MOMENTOS (Florescência) Magia natalina

MAGIA NATALINA

Fila Sabino

...porém diziam ser Natal!

Dia Santo!

Próximo. Ente. Amigo. Feito Cosme e Damião. Irmão de sangue da Esperança. Mão aberta pro perdão, pra fartura e pra comunhão.

Comunhão!...

Primeira Comunhão! Véspera do Natal! A minha.

Comunguei! Verdadeiramente e de comum acordo comigo mesmo naquele sábado. “Comunhei”!

Caminhei com o sabor de Cristo no céu da boca. Contritamente percepto. Cônscio. ”Concristamente”.

A língua tersa. ‘Encãibrada’. Imota. Muda. Colo reverente, para que a Hóstia, ali pousada, livre, se dissolvesse calma e suavemente. Era Cristo que, vagarosamente, caminhava para dentro de mim, habitando-me. Inchando-me o peito de religião, de fé, de pureza e felicidade. Alforriando-me dos pecados, das malícias e das maldições.

Imaginava eu não os ter! Mas, se os confessei, quanto mais ausentes os tivesse melhor seria, e é, para todo o sempre.

Pesados e inditosos pecados aqueles dos quais me livrei! (Não mentir. Não roubar. Não xingar, Não responder. Não desobedecer. Não masturbar. Não desejar a “menina” do próximo. E mais alguns tão difíceis de se cumprir, como o tal de “não vingar”.) ... quando se é menino dificilmente se deixa de dizer: “você vai ver... pode deixar que você ainda me paga!”... Vingança! Torpe violação ao lídimo preceito da evidente existência divina e Sua justiça. Ação inconsequente, sem conteúdo, oca, inexpressiva ante à virtude, à plenitude, à magnitude de sua antônima - o perdão. Ainda bem que, graças a Ele, essa ideia pouco vinga e, se vinga, em si se pune!... “Aqui se faz, aqui se paga!”!... Já o perdão, sim! Este é o termo a ser conjugado, o ato a ser praticado honrosamente, com o brio do vitorioso, na sua plena essência e dimensão.

Depurado! Purificado!... Lá ia e vinha eu sem mancha, sem nódoa, sem laiva.

Em mim o dia decorria numa tranquilidade extrema. Marasmo de sesmaria!

Eu estava leve, embora tivesse engolido Cristo. Seu peso. Todo um mundo. O universo. O princípio, o meio e o fim da existência de tudo muito abaixo e de tudo muito acima da consciência. De tudo muito aquém e de tudo muito além da essência dessa Terra de meu Deus: vida. Em si, sob e sobre.

Eu estava anjo e ancho. Embora o pensamento insistisse em viver antecipadamente o dia seguinte. Nascimento de Cristo!... Natal!... Sonho!

Santo dia! Papai Noel. Primícias de alegria. Presentes!

À véspera, dia anterior, movia-me a expectante magia do irresistível a alimentar-me, mais e mais, a certeza do meu primeiro e tão sonhado encontro com Papai Noel, o “Bom Velhinho”. Vivendo a expectativa e a esperança, eu queria muito que aquela noite chegasse logo, uma brevíssima noite, para dormir cedo. Nada sem que, antes, arrumasse bem direitinho e deixasse bem a vista o meu par de azuis sete-vidas, para Papai Noel deixar nele o meu presente. Afligia-me a vagareza com que passava o dia, obediente fiel ao rei Sol que, por sua vez, em morosos passos, sinalizava nenhuma pressa em repousar com a precisão costumeira. Deveras propenso a perder o horário. Desdenhar o tempo.

Concepto de crença e convicto, e sou até hoje, vivi a partir dali, da “Primeira Comunhão”, daquele dia abençoado, a verdadeira concessão da liberdade interior. Desde então exteriorizo essa liberdade, vida afora, dentro dos princípios e conceitos absorvidos do ensino religioso empreendido pela diligente e missionária Igreja Católica Apostólica Romana de Montalvânia-MG. Igreja Cristo Rei. Não obstante um inócuo, porém insistente, receio interior insinuar-me não ser digno de tão magno gesto. Mal sabia eu da enlevada lição de humildade por que passaria ainda, posteriormente, ao compartilhar da Missa-do-lava-pés, na qual o saudoso e reverendíssimo Cônego Mesquita, ladeado pelos reverendos Padres Guilherme e Godofredo, num aceno de sublimação, após lavar e enxugar, beijara-me os pés, no mais singelo gesto de simplicidade, deferência e sobriedade. Personificado, assim, o exemplo de Cristo, redimira-me todos os atos!

Havia eu feito a “primeira comunhão”... bem diferente da segunda, a de comunhão de bens. A terceira não sei qual será, qual virá... temo muito uma descomunhão ou uma dexescomungação, (por haplologia) ou ainda uma excomunhão. Destino tem curvas. Nas curvas tentações e, de fato, estas existem para quem se distancia da fé!

O dia viajou manso, desapercebido das coisas. Leso e lerdo. Parecia não ser cristão ou, talvez, quem sabe não tivesse sapato nem janela...

