O Rei Caído – Capítulo III – Massacre

Baía dos Deuses, próximo à costa de Avalon, 5º dia de Jhannay do ano de 635.

O mar estava revolto, como de costume, mas os mais de cem galeões, grandes navios à vela de quatro mastros, principal forma de transporte marítimo de Morgdan, navegavam com certa facilidade devido a seus cascos reforçados, à força de seus remos e à experiência de seus capitães. Ostentavam, no mastro central, cada um, uma grande bandeira real de Longness — a cabeça de um lobo estilizada e rodeada por ondas e folhas, sob uma coroa real — e carregavam, em seus interiores, um grande exército fortemente armado.

Todos os navios pertenciam à esquadra longnêsa, assim como seus habilidosos capitães, mas o numeroso exército que se amontoava em seus interiores ostentava, em sua maioria, o símbolo do exército real de Lovity — um imponente leão dourado. Todos sabiam que este era o mais poderoso exército de Morgdan.

Era isso que pensava Knornkh, um orc de pele verde escura, braços fortes e olhos bem amarelos, que vestia o uniforme da marinha de Avalon – uma armadura leve de couro sob um colete verde — e olhava em uma luneta no alto do mastro de um galeão que ostentava a bandeira de Avalon — uma pirâmide com um símbolo em cada ponta: uma folha de carvalho, um machado e uma balança. Ele olhou para o seu capitão, Adamastor Guile, um humano com pele queimada de sol, uma espessa barba castanha e chapéu de capitão, e disse com entonação alarmante na voz:

— Capitão, são centenas de navios de Longness! Cada um abarrotado de homens do exército loivtyano!

— Os rumores estavam certos. Loivty e Longness se uniram contra nós! – amaldiçoou sua sorte, o capitão.

Acariciou sua barba, analisou a situação calamitante por alguns segundos e, olhando para o seu imediato, que estava ao seu lado, ordenou:

— Mande uma mensagem para a capital! Precisamos de reforços. Temos apenas uma dúzia de navios para enfrentar uma centena. Tentaremos resistir o máximo que pudermos.

— Capitão, não é melhor recuarmos e esperá-los no porto? — perguntou o imediato, um elfo com pele clara e longos cabelos dourados, porém desgrenhados com o balanço do vento.

O capitão olhou para os três sóis de Morgdan, que estavam prestes a mergulhar no mar, no horizonte. O menor, de cor alaranjada, se destacava à essa hora e fazia com que os céus, com poucas nuvens, banhassem-se em cor laranja, formando uma bela paisagem.

— Creio que nos ataquem somente ao amanhecer de amanhã. Está entardecendo e não é usual iniciar um combate marítimo à essa hora.

Entretanto, após concluir essa frase, um alto e forte zumbido fez presente, seguido de um intenso som de destruição. O capitão, o imediato e toda a tripulação do navio olharam para a origem do som e viram um dos navios da frota em chamas. A tripulação se jogava ao mar, ainda muito frio devido ao recente degelo ocorrido ao final do rigoroso inverno.

— Knornkh, diga-me, de onde veio esse ataque! — perguntou o capitão aos berros para o orc no topo do mastro.

O orc olhou em sua luneta e viu aquilo que seus olhos amarelos nunca haviam visto em todos esses anos de serviço na marinha de Avalon: cinco navios de guerra enormes, cada um com três vezes o tamanho do maior navio da esquadra avalonesa. Os cinco estavam enfileirados virados de lado e cada um possuía duas fileiras com cinco aberturas cada. Dentro de cada abertura, destacavam-se enormes balestras, esculpidas como dragões de chumbo cuspindo enormes flechas incandescentes em direção a frota de Avalon. O povo de Longness chamava esses navios de Kraken. Eram, sem dúvidas, impressionantes máquinas marítimas de destruição!

Ele não teve tempo de avisar ao capitão o que tinha visto. Antes que tivesse qualquer reação, a primeira flecha de fogo atingiu o mastro central do navio, derrubando o orc no mar. Em seguida, a segunda acertou o convés e a terceira a proa. O fogo e o caos se instaurou por toda a embarcação, feita de madeira e frágil às chamas daquela magnitude. Os marinheiros jogavam-se ao mar para tentarem salvar suas vidas e o capitão tentava bradar ordens, que não conseguiam ser ouvidas com todo aquele barulho.

Após perceber que o seu navio não tinha salvação, pouco após o cessar da chuva de flechas de fogo, o capitão olhou ao seu redor e viu que não era o único a afundar. Toda a esquadra estava destruída em poucos minutos de batalha. Não houve tempo de preparar uma resposta nem enviar a mensagem para a capital: o imediato havia sido arremessado ao mar após o impacto da terceira flecha. Aquilo não havia sido uma batalha náutica como ele fora treinado em toda sua vida. Aquilo era um massacre!

Adasmastor agarrou-se ao timão e, como bom capitão, esperava seu navio naufragar sem abandoná-lo. Aos poucos a grande embarcação de madeira ia afundando, os sóis se pondo no horizonte e a escuridão de Nosrredram tomando conta do continente. Diz-se, em Morgdan, que morrer à noite, sob os olhares do deus da morte, tornava sua pós-vida um tormento ainda maior. Quando já estava sob o mar, olhou para os navios em chamas acima a superfície clareando a noite escura, fechou os olhos e aguardou o deus da morte buscar sua alma.

Mas, ao invés disso, acordou num calabouço de madeira. Sabia que estava dentro de um navio, pois podia sentir o balanço do mar. Estava com suas roupas em trapos e preso por fortes correntes. Por que não havia sido largado para morrer afogado?

— Não, meu caro! Não ia deixá-lo morrer como os demais — disse uma voz que parecia ter lido sua mente. Usava uma capa azul sobre uma bela armadura de prata com o brasão real de Longness em auto-relevo no peito. Na cabeça, uma bela coroa de ouro e brilhantes: Éden, o rei de Longness em pessoa. Estava acompanhado de uma pequena comitiva, entre eles Sir Lean Gorthnow, seu guarda-costas oficial — Preciso mostrar para os regentes do seu reino o poder de Longness.

— O que você pretende fazer comigo? — perguntou o prisioneiro.

O rei de Longness e Lovity, que estava com fortes, negras e macabras olheiras, disse, com grande tranquilidade, para o espanto inclusive de Sir Gorthnow e toda a sua comitiva:

— Corte-o em três pedaços. Envie um para cada regente de Avalon. Sua cabeça, porém, eu quero empalhada e pendurada na parede da minha cabine para que eu lembre dessa importante data: o dia em que Longness iniciou o domínio do mundo!