A Fé Trespassada - Parte I

Um conto de fantasia sobre os elfos do mundo de RPG Tormenta, mas serve para quem curte qualquer história de fantasia.

A Fé Trespassada

A pedra era do tamanho de uma carroça e voou pelos ares com a facilidade de um pássaro. Sua sombra passou pelas cabeças dos elfos e os fez olhar estupefatos ou agacharem-se amedrontados como se um dragão sobrevoasse o pequeno forte. Quando parou de subir e iniciou a descida, completou o arco sobre um dos celeiros. A construção explodiu, lançando pedaços de pedra, madeira e palha por toda parte. A poeira subiu sufocando os elfos que gritavam desesperados e encolhiam-se de medo. Quando o ar clareou novamente, os corpos espalhados no chão fizeram o choro superar até mesmo o sufocamento.

Elfos ajoelhavam-se diante de seus parentes mortos. Soldados corriam para ajudar os civis. Eram liderados pelos magníficos Espadas de Glórienn, os únicos filhos da Deusa Mãe que ainda não demonstravam o temor de sucumbir à barbárie dos goblinóides.

Eleandil observava os sobreviventes rezarem. Passou a mão no rosto sujo de fuligem e machucou-se ainda mais, prendendo a manopla em um corte. Praguejou e olhou para o lado para dar uma ordem a um dos soldados. Encontrou-o caído com um estilhaço de pedra enfiado na cabeça. O elmo estava destruído e o sangue se espalhara pela terra juntamente com alguns pedaços de ossos e um dos olhos.

Um Espada de Glórienn se aproximou de Eleandil ofegante. Limpou o rosto com a mão e olhou para a devastação entre os muros da pequena fortaleza.

- Eles estão preparando mais um tiro senhor. Não resistiremos por muito tempo, erfel – disse.

O título de erfel ressoou pela mente do elfo por alguns segundos. Não se acostumara ainda, mas desde que o líder do pequeno destacamento fora morto, não restara ninguém com graduação maior do que Eleandil.

- Precisamos sair daqui. Já contaram os mortos desse ataque? – perguntou.

- Quatro, erfel.

Eleandil começou a caminhar. Amaldiçoava a teimosia de sua raça. A capital imperial caíra há pouco mais de um mês e a maioria dos elfos recusava-se a acreditar. Aqueles que aceitavam a notícia, ainda preferiam morrer em suas terras a entregá-las à barbárie. Desde a queda, os goblinóides marchavam pelo reino batendo em tambores novos feitos com pele de elfos. Apenas os territórios ao norte ainda tinha sobreviventes que resistiam, mas Eleandil sabia que não durariam muito.

Passou por uma criança caída. Chorava sobre o corpo da mãe sem se importar com o sangue que escorria da própria cabeça. O guerreiro a seu lado abaixou-se e tocou a cabeça do menino. Rezou para a deusa pedindo a cura. Eleandil continuou caminhando.

- Reúna os Espadas de Glórienn. Quero todos aqui.

Olhou de volta quando não recebeu resposta. Havia um clérigo ao lado do Espada de Glórienn, ajudando a curar a criança. O soldado levantou-se e alcançou o erfel.

- O que aconteceu?- perguntou Eleandil quando o subordinado parou diante dele calado, apenas esperando ordens.

- Esqueci-me que havia esgotado minhas magias de cura hoje – disse o elfo.

O antigo erfel não precisava pedir respostas. Elas surgiam sem ordens ou perguntas. Olhou para o Espada de Glórienn e torceu para que ele não estivesse mentindo.

- Cite o terceiro lema – ordenou.

- A verdade está nas palavras desse servo da Deusa Mãe assim como graça divina abençoa meu sangue através da minha fé.

- Acredite nele. Não posso perder nenhum guerreiro.

O elfo baixou a cabeça, com certeza lembrando-se da caminhada até ali. Dois dos Espadas de Glórienn haviam cometido o crime maior da elite guerreira dos elfos. Um deles ajoelhou-se na terra e pediu para morrer, pois não tinha mais esperança na guerra. O comandante lhe cortou a cabeça ali mesmo. O segundo chorou diante dos corpos daqueles que haviam falecido durante a caminhada e gritou que Ragnar cegara Glórienn para as atrocidades cometidas contra seus filhos. O comandante lhe entregou a adaga da purificação ali mesmo e ele a enfiou no coração para retirar a blasfêmia do seu sangue e a vergonha perante sua família.

Esse último fora irmão de Eleandil, o único que restara para se envergonhar pelo pecado do Espada de Glórienn caído. Naquela mesma noite, o guerreiro foi até seu comandante e o viu morrer quando uma pedra atravessou a janela e destruiu uma das torres. O novo erfel só sobreviveu por causa dos milagres de cura dos Espadas de Glórienn e dos clérigos.

- Aproveite para dizer que nenhum Espada deve usar suas curas nos civis. Guarde-as para os guerreiros. Passe a ordem para que os clérigos sempre reservem uma cura para os soldados. Os civis devem receber apenas os cuidados mundanos. Vamos reservar a benção da deusa para aqueles que podem salvar as vidas do nosso povo.

O soldado concordou e foi dar as ordens, enquanto Eleandil subia as escadas do muro. Parou ao lado de dois arqueiros e olhou para o acampamento globinóide. Estavam preparando mais uma pedra naquelas gigantescas catapultas. O elfo não podia acreditar naquelas duas máquinas. Antes se espantava com a sujeira e a barbárie das raças inferiores. Agora mais de cem inimigos acampados não eram nada diante das máquinas de guerra que traziam. Via corpos espalhados, sinais obscenos e ouvia gritos de vitória e as festas das criaturas, porém nada disso o afetava. Somente o ranger das cordas das máquinas alcançava seu coração.

- Tragam o corpo do meu irmão. Certifique-se que ainda está vestido com a armadura dos Espadas de Glórienn.

Um dos arqueiros desceu a murada. Eleandil olhou para a pequena fortaleza. Estava quase nas fronteiras do reino e ela deveria servir apenas como ponto de apoio para os fazendeiros. Agora era o último refúgio naquela região. Olhava para as montanhas adiante e tinha certeza de que já havia refugiados passando por elas. Que os humanos agora colaborassem com os filhos da Senhora da Graça Real. E que ele conseguisse retirar aqueles oitenta civis e quarenta guerreiros dali.

- Filhos de Ragnar! – gritou Eleandil. Seus cabelos dourados esvoaçaram quando o vento fedorento soprou pelo acampamento inimigo e tocou seu rosto. Manteve os olhos cinzentos sobre as criaturas que pararam para ouvi-lo. – Vocês querem nosso sangue? Terão o nosso sangue. Deixem-nos nos preparar para nos entregarmos a vocês. Seremos seus escravos. Como prova disso, daremos o corpo de um dos nossos comandantes a vocês.

O cadáver do irmão chegou. Foi sem pedir desculpas ou dar atenção aos olhares impressionados dos elfos a seu redor que ele ordenou que o corpo fosse jogado para os bárbaros. As criaturas esperaram, temendo uma armadilha, mas todos os arcos foram baixados quando Eleandil estendeu o braço e fez o sinal.

- Festejem perante esse corpo enquanto fazemos nossas orações – disse o erfel.