O Rei Caído – Capítulo I – Indignação

Hangsdon, Longness, 14º dia de Nosrredramy do ano de 635.

Era inverno, período no qual os sóis, principal representação de Leonar em Morgdan, brilham em menor intensidade. Neve cobre todo o continente, lagos se congelam, pessoas se aquecem em suas casas e os corações se apertam.

Galopando em um belo corcel negro pela praça central de Hangsdon, vazia e coberta de neve, um homem utilizando um manto de seda em tons azulados com detalhes em prata, com o rosto coberto, ia em direção ao Castelo Real. Atravessou os grandes portões que separam o castelo do restante da cidade ignorando os poucos guardas que vigiavam a entrada e tentavam não morrer congelados.

Adentrou o salão real e parou frente a Sir Lean Gorthnow, chefe da guarda, responsável pela segurança da família real. Trajava uma imponente armadura de aço polido com o escudo de Longness – a cabeça de um lobo estilizada e rodeada por ondas e folhas sob uma coroa real – em alto relevo no peito. Nas costas, carregava uma capa negra de seda, que indicava a sua alta hierarquia. Na cintura descansava uma espada grande e prateada, que brilhava sob a luz dos incontáveis candelabros do salão principal, assim como sua armadura. Não usava o elmo e mostrava o rosto com uma barba castanha muito bem aparada. Aparentava ter pouco mais de trinta anos. Ninguém tinha acesso o rei sem antes falar com ele.

— Tenho algo urgente para falar com Vossa Majestade, o Rei — o homem de manto de seda disse após baixar o capuz e mostrar-se uma figura conhecida do cavaleiro: um rosto pálido e fino, porém esbelto, cabelos negros e curtos e olhos também negros ressaltados por uma pintura escura que os delimitava, deixando-os levemente sombrios, mas de um brilho acolhedor.

— Sim, Lorde Thierk. Vou anunciá-lo ao Rei.

Enquanto o cavaleiro adentrava pelos corredores, o lorde sentou-se em uma das luxuosas e confortáveis poltronas que decoravam aquele imenso salão. Era o primeiro aposento do castelo e mostrava todo o luxo que a família real dispunha. Grandes quadros se espalhavam lado a lado pelas paredes com pinturas dos reis de Longness em momentos importantes de sua história. Não existia nenhum quadro, porém, de Thomas III, que anos atrás havia iniciado uma guerra por todo o continente e fora morto e deposto por Figho I, rei de Loivty. Éden, atual rei de Longness, retratado em diversos quadros, fora nomeado após esse episódio por ser o meio-irmão de Figho I e seu homem de maior confiança.

— Lorde Thierk, o Rei Éden te espera na sala do trono — anunciou o chefe da guarda.

O homem de manto de seda caminhou pelo longo corredor em direção à sala do trono. Parou frente a uma bela porta, com o mesmo símbolo da armadura do Sir Lean Gorthnow desenhado em alto relevo em ouro e prata: o escudo real de Longness. Abriu a porta e viu o rei sentado em seu trono. A sala era menor, mas ainda mais luxuosa que o salão principal. Os candelabros de cristal e ouro chamavam ainda mais atenção, assim como as tapeçarias e o enorme quadro na parede atrás do trono, que representava esplendidamente o casamento real do Rei Éden com sua atual esposa, a bela Rainha Keith, que não estava sentada naquele momento em seu trono, disposto ao lado do rei. A sua ausência era comum em reuniões de assuntos políticos.

— Aproxime-se, milorde — disse o rei. Vestia um camisão branco de seda e calças de veludo azul escuro. Sobre o camisão, uma grande capa de lã vermelha escorria pelo trono. Seu rosto ainda jovial, apesar de vários anos como rei não apresentava barba nem bigode e o cabelo, negro e repartido do lado, escorria até os ombros, presos por uma tiara na testa. Não usava sua coroa, que descansava solenemente ao lado do trono, linda, de ouro e cravejada de brilhantes.

— Sua majestade. — Fez a reverência curvando-se para o rei e continuou. — Trago notícias do seu irmão, o Rei Figho I, de Loivty.

— Ele aceitou os pedidos que fizemos? Diga-me! — perguntou o rei, com uma sincera curiosidade.

— Não, majestade. Ele disse que não estamos em guerra. Que não teríamos motivos para aumentar nossos exércitos. Que a prioridade é evitar que o povo de nossos reinos morram nesse terrível inverno.

— Maldição! — o rei deu um murro no apoio de braço de seu trono e levantou-se, mostrando sua impaciência.

— Senhor, se me permite, acredito que Sua Majestade mesmo deva ir visitá-lo e pedir pelos homens extras em nosso exército. Temo que Avalon, neste momento, esteja preparando seu exército para nos atacar pelo mar do norte assim que começar o degelo. — Fez uma pausa, como se tivesse pensando em uma coisa terrível. — Será que seu irmão tem medo deles? Será que ele teme entrar em uma guerra contra aquele reino vil ao seu lado, meu senhor?

— Você acha? — o rei estava pensativo, caminhando de um lado para o outro na sala do trono.

— Não sei, majestade. Estou apenas tentando entender os motivos de seu irmão.

— Aquele maldito! Abandonar seu irmão numa guerra contra aquele reino de orcs e elfos! Irei à Greenreef. Ele tem que ouvir algumas palavras! Não é porque possui o maior e mais poderoso reino de Morgdan que ele pode fazer o que quiser! — Éden estava visivelmente transtornado com essa possibilidade.

— Sim, senhor, sábia decisão. Tenho certeza que se Sua Majestade fosse o rei de Loivty nosso mundo estaria livre de aberrações como Avalon, onde orcs e elfos governam junto com humanos. Onde já se viu!? — o Lorde Thierk não conseguiu esconder um leve sorriso após proferir essas palavras. Mas o rei estava irritado demais para perceber esse seu pequeno deslize.

— Deixe-me. Preciso ajustar as coisas para a viagem — o rei fez sinal para que seu conselheiro deixasse a sala do trono. — Peça para que Sir Gorthnow prepare uma caravana para amanhã. Prepare-se você também. Partiremos ao amanhecer.

— Sim, majestade — o lorde saiu da sala fechando as portas. O chefe da guarda o estava aguardando alguns metros à frente no corredor.

— Amanhã?! — disse o cavaleiro, espantado, após receber a ordem do lorde. — Nessa tempestade?! Deve ser algo muito importante — ponderou Sir Gorthnow, o mais fiel cavaleiro de Longness.

— Não tenho dúvidas disso, cavaleiro!

Caminhou em direção à saída do castelo e pôs o capuz novamente antes de sair e encarar a tempestade de neve que assolava o continente há dias. Assim que as portas bateram atrás e pegou seu cavalo, emitiu um sorriso de satisfação. Seus olhos então mudaram de cor: do preto ao azul, do azul ao prata, do prata ao diamante.