Eu só queria ficar um pouco sozinha” e “Preciso de mais espaço” pareciam inflamar ainda mais ele. Era domingo. O silêncio na casa denunciava que ele já havia saído para a sua missa. Era irritante a forma como ele proclamava a sua religiosidade e quase me impunha a segui-la também. O catolicismo exagerado dele às vezes me irritava, mas eu nunca dizia nada. Em aspecto nenhum, eu jamais discutia com meus pais. Sempre acatei as ordens deles, sempre fui a boa moça. Depois que minha mãe havia sido internada, meu pai piorara na superproteção. Eu não podia dar um passo sequer sem que ele soubesse para onde e com quem estava indo. Sacudi os lençóis da cama e me levantei. O enorme vitrô denunciava um dia extremamente quente e luminoso lá fora. Eu não estava para esse calor todo, então puxei grosseiramente as cortinas, fechando-as, fazendo com que a claridade diminuísse dentro do meu mundinho particular.

Parei em frente ao espelho e lembrei-me de Peter, de sua casa, daquele quarto e toda a confusão em minha mente. Respirei fundo. Era impressão minha ou estava ainda mais branca que o normal? Revirei os olhos, me condenando por quase nunca sair de casa e nem tomar sol. Penteei as longas madeixas negras para cima e prendi-as num rabo de cavalo desajeitado. Algumas mechas ficaram soltas, mas por preguiça, não arrumei novamente. Tirei o pijama, pus um vestido leve de seda estampada (presente de minha mãe quando ainda estava sã) e fui à cozinha tomar café. Enchi uma xícara de café preto cuja fumaça dançava no ar e peguei algumas bolachas. Nem sentei-me, fiquei observando o quintal através da janela da cozinha. Ágata, uma coker spaniel preta, dormindo sob a copa da amoreira. Aquela cachorra era uma preguiçosa sem fim. Ouvi um ruído atrás de mim e minha primeira reação foi virar-me. Sem querer, lancei a xícara de café ao encontro de quem estava atrás: meu pai.

-Mas o quê...- ele parecia furioso. Não bastasse uma semana de castigo, agora eu com certeza ia perder o meu celular- O que deu em você, Laisa?

Pedi perdão mil vezes a ele. Eu estava descontrolada, nervosa.

-O senhor não foi à missa?

-Ainda vou. Estava esperando você acordar...

-Pai, não quero ir...

-Você vai, sim. Rápido, vá tomar um banho e vestir uma roupa. E por favor, penteie este cabelo, você está parecendo uma largada! Misericórdia!

Sim, eu sei, meu pai é chato. Saí da cozinha pensando em mil coisas que eu poderia ter dito, mas, como sempre, não disse. Ele fazia tanto por mim e eu não queria magoá-lo. A morte de Lara, a loucura da minha mãe... Eram golpes muito pesados para ele. Eu faria qualquer coisa para não entristece-lo. Mesmo que fosse algo que eu não gostasse, como ir à missa. Mas enfim, era por meu pai e, por ele, valia a pena.

Olhei o relógio dourado que brilhava no meu pulso. Eram 11:58 da manhã. Aquele sermão pavoroso do Padre Emílio só terminaria em mais ou menos meia hora. Olhei para as pessoas ao meu redor. Vi algumas bocejarem. Dona Margarida, uma velhinha muito simpática, estava cochilando. Sorri ao ver o fio de baba que formava-se no canto da boca dela. Meu pai dizia que ela era uma velha louca, apenas porque ela dizia que via e ouvia espíritos de pessoas mortas. Cheguei a pensar em consulta-la sobre Lara, mas ela não me parecia alguém muito certa do juízo. “E Peter é?” meu pensamento me sacudiu. Peter... Eu realmente precisava voltar a vê-lo. Eu tinha sido muito idiota por ter saído da casa dele daquela forma na noite anterior. Talvez tivesse perdido minha melhor chance de encontrar Lara. Estava nervosa e descontei nele. Mas ele bem que mereceu por ser tão chato e arrogante. E aquele olhar vermelho? Nossa, eu havia desmaiado por alhar nos olhos de fogo daquele cara. Talvez ele fosse perigoso. E eu dormi na casa dele! Quanto mais eu pensava, mais loucura me parecia. Até que notei que a Dona Margarida me olhava intrigada. Sorri para ela e levantei-me, indo em direção ao bebedouro. Após pegar um dos copos descartáveis e enchê-lo com a água clarinha do filtro, saí da igreja em direção ao pátio externo. Observava com atenção as flores respingadas pela água dos sprinklers. A claridade incomodou-me quando ergui o olhar aos céus, seguindo uma pequena borboleta negra, que voava distraidamente sobre as flores. “Você deve se sentir tão estranha como eu, não é, pequena?”.

Senti um arrepio na pele. Apesar do calor do dia, de repente, senti uma brisa fria tocar minha pele. Abracei meus próprios braços e me senti incomodada. Senti aquele perfume. Sim, aquele. Virei-me bruscamente e o vi.

-Você?

-Oi!- Peter sorriu. O mesmo sorriso cínico, agora deixava transparecer a brancura estranha dos seus dentes. Os mesmos óculos escuros. Os cabelos brilhavam sedosos sob a luz do sol. As mãos dentro dos bolsos. Uma camisa azul escura que o deixava transparecer mais velho.

-O que você está fazendo aqui?

Milene Gomes
Enviado por Milene Gomes em 14/05/2014
Reeditado em 20/08/2019
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