O Rei Caído – Capítulo V – Reunião

Ponta Oeste das Montanhas de Aço, 25º dia de Morgdany do ano de 635.

Depois de dias avistando a enorme cordilheira que chamam Montanhas de Aço, finalmente haviam chegado ao sopé. Neste ponto, um enorme paredão de rocha com cerca de trinta metros de altura se estendia na frente da comitiva. Acima do paredão, os enormes picos das montanhas alcançavam as nuvens, algumas atravessavam-nas e eram pintadas de branco no topo.

Sobre seu belo garanhão castanho, vestido com uma armadura de cota de malha de aço sob um colete verde-folha com o símbolo real de Stormgard bordado – uma espada de ouro cruzando uma coroa real, e ostentando uma bela coroa de ouro e safiras na cabeça, esta coberta de fartos cabelos negros, como sua barba muito bem feita, porém com manchas grisalhas nas costeletas, o Rei Omar Glorm observou o paredão com admiração. As montanhas iam de um horizonte a outro. Desde criança ouvia as histórias sobre os anões da montanha, os maiores mineiros, ferreiros e joalheiros de Morgdan. Finalmente iria conhecê-los pessoalmente. Só não entendia o motivo da convocação.

Deixara Glorman, então capital de Stormgard, há vários dias com sua pequena comitiva e teve que circular pelo lado ocidental do Lago de Vidro para fugir de Loivty e da guerra. Recebeu, enviado em um belo pombo-correio branco, ave em que são enviadas mensagens de paz, um convite para uma “reunião entre reis” no interior das montanhas. Acreditava que o convite havia sido feito pelos anões, embora fosse de conhecimento de todos que os pequenos eram aliados de Loivty desde o início da Era dos Reis e o convite dizia expressamente para evitar o território loivtyano.

Margearam o paredão por mais algumas horas em busca do Portão d’Oeste, uma das conhecidas entradas para o reino subterrâneo de Stonegate. Quando o avistaram sabiam que o tinham encontrado. O Portão era maior que o maior portão de castelo que tinham visto. Toda sua comitiva, com cerca de cem pessoas montadas a cavalo, ficou pequena avistando a magistral estrutura, como insetos observando portões humanos. Além de grande, o portão possuía belas runas espalhadas por toda sua extensão e desenhos de batalhas entre anões, orcs, dragões e deuses.

Quando começou a se preocupar em como fazer para abrir o portão, já que não havia guarita, começou a ouvir um ensurdecedor som de rocha arrastando pelo chão e, mais longe, o som de grandes engrenagens de ferro se movendo. Os portões, então, começaram lentamente a abrir-se, exibindo, dentro das montanhas, um enorme salão escavado na rocha, sustentado por enormes colunas de pedra distribuídas uniformemente. Logo na entrada, um pequeno grupo de anões, baixos, porém muito largos, com belas armaduras completas de aço e todos usando elmos que cobriam a cabeça, mas exibiam seus rostos, cobertos com espessas e cumpridas barbas, algumas decoradas com anéis e outras com tranças. Na frente do grupo, um anão com barba grisalha se destacava montando um carneiro-das-montanhas tão naturalmente como um humano monta um cavalo. Também usava armadura completa, mas era mais bem trabalhada e ostentava diversas pedras preciosas e sua cabeça, ao invés do elmo, apoiava uma bela e brilhante coroa toda esculpida com pedras preciosas. Talvez a mais bela e rica peça já feita por um joalheiro.

— Rei Kwashiokor! Que honra ser recebido pessoalmente por vossa majestade! — disse, sinceramente, o Rei de Stormgard. O rei anão reinava por várias gerações antes dele. Devia possuir uns trezentos anos, mas ainda aparentava ser saudável e forte com um garoto. Uma lenda viva.

— Recebi notícias que estava a caminho, Rei Glorm de Stormgard. Decidi vir pessoalmente recebê-lo como ao Príncipe Ortark de Avalon — respondeu o rei anão indicando com a mão a imponente figura que estava montado em um belo corcel negro a alguns metros adentro, todo coberto por um manto cinza escuro, quase escondido nas sombras do enorme salão. — Não é todo dia que recebemos tantas visitas ilustres ao mesmo tempo.

— Atendi sua convocação, Rei Anão. — Omar afirmou enquanto fazia seu cavalo entrar nos enormes aposentos. Só conseguia enxergar aquilo que as luzes exteriores iluminavam. Não viu nenhuma tocha ou lampião. Quando os portões se fechassem, estariam na mais completa escuridão. Os anões, ao contrário dos humanos, enxergam no escuro.

— O Príncipe Ortark disse o mesmo para mim, mas eu posso afirmar pelo fogo que arde nas forjas de meu reino que nenhum pássaro saiu de Stonegate com convites para esta reunião. — O anão falava no idioma comum de Morgdan com um forte sotaque. Os anões tinham seu próprio idioma e a maioria pouco sabia do idioma comum.

