Coração

Tudo era preto. Não havia luz, nem lua, nem estrela. Era escuro como se nunca houvesse havido luz. Escuridão pura; onipresente. Todas as luzes se desfizeram, se apagaram sem nenhum motivo aparente. A cidade mergulhou inteiramente em um bosque de formas negras de onde ela nunca pôde sair por completo. Alguns experimentavam pela primeira vez o sabor e o toque da inexistência. Ela não tinha o mesmo gosto que a morte, embora compartilhassem algumas semelhanças. Ela era diferente, mais suculenta e artificial. Fluida como a água e inquieta, incerta, escorregadia.

Marina sabia, pelo menos pensava que sabia, o que estava acontecendo. Levou seus pais até o porão e despediu-se deles com um beijo.

- Vou ver o que aconteceu – ela abraçou o pescoço dos dois. – Voltarei logo. Fiquem aí, não saiam de forma alguma.

Ela subiu as escadas, antes de fechar a porta olhou mais uma vez para trás. Preto, ela não viu mais nada. Tateando os armários da cozinha, ela encontrou a porta dos fundos. Depois de viver dezoitos anos naquela casa, era fácil encontrar o caminho no escuro. Lá fora o breu era mais ameno. Mas, o que significa dizer isso? Estava escuro, completamente escuro. Entretanto, era possível enxergar através dele. Marina distinguia as sombras das coisas, apenas seus contornos. Talvez, somente ela pudesse percebê-las e isso lhe foi muito útil.

Ela prosseguiu pelo jardim, andando entre as silhuetas difusas. “A grama, as folhagens, as flores”, ela unia as sombras às suas lembranças. O céu pesava sobre suas costas e não era macio como parecia quando visto lá de baixo, era espinhento e quente. Parecia um monstro que investia contra a terra, tentava esmagar tudo que estivesse sob ele. Cada passo exigia um esforço tremendo, manter-se de pé era quase impossível. O suor começava a escorrer por sua testa, segurou-se no carvalho que ficava no fundo do jardim antes do céu lhe jogar no chão. Respirou fundo tentando reunir forças. Quando estava pronta para continuar, viu uma redoma de luz amarela se aproximar. Era Franz. Ele andava cautelosamente pela calçada, com o semblante preocupado.

- Marina! – ele gritou ao vê-la.

- Estou aqui, Franz – ela gritou de volta e balançou os braços, sinalizando.

Ele foi correndo até lá. Trazia uma vela nas mãos e a luz que vinha dela empurrava o escuro para longe.

- Entre logo, vai ficar aí fora? – ele estendeu a mão para ela.

Ela saltou para dentro da luz. A escuridão e o peso do céu não podiam entrar, eles estavam seguros sob a proteção da vela. Além disso, de lá eles podiam enxergar melhor o que ameaçava a cidade. Era um feitiço. Os rastros de magia ainda estavam por toda parte.

- O que faremos?

- Temos que impedi-lo! – Marina respondeu imediatamente. Mesmo cansada, a típica força de seus olhos permaneceu lá, inabalável.

- Como faremos isso?

- Lutando – ela desviou o olhar na direção do núcleo do feitiço, provavelmente o feiticeiro que o formulou estava lá. – Você me leva até lá?

- Sim, sim, claro – ao contrário dela, Franz estava nervoso e com um pouco de medo.

Eles se aproximaram da fonte de tanto preto. De longe, viram duas pessoas. Uma mulher alta de cabelo muito longo e negro e um homem magro e velho. Marina e Franz se esconderam atrás de um poste. As sombras rastejavam, como lagartos gigantes em busca de comida. Saíam ainda pequenas de um buraco no céu e se alargavam, cresciam, até escurecer tudo à sua volta. A luz da vela era a única que se mantinha firme e não era corrompida pela onda de escuro do feitiço. Os lagartos do escuro ficavam a espreita, ao mínimo bruxulear da chama eles invadiriam o escudo de luz da vela.

- Quem são aquelas pessoas? – Franz perguntou.

- Não sei exatamente – ela olhou a sua volta. - Sei apenas que precisamos pará-los – ela fechou os olhos. – Eu preciso.

Ela saiu da redoma de luz e correu na direção das duas pessoas. Franz ficou boquiaberto, sem saber o que fazer. O céu avançou bruscamente sobre ela e bateu com violência em suas costas. A força em seus olhos aumentou e um brilho mágico envolveu suas mãos, como pequenas migalhas de sonho que saltaram para a realidade apenas para ajudá-la. Marina ergueu uma das mãos e tocou o céu com seu brilho, o monstro se desfez e voltou para longe, para o alto. Aliviada, voltou a correr.

