A Vigia da Noite

Inúteis eram aqueles que fugiam do pavor. Cedo ou tarde o medo abatia-se sobre qualquer criatura que estivesse sobre este reino. O pavor assolava qualquer tenda e o desespero atingia qualquer família abatendo-se sobre qualquer de seus membros. O medo era inerente a natureza e afligia qualquer ser vivente, em diversas manifestações diferentes, e até mesmo os não viventes – de acordo com alguns.

De todos os medos, o mais ancestral talvez seja o pavor da penumbra. Antes mesmo de reunir-se em comunidades e criar o embrião das primeiras civilizações, o homem já temia o grito das feras em meio à escuridão que se levantava após o crepúsculo vespertino. Com o passar do tempo às sombras da noite, iluminada apenas pela luz das estrelas e pelas chamas acendidas pelos homens, deu origem a diversos mitos sanguinários, assustadores e divindades macabras, sábias, misteriosas e mágicas. O oculto da noite sempre permeou a mente de tantos. Contudo, tantas flechas lançadas do imaginário da sombra da noite haveria de acertar uma imagem, um espectro, e tanto dos arquétipos assimilados a generalidade dos temerosos haveria de ser real.

Talvez a escuridão nunca possuiu tanto significado quanto na idade média tardia. Para tantos a legitima Idade das Trevas já havia se definhado, porém para inúmeros outros e para aqueles que viveram, ela continuou. As fogueiras continuavam queimando carne humana e levando suas cinzas para a penumbra, que como em um laço gigantesco abraçava todas as mortes sem distinção, de credo e de origem. No futuro chamariam parte deste tempo de Renascimento, porém há de haver renascimento com tantas mulheres mortas, acusadas de carregar em seu ventre o Diabo? O medo do escuro voltava mais forte do que nunca, pois elas eram as filhas da noite. As adoradoras da escuridão. As feiticeiras do crepúsculo.

Tantas foram às condenadas sem motivo, tantas gotas de sangue imaculado fora derramado. Tantos gritos de dor dados por inocentes torturados até que houvesse confissões de crimes que não cometeram. Até que morressem em meio ao sofrimento da tenda escura. Obrigados a admitir trilhar um caminho que jamais pisaram. E mesmo aqueles que trilharam esta senda, não deveriam de ser culpados por nenhum crime, pois o simples fato de dar nomes diferentes a um Deus e denominar suas manifestações de forma incomum, adorar suas faces uma de cada vez, não lhes era crime o suficiente para condenação em uma fogueira... Não lhes era sequer um crime. E se na noite expiavam seus cultos, era porque os olhos do dia os massacravam.

Não diferente de tantas fora a mãe de Ingrid, condenada por ter feito um chá para as cólicas da menarca de sua filha. Torturada e morta com fogo em praça pública. Ingrid sofrera uma centena de exorcismos. Para uma criança que vivera dores horríveis em nome de Deus, bastava-lhe abraçar o arquétipo mais negativo da escuridão. Bastava-lhe abraçar o Diabo. E não fora diferente. Enquanto todos temiam as trevas, os estudos e práticas desta moça estendiam-se do crepúsculo vespertino até o matutino, quando finalmente adormecia. Assim era todos os dias. Não havia descanso e sobre seu corpo havia o juramento – todos aqueles que torturaram a carne da minha mãe, terão suas almas torturadas por mim.

Terrível era o tempo que se passava, tenebrosos eram os acontecimentos, diversos eram aqueles que morriam acusados de práticas contrárias ao “bem”, e eram açoitados para que o fogo lhes purificasse a alma. Pobre daqueles que condenavam com fogo, pois não haveria pergunta maior do que essa – o homicídio de milhões de inocentes não teria posto uma mancha negra sobre seus espíritos?

Em suas andanças noturnas, havia Ingrid encontrado Marcus, um seminarista. Tão estudioso quanto ela, porém nas práticas do outro lado. Acusado de queimar com fogo almas inocentes, ela o amaldiçoou três vezes. E por três vezes ele sorriu e estendeu-lhe a mão. Afugentada ela gritou.

-Retira-te criatura imunda, que condena a alma de inocentes para seu banho de sangue! Que ama a um deus que queima com fogo o corpo de seres sem uma macula!

- Fique criatura bela, que de crepúsculo a crepúsculo vigia a noite. Que guarda os espíritos perdidos e os guia para a iluminação. Fique espírito bem aventurado, porém triste pela perda, que adora a sua maneira a grandiosidade da força precursora. Fique espírito livre, que com seu sorriso espanta o pavor da noite e atenua o peso da mortandade que ocorre ao nascer do dia. Não queimo com fogo inocentes, pois me recuso a por uma única fagulha sobre a fogueira. Não me banho com sangue, pois me recuso a derramar uma única gota de qualquer ser.