— Meus cumprimentos, Príncipe Ortark — disse o rei Ormar se aproximando um pouco mais da figura de manto escuro.

— Saudações, majestade — respondeu o príncipe, aproximando-se da luz. Seu rosto era fino e possuía olhos amendoados e orelhas pontudas como os elfos, mas sua pele era cinza-esverdeada e seus caninos inferiores eram proeminentes como os orcs. Era magro e possuía um corpo esbelto, mas tinha mais de dois metros de altura e ombros muito largos. Omar conhecia a lenda que o envolvia. Filho de um rei orc e uma rainha elfa, herdou o melhor de cada raça. Avalon possuía um rei humano, uma rainha elfa e um rei orc, mas todos se ajoelhavam para o Príncipe Ortark, o único que conseguiu trazer paz para um reino com raças tão distintas e opostas. Vestia um manto simples sobre uma armadura de batalha e não usava nenhuma coroa.

— Não sei quem nos convocou, mas creio que precisamos conversar sobre a guerra. — Aproximou-se ainda mais dos outros dois monarcas. Sua voz era grave e cavernosa.

— Minha terra está em chamas, meu povo sangra e tem medo. O exército de Loivty e Longness domina boa parte de meu reino e pretende em breve marchar para Midland. Temo não conseguir impedí-lo.

— Sim, majestade. Stormgard ainda não foi alvo dos ataques de Loivty e Longness, mas somos um reino que vive do comércio. A guerra não é boa para nós. As estradas estão fechadas e não conseguimos mais vender para o leste — respondeu o rei Omar.

— Eu falo de vidas perdidas e você vem-me falar sobre ouro! — o príncipe gritou, irritado.

— Não suba o tom comigo, aberração! — o rei de Stormgard não estava acostumado a ser tratado daquela forma. — Não atravessei meio mundo para chegar aqui e ser distratado pelo filho de um orc!

O sangue do príncipe de Avalon ferveu e ele sacou sua espada larga, que, de tão grande, estava embainhada em suas costas. Imediatamente, dez guardas que estavam atrás do rei de Stormgard também desembainharam suas espadas e cerca de vinte arqueiros retesaram seus arcos.

— Senhores, acalmem-se! — berrou o rei Kwashiokor. — Embainhem imediatamente suas armas! Estão em meu território e não permitirei derramamento de sangue. Muito menos de sangue real.

— Perdoe-me, majestade. — O príncipe meio-orc, meio-elfo abaixou a cabeça em respeito e embainhou novamente sua espada em suas largas costas.

— Vejo que perdi meu tempo vindo até aqui. — O rei Omar Glorm, ainda irritado, virou o cavalo e sua comitiva o acompanhou. — Não ficarei nem mais um minuto. Creio que alguém nos pregou uma peça nos trazendo aqui.

Quando estava próximo a sair novamente pelos portões, avistou no horizonte um cavaleiro com armadura dourada montando um belo corcel branco galopando rapidamente em sua direção. Quando o cavaleiro dourado chegou à distância de uma conversa, parou, retirou o elmo, exibindo cabelo e barba ruivas como o fogo.

— Vossa majestade, o Rei Omar Glorm de Stormgard — fez uma reverência. — Que bom que atendeu o meu convite.

Algumas horas mais tarde, estavam os três reis e o cavaleiro dourado numa enorme sala com uma mesa de pedra circular no centro. Um mapa estava aberto com algumas peças apoiadas sobre ele, representando os exércitos. Quatro tochas, apoiadas em volta da mesa, iluminam o mapa lançando algumas sobras escuras sobre o desenho.

— A única forma de acabar com a guerra é unindo Stormgard, Avalon e Stonegate contra Loivty e Longness — disse o cavaleiro dourado.

— Sir Jonathan Marath, nós anões não temos o costume de interferir em guerras humanas. — O rei anão estava de pé sobre uma pesada cadeira de madeira, devido sua baixa estatura, para olhar com mais clareza o mapa sobre a mesa. Sua enorme barba grisalha, enfeitada com belos anéis de ouro e pedras preciosas, cobria parte do mapa.

— A glória de batalhas de Stormgard morreu há gerações, Sir. Hoje somos uma nação pacífica e comercial — argumentou o rei Omar Glorm.

— A guerra afetará a todos! — retrucou o cavaleiro. — Avalon, Trenet e Griffion sofrem com batalhas em seu território, mas logo Loivty atacará Stormgard. — Olhou para o rei com olhos acusadores. — Acha que estará livre para sempre? — O rei de Stormgard abaixou os olhos envergonhado.

— Qual o seu plano, cavaleiro? — perguntou o Príncipe de Avalon, que estava em silêncio até então.