- O que querem aqui? – ela gritou.

A escuridão esvoaçava seus cabelos e sua roupa, rodopiava ao seu redor, pronta para lhe atacar. O preto tornou-se vento escuro sob o céu que começava a retomar seu azul. O homem se adiantou, sério e sem qualquer expressão no rosto. Empunhava uma espada longa e de lâmina verde.

- Queremos um coração forte o bastante – ele disse, sua voz era robótica e rude. Seus olhos não se moviam. Vidrados, parte do próprio escuro.

- Vão embora! – Marina gritou.

Os pequenos cristais de brilho soltaram-se de suas mãos e se misturaram ao vento. Quando aquelas palavras também se juntaram a ele, um enorme jato de ar tentou empurrar o homem para trás, como se obedecesse a ordem dada por ela. A poeira se agitou e as pedras menores do calçamento foram jogadas para o alto. Fiapos de pó ondulavam no ar, formando arcos que contrariavam a força do vento que soprava constantemente para o sul.

A mulher continuava imóvel, apenas observando. Vestia um casaco comprido e marrom que lhe cobria as pernas até os sapatos metálicos. Usava uma tiara de fios prateados e um pequeno cordão com uma jóia vermelha no pescoço. Tinha a postura de uma rainha, a pele parecia cristalizada, tamanha sua brancura. Sua aparência transmitia imponência e até mesmo o mundo, o vento e a terra eram cautelosos ao se aproximar dela.

O homem protegeu os olhos da poeira e firmou os pés no chão para não ser levado pela ventania. Enraivecido, mirou a garota e saltou na direção dela. Seus passos eram pesados e provocavam rachaduras na rua. Marina percebeu o ataque e se esquivou da espadada que fez um buraco no chão. Antes de levantar a arma, Eparion olhou para ela com ódio. Em resposta, Marina apontou uma das mãos para o meio dos olhos dele e ergueu a outra o mais alto que pôde. Seus olhos estavam fechados e seus lábios moviam-se rapidamente, pronunciando palavras que ela buscou no fundo de sua memória e pela primeira vez as dizia. Do meio do céu ainda arroxeado, surgiu um imenso braço de metal e pedra, produzido pelas fitas de magia tecidas pelas palavras ditas pelo coração da jovem feiticeira. Ele cruzou a distância que o separava da terra e caiu certeiro sobre Eparion. Marina correu para longe e se escondeu.

O espadachim era habilidoso e escapou do ataque destruidor do braço do céu. Mas, quando pensou que estava a salvo, outro braço desceu sobre ele. Eparion saltou sobre a mão de mármore e correu ao redor do braço, indo de encontro ao céu. Era rápido e esperto. Quando estava no cotovelo, desembainhou a espada e decepou o braço gigante com um único golpe circular e um cintilar verde. O céu urrou de dor e a face do monstro apareceu. O rosto de um leão cinzento com olhos de homem e dentes de granito. A fera tentou abocanhá-lo enquanto caía junto com o braço decepado, mas não conseguiu. Já no chão, Eparion agarrou uma das presas do monstro e puxou sua cabeça para baixo. Mirou a espada em um de seus olhos e atacou. A lâmina entrou até o cabo e com uma explosão de areia pálida, o monstro desapareceu.

Marina ouviu Eparion gritando, ele estava formulando outro feitiço. Ela olhou, não pôde ver, o escuro se adensou. Saiu de seu esconderijo, algo ruim estava para acontecer. Marina não enxergava nada, mas sabia para onde devia ir. Entrou no núcleo do feitiço às cegas. Eparion guiava centenas de fitas mágicas com a espada e uma explosão as espalhou, cada uma em uma direção. As fitas procuravam os habitantes da cidade, como cobras sanguinárias e famintas perseguindo suas presas. Elas serpentaram pelo céu e desapareceram. Marina ficou paralisada, sentiu cada uma das vidas se apagando e tomando parte no preto. Sua força desapareceu, ela caiu no chão, semi-inconsciente. Algumas fitas voltaram-se para ela. Eparion lhe apontava a espada, incitando as fitas a atacarem. Antes que elas pudessem se aproximar, uma luz as repeliu. Era Franz, ele salvara sua vida. As fitas investiram contra a proteção da vela, mas não puderam entrar. Marina delirava e tremia.

- Já chega! – a mulher interveio rispidamente.

Eparion olhou para trás. Miluda se aproximou lentamente. Foi até a cúpula da vela e abriu um buraco apenas com o toque de seus dedos. Agachou-se e pegou Marina nos braços.

- Ela é o coração que eu quero.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 27/05/2007
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