E ali surgiu o maior de todos os amores. O vigia da claridade amava a vigia da escuridão. E eles se amaram naquela noite e em todas as demais. E a vingança sumiu do coração de Ingrid e o medo sumiu do coração de Marcus.

Porém, a escuridão mais uma vez trazia seus frutos e seus prantos. O pecado do seminarista não passara em branco frente à inveja de outro, que não dominava a mesma arte e não tinha o mesmo amor. E a ira caiu sobre ele. E por parar de vigiar a noite, à noite lhe traiu e a ira dos homens caiu sobre Ingrid. Arrastada foi para aquele lugar. Seu amado ao seu lado sofria com a força dos métodos, com as pancadas; porém estava em silêncio e seus olhos eram calmos. Ela sofria terríveis dores, sua mão era torturada e água quente respingava-lhe o corpo. Porém ao olhar o amado, ele sorria e o sorriso acalmava-lhe a alma.

Escutou ela ao longe o cântico da natureza e o cântico a levou a escuridão. E os homens temiam a escuridão, mas ela a amava. Suas dores cessaram e não fosse por sua força de vontade, naquele lugar ela teria uma síncope ao descobrir quem eram os verdadeiros demônios. Seu corpo estava dormente as torturas, o espírito da noite a abraçava. A escuridão estava na frente de seus olhos e ela sorria. Ela dançava e a música não parava. Ela pedia perdão à noite e a noite a perdoava. A noite a amava, e ela cantava para a noite. Mas os outros, esses temiam a noite, por isso jamais criaram intimidade com as sombras; mas matavam seus filhos como que por direito adquirido e isso a enfurecia. A noite abraçava a todos por direitos iguais, mas condenava a todos por direitos iguais... Ela era uma agente do próprio carma que outros tantos abominavam.

E a escuridão trazia consigo suas feras. O vento assoprava mais forte e levava consigo as construções lá fora, e os gritos eram ouvidos e ignorados. Casas caiam e alguns morriam. As bestas saiam da selva e invadiam cada parte do vilarejo e não perdoavam em fazer vitimas, pois sua terra havia sido profanada com sangue inocente. Suas árvores regadas com esta podridão. E na fome os animais tiveram que comer a carne das vitimas mortas inocentes. Aqueles sem a mancha eram poupados, mas os manchados eram feridos, mordidos; os cães ladravam e os lobos lá fora uivavam. Um por um caia. O céu encontrava-se negro e de seu topo vinham os trovões e o primeiro raio atingia a fogueira montada no centro da cidade e a fogueira acendia sem queimar ninguém pela primeira vez em anos, a fogueira louvava aos deuses que foram condenados por aqueles que se achavam puros, mas já estavam condenados. Os demais raios caiam nas outras construções e traziam consigo o fogo. O que o vento havia derrubado impedia a fuga e o fogo causado pela natureza, através do raio, e não por um homem com uma tocha, queimava os verdadeiros impuros.

Um dos raios atingira o local onde estava Ingrid, e a fera adentrou lá. O carrasco fora morto pelos lobos e seu corpo abandonado. As feras voltavam à selva, mas um inocente havia morrido. Marcus jazia sentado, com a mesma expressão de tranquilidade e um sorriso nos lábios. Ela aproximou e o abraçou. A cabana pegava fogo e dali ela não saia. E o fogo consumiu tudo, o corpo do carrasco, o corpo do amado, seu próprio corpo e o fogo que a queimou não era purificador, pois ela não precisava ser purificada. Era um fogo que eternizava. E depois que tudo havia se tornado cinzas a água veio pelas nuvens e lavou a terra.

O fogo a eternizava na lembrança de sua mãe e ao lado de seu amado no amor eterno. Era o fogo que a transmutava em cinzas que eram sopradas pelo vento. E ela, naquele local, estaria em cada soprar do vento, em cada pedaço de Terra que cobre a raiz de cada árvore velha e da lugar a cada planta nova. Onde pisa cada animal e que da os frutos dos alimentos de cada criatura. Estaria no rio que corre e acima de tudo, estaria na lembrança daquele povo, como a mulher que superou o medo das feras, que não temeu a escuridão, as sombras e a penumbra, que não correu frente às trevas, pois nela achou luz. Que amou a escuridão. E naquele dia os culpados se foram, um inocente morreu, porém todos os outros que não estavam marcados com a mácula sobreviveram e eram dezenas deles.

W Rodrigues
Enviado por W Rodrigues em 10/08/2014
Reeditado em 10/08/2014
Código do texto: T4916677
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