— Stormgard deve parar de vender suprimentos para Loivty e Longness e Stonegate de vender minérios, armas e armaduras…

— Nunca farei isso! — o rei anão o interrompeu. — Há anos mantenho relações comerciais com Loivty. Não será agora que vou interrompê-la.

— Conhecia o rei Figho I, majestade? — o cavaleiro perguntou.

— Sim, ele veio aqui pessoalmente pedir-me para não negociar mais com Longness na última guerra.

— Vossa majestade sabe que ele foi assassinado pelo próprio irmão?

— Que eu saiba, ele morreu de doença.

— Veneno! — o cavaleiro falou mais alto que esperava. — Seu irmão Éden o envenenou e apoderou-se do trono! — O silêncio dos reis refletindo sobre aquela informação durou alguns longos minutos.

— Essa acusação é grave, Sir — o anão disse, mas havia dúvida em sua voz. — As notícias que adentraram as montanhas diziam que Figho I nomeou, no seu leito de morte, o seu irmão como regente de Loivty até seu filho completar a maioridade.

— Sou um cavaleiro juramentado ao Grande Dragão Dourado e ao Deus da Justiça. Acredita mesmo que faria acusações tão graves se não tivessem fundamento? Não te parece estranho que Éden estivesse em Loivty no dia da morte do rei e tenha iniciado uma guerra sem ao menos respeitar o luto pelo irmão? — E, então, abaixou novamente seu tom de voz. — Pela amizade que tinha pelo rei Figho I, precisamos tirar seu assassino de seu trono.

O rei anão deixou seu corpo cair em sua cadeira e ficou pensativo.

— Está certo! Éden não irá mais receber aço de minhas montanhas! — Ficou em pé novamente e apontou para o mapa, no local repleto de miniaturas representando o exército de Loivty, derrubando algumas com seus largos dedos. — E digo mais, cavaleiro: marcharei com meu exército pela superfície, pela primeira vez desde que assumi o trono de meu pai. Irei até Greenreef e tirarei, eu mesmo, o maldito rei assassino de seu trono.

O cavaleiro dourado e o Príncipe de Avalon sorriram. Aquilo era realmente uma grande novidade. Os anões não lutavam fora das Montanhas desde que se mudaram para o seu reino subterrâneo após o fim da Grande Guerra dos Deuses, mais de seiscentos anos atrás.

— Príncipe Ortark, com isso, as tropas inimigas terão que reforçar suas defesas e reduzir seu número nos territórios ocupados. — Sir Jonathan apontou para o local que representava Avalon no mapa. — Defenda sua terra e recupere seu território. Mande alguns diplomatas para negociar com Trenet e Griffion. Alie-se a eles e empurre as forças inimigas no leste para Longness. — Moveu algumas peças que representavam o exército inimigo para o local que marcava a capital de Longness, o reino de origem de Éden.

— Farei isso — o Príncipe Ortark disse. Olhou, então, para o rei Omar Glorm que estava silencioso. Haviam perdoado um ao outro pela confusão da chegada, mas ainda se tratavam com desconfiança. — Vossa majestade, o que Stormgard fará? — perguntou, ficando de pé, com seus mais de dois metros de altura.

— Fecharei as estradas para Loivty e impedirei os alimentos de chegarem a Longness pelo mar de Donnwulf. E enviarei meu exército para sitiar Greenreef — disse ainda sem sorrir. — Mas tenho um preço.

— E qual é o preço do Reino do Comércio? — o príncipe meio-elfo, meio-orc perguntou com sua voz grave e uma expressão séria. Não gostava daquela barganha, mas precisava de aliados.

— Eu quero Greenreef — respondeu, entrelaçando as mãos e apoiando o queixo sobre elas.

Os demais reis se entreolharam. Era comum, ao final de uma guerra, os territórios serem revistos, diminuindo o tamanho do reino perdedor. Mas tirar-lhe a capital não era uma prática comum.

— Se entrar na aliança, a terá — respondeu, por fim, o Príncipe.

— Então temos uma aliança. — O rei humano finalmente sorriu e levantou-se.

— A Tríade de Aço! — O rei anão batizou a nova aliança, erguendo o punho direito para frente.

— A Tríade de Aço! — Os demais monarca responderam, cruzando seus punhos com o do anão.

— E você, cavaleiro, o que irá fazer? — perguntou o rei Omar observando o cavaleiro dourado, em pé ao lado deles.

Sir Jonathan olhou paras os três reis que ali estavam. O destino do mundo estava sendo decidido naquela sala. Não foi fácil, mas tinha sido melhor que o previsto. Precisou usar a diplomacia e a reputação de sua Ordem para impedir o domínio do mundo pelas forças das trevas. Mas era um cavaleiro, um guerreiro. Sacou sua bela espada dourada e disse:

— Fazer o que se espera de um Cavaleiro do Dragão Dourado. — Apontou-a para o mapa, justo no local onde estava Greenreef, a capital de Loivty. — Farei justiça!