Regina Mundi
Assentou-se na grama sob o sol que irradiava sua luz e calor sobre a
terra. A luz, além de aquecê-lo, acabou por dissolver as amarras de
dois componentes do seu ser.
De um lado, o direito, uma presença contemplativa, uma centelha de mil
sóis. Sua presença poderia ser ignorada não fosse uma imposição sutil
que apenas seria possível de ser percebida por aquelas pessoas
atentas, apesar de ser dito que a busca de sua presença fosse um fato
generalizado.
Do outro lado uma figura que contrastava frontalmente da primeira. À
pele de tons sóbrios e pálidos de uma, a pele brilhante e sedutora da
outra; ao silêncio contemplativo da primeira, uma voz de som agradável
ao ouvido, uma sedução que jamais poderia deixar de encantar aos
incautos.
Enquanto o corpo da contemplativa figura era de forma indefinida e
estável, a da segunda assumia as formas que mais agradavam ao seu
"receptor".
No caso daquele que se assentou na grama percebeu esse ente como tendo
olhos claros como daquelas que mais desejou, contornos finos e de
marcante materialidade, pernas longas e bem torneadas, a capacidade de
realizar todos os desejos carnais e mesmo aqueles que se acreditava
ser de origem sagrada.
Os cabelos negros lançados ao vento terminaram por compor a figura e
dar-lhe, ao fim de tudo, a capacidade indiscutível de fascinar. Não
faltasse mais nada, a roupa de seda carmim, colada ao corpo,
deslizando nas formas perfeitas, pareciam fulgurar à luz do sol.
Saída da sua esquerda, levantou-se, colocou-se à sua frente e, de
repente, aquele que meditava saiu de seu transe absoluto através de
uma música que em língua estrangeira falava do que estava escrito em
um velho códice que atravessou as eras até chegar-lhe em voz maviosa,
meio cantado, meio recitado, dizendo de velhas épocas, de batalhas
ganhas e perdidas, da orgia que se seguiam às vitórias, tudo regado à
vinho e triunfo. Ao começar a música, também começaram os meneios da
figura sedutora.
A destra do agora domado, libera-se da mão da alva figura que
silenciosamente tudo observou, sem intervir, sem nada dizer, sem
lamentar.
- Venha! Entregue-se! – assim foi comandado.
Ao levantar-se, do sol desceu um gládio flamejante, uma armadura com
as cores do astro-rei e um dístico que traduzido resulta em "Potência
vencedora".
Vestindo essa armadura e com o gládio na mão, colocou-se ombro a ombro
com a figura que agora flamejava e entrelaçaram os braços.
- Regina Mundi! Por ela lutarás! – foi esse o decreto.
E assim foi, pela rainha do mundo combateu, massacrou, passou muitos à
fio de espada durante os anos de sua vida.
Agora, ansiava pela recompensa, inebriado de vitória. Na sua tenda de
campanha, os manjares, as músicas e os versos ao vencedor. Em outro
lado, acorrentados, aqueles que humilhara e escravizara pela força do
gládio flamejante.
- Afastem todos esses de mim! – decretou – Afastem-nos, agora!
Todos saíram, exceto uma figura pálida, estranhamente familiar.
- Ordenei que saíssem! Todos!
A figura não se moveu, não esboçou qualquer reação. O dono da armadura
puxou o gládio retinto de sangue e avançou em direção à figura mas o
golpe, mesmo certeiro, transpassou sem feri-la ou dissipá-la.
- Não pode me destruir ! – ouviu em sua mente a sentença.
O cavaleiro riu.
- Se quer presenciar o que se seguirá, assim seja. – disse,
embainhando o gládio e sorvendo mais do vinho resinoso que tomava.
Novamente a figura sedutora aproximou-se. Tomou-a nos braços,
beijaram-se, e assim ficaram, envolvidos um com o outro. Riram-se de
tudo e , de repente, ele a atou no leito com a força e virilidade de
sua herança.
Todo o poder fluía de si para o mundo, queimava-lhe a alma como a lava
que outrora queimara e sepultara as cidades romanas e seus habitantes
e explodia como a detonação primária do universo.
Afogava-se nas carícias daquele ser que ria e deleitava-se das que
recebia. Nesse momento, despiu-se da armadura solar, da cota de malha
e pela primeira vez aparecia aos olhos de alguém como realmente era,
um ser de carne e osso, humano como os seres desse mundo.
Foi nesse estado que arrancou em gesto forte a vestimenta de seda que
envolvia a figura com quem compartilhava o leito. Ao tocar aquela pele
foi transpassado por um raio de energia de força incontestável. Pela
sua mente, passou-lhe as figuras dos que escravizara, pelo coração os
sentimentos de dor e martírio, a decadência, a destruição e tudo que
causara.
Tentou recuar, afastar-se, mas a figura agigantava-se, impedia de ir à
frente como de recuar. Tomou nas mãos o gládio mas a sua oponente riu.
- Não pode me matar com as minhas próprias armas! Renda-se! De joelhos
à minha frente!
- Jamais! – pronunciou à meia voz.
Mais uma vez a figura riu e abrindo os braços exclamou à plenos pulmões:
- Tolo! Como pode resistir aquele que já se entregou integralmente?
Seguiu em passos vacilantes até a saída da tenda, sempre de costas.
Nessa marcha, foi detido pela figura de pele alva e feições
inexpressivas. Entregou-lhe outro gládio e sutilmente empurrou-lhe de
volta à batalha que se desenhava.
- Como poderá um inútil e reles ser humano vencer o poder que sempre
se fortaleceu do sangue de muitos?
- Pela espada! – sussurrou a voz em sua mente e que o levou a
expressar-se livremente em um grito.
Torna-se absolutamente impossível descrever a batalha acontecida.
Alternaram-se os pendores da vitória, foi ferido tanto um quanto o
outro, feridas na carne frágil da condição humana mas que, mesmo nessa
condição precária conseguiu superar a força do gládio solar.
Um urro atestou a morte da figura recém caída e depois de tanta luta,
o combatente vitorioso perdeu os sentidos sendo que a última coisa que
viu foi a figura alva que dava-lhe o cuidado necessário.
A próxima coisa que sentiu foi uma sacudidela que levou:
- O senhor está bem?
Abrindo os olhos, viu-se novamente no gramado sob o sol. Fixando os
olhos, viu a figura de uma pele incrivelmente alva que sorriu para
ele.
- Sim, estou bem, acho que dormi, obrigado.
A moça despediu-se e seguiu em frente. Levantou-se e seguiu sua vida.