Eu não. Eu estava lépido. Ladino. Instintivamente despertado para qualquer excepcionalidade. Acurado no ouvir. Emudecido no falar... (Papai Noel observava muito as crianças antes de entrar pela fechadura). Eu estava casto. Puro. Prenhe de imaginação. Ideias. Espertices...

O dia convergiu com indolência para uma lente dégradé que, ao descortinar a noite, revelaria, aos poucos, um céu ludicante, estreladamente enluarado.

Nem bem terminara o terço e já lá estava eu espreguiçado sobre a alvacez cheirosa do lençol. Sem sono mas dormindo. Treitado na decisão de surpreender Papai Noel no batente da janela, esquecida aberta intencionalmente. Único vão claro a embalar estrelas. Astrozinhos que ao longe, muito longe, também dormiam acordados; pois a cada olho meu aberto vagarosamente, um de cada vez, era surpresado por um piscado colorido, multicor, cativante e flertivo... namorante... puramente lindo e livremente livre, de uma ou outra estrela insone.

Repousado e pensante, não me permiti por muito tempo ali, pois intuía-me à armadilha uma pequena e infantil dose de astúcia.

Percebendo que todos já ressonavam, levantei-me sorrateiramente e fui até a despensa da casa. Apanhei dois arriadores, ou seja, duas cordas de imobilizar as pernas e o bezerro da vaca durante a ordenha. Ao retornar, passei pela sala e tomei dois copos da fria e gostosa água do pote de barro. Peguei um tamborete e fui ter-me de novo ao quarto. Cuidadosamente, e sem barulho, retirei o alvejado e cheiroso lençol da cama, dobrei-o de comprido e, dando-lhe um nó em cada ponta, improvisei uma rede. Com o providente auxílio do tamborete amarrei as cordas em dois caibros no teto do quarto e, ditoso, armei a minha rede, caprichosamente, bem em frente à janela. Transportei para baixo dela meu par de azuis sete-vidas. Bem juntinhos ajustei meus sapatinhos e dentro de um deles carinhosamente coloquei minha cartinha pedindo ao ‘Bom Velhinho’ o meu primeiro presente de Papai Noel: uma caneta! Mas só me servia a que eu tinha escolhido: a mágica!

Eu havia escrito minha cartinha com a caneta-tinteiro do meu pai, tudo no escondido, pois ele morria de ciúmes dela. Imagine então quanto ciúme eu herdaria e nutriria pela minha, que era mágica!?

Tranquei a porta do quarto. Recolhi meu travesseiro e minha coberta. Soprei a chama da candeia. Empurrei a janela, mas não dei a volta na taramela para facilitar a entrada de tão bondosa e graciosa visita.

Recolhi-me meninante e esperançoso e, manhosamente, me entreguei à espera. E esperei! O tempo? Quá! Esse parecia dormir, não passava! Mas meus olhos eram duas espingardas engatilhadas, apontadas para a fonte onde a presa haveria de beber. Persisti na espreita. Tocaiei... tocaiei... tocaiei até não sei quando! Só sei que caí na mais antiga armadilha, a dos braços de Morpheus. Dormi! Papai Noel não vi. Velhinho esperto!... Mas sonhei o resto da noite surpreendendo-o no batente da janela e recebendo das suas próprias mãos o meu presente e um carinhoso beijo na face!.

De manhãzinha ouvi batidas na porta do quarto e a voz carinhosa de minha mãe querida: _ Fila!... Ô Fila!... Acorda meu filho! Por que trancou a porta?

_ Ôi mãe, já tô acordando. Bença!...

Deus que te abençoa, meu filho... seu pai já tá chamano pra ir ajudá tirá o leite. Demora não!

Acordei ‘mei-lá-mei-cá’, sonolento, ainda zonzo, mas logo me lembrei do Natal. Desci apressado da rede e, ansioso, agachei e entrei velozmente embaixo dela. Invadido de uma alegria imensa, enfiei rapidamente a mão dentro do sapatinho em que eu tinha deixado a minha cartinha. Não a encontrei. Fiquei mais alegre ainda! Com certeza Papai Noel a tinha levado! Minha mão se moveu para lá e para cá dentro daquele sapatinho e, então, senti algo morno, suave e gostoso envolvê-la vagarosamente. Senti, ainda, na minha nuca pingar gotinhas e mais gotinhas mornas... Olhei para cima e notei minha rede toda encharcada e um cheirinho conhecidíssimo a revelar-me o que de fato acontecera!... Num desalento retirei a mão de dentro do sapatinho. Assustei-me! Ela estava completamente azul. O resto do meu corpo triste e sem nenhuma vontade de fazer xixi!...

Esmorecido e cabisbaixo fui ter-me com meu pai, que era de verdade!.

Até hoje, saudoso, eu sonho com minha caneta transparente! Aquela igualzinho à que Alcino ‘Tratorista’ (Alcinão) tinha me mostrado certa vez... Aquela minha caneta transparente de algibeira, que escrevia igualzinho a todas as outras, mas que quando era virada de cabeça para baixo, de um lado do seu bojo deixava transparecer a imagem protetora de Nossa Senhora Aparecida, e do outro transparecia a figura de uma linda e sedutora mulher completamente nua!... Peladinha, peladinha da silva!... Magia!

Uma inesquecível magia... natalina!...