A Fé Trespassada - Parte III

Os braços dos elfos começavam a se cansar. As armaduras haviam duplicado de peso e o calor da batalha eliminava o que restava de suas forças. Eleandil enfiou a espada em um bugbear, jogando-o para cima dos inimigos que o cercavam e aumentando a área do círculo de proteção dos elfos.

- Não tenho mais flechas, erfel! – gritou um dos homens montados no meio do círculo.

- Chame por elas!

Ele chamou. Clamou pelas setas sagradas da deusa e levou a mão à aljava vazia. Flechas prateadas deveria aparecer em sua mão, mas seus dedos voltaram tão vazios quanto seu coração assustado. O medo nos olhos do arqueiro sagrado se espalhou pelos guerreiros como doença da alma que corrompia sua fé.

Eleandil procurou por luz em seu coração, mas a que o encontrou veio de fora, quando um relâmpago atravessou os globinóides deixando corpos queimados ou em convulsão enquanto o caminho dos elfos era aberto. Três guerreiros vestindo capas negras surgiram montados, matando com a mesma graça dos Espadas de Glórienn. Deram montaria a quem estava a pé e rumaram para os portões. Um quarto cavaleiro se juntou a eles e foi só quanto estavam dentro da fortaleza que o erfel notou os elfos que haviam o salvado. Eram guerreiros sisudos de cabelos e olhos negros, vestidos com armaduras cobertas por sangue. Algumas pareciam modificações dos armamentos dos Espadas de Glórienn.

- Que a deusa os abençoe por terem salvo servos fiéis dela – disse Eleandil.

Nenhum deles respondeu. Pareceram incomodados pelas palavras de agradecimentos. Um deles, um elfo mais velho cujos olhos negros tinham a sombra de pesadas decisões, deu um passo a frente. Era o único que não se vestia com roupas de guerreiro. O manto escuro e o bastão tornavam óbvia sua posição como mago.

- Vi sua atitude e considerei louvá-lo, erfel Eleandil – disse o arcano.

- Qual seu nome? – perguntou o elfo.

- Kessarel.

- Como sabe meu nome?

- Berforam disse-me que estaria aqui juntamente com o erfel Serran. Pude constatar pela sua posição que ele já está morto. Pode me confirmar a notícia?

- Sim.

- Nossa missão aqui acabou então.

Eleandil olhou estupefato para Kessarel. Atrás dele, os elfos cochicharam e alguns xingaram. Os Espadas de Glórienn exigiram silêncio.

- Não nos ajudarão a escapar?

Kessarel olhou para os elfos à frente.

- Vocês não querem escapar. Vocês querem ficar. Não posso ajudá-los a ficar, a não ser que peçam que eu passe uma adaga em suas gargantas e os enterre aqui.

Eleandil deu um passo a frente, cerrando o punho e levando-o ao rosto. Encostou a mão na boca para conter as palavras iradas.

- Kessarel, resistir aqui é provar que nosso povo ainda tem esperança.

- Não se vive por esperança.

- Mas não podemos roubar os sobreviventes dessa esperança.

- Não estou roubando nada de ninguém, mas quem me acompanha vive por fatos, seja pela aceitação dos passados e presentes ou pela construção dos novos.

- E você manda em alguma coisa? – perguntou um clérigo atrás de Eleandil.

- Não. Nosso líder é Berforam aqueles que vocês conhecem como o eriand dos Nitfahglorienn, comandante supremo dos Espadas de Glórienn. Ou melhor, era. Estava aqui para passar o posto para Serran. Era o comandante mais próximo que eu pretendia encontrar.

Os pensamentos de Eleandil pararam por um momento. Berforam fora de seu posto? Aquela notícia caiu sobre ele como uma avalanche, cada pedra atingindo sua alma de uma vez. A primeira foi um aviso de algo terrível. Se Serran estava morto, então ele receberia o cargo. Só na segunda o elfo entendeu que para receber um cargo desses Berforam deveria estar morto. Só se deixa de ser um Nitfahglorienn morrendo, seja pela própria espada ou pela dos inimigos.

- Berforam deixou a posição abençoada de Nitfahglorienn?

- Sim.

As mãos de todos os Espadas de Glórienn foram imediatamente às lâminas. Olharam para os elfos atrás de Kessariel.

- Vocês também são guerreiros sagrados?

Um deles, uma elfa com uma cicatriz no rosto, respondeu.

- Éramos.

- Não se diz “fui” na mesma frase em que se pronuncia “eu” e “Espada de Glórienn”.

- Agora se diz – disse a elfa.

- As coisas mudam, Eleandil.

As armas saíram das bainhas. Os clérigos prepararam os milagres de guerra que ainda tinham.

- Vocês ainda podem ter a honra de usarem suas adagas contra seus peitos.

Kessarel continuou falando como se as armas ensangüentadas não lhe dissessem respeito.

- Agora a elite que caçava desertores foi destruída. Um dos poucos que restava era Serran, um dos guardiões da fé.

- Você os matou e veio para passar o cargo a Serran?

- Só vim com a segunda intenção. Matei poucos deles. Foi Berforam quem assassinou a maioria dos caçadores da fé.

Eleandil parou para pensar. Era óbvio. Se Berforam deixou a fé, uma mensagem fora passada para a alma de todos os caçadores. Eles deveriam eleger um novo líder ou matar aquele que abandonou a benção. Mas quem entre os elfos conseguira vencer Berforam em combate direto?

- Sinto, mas vocês quatro morrerão hoje.

- Não morreremos. Já disse que passaria a adaga nas gargantas de todos vocês e ainda o faria, começando pelos clérigos. O que não farei será enterrar seus corpos. Todos os seguidores de Glórienn apodrecerão.

O susto nos rostos dos elfos foi maior do que o que viram em todos aqueles dias de guerra, quando os grupos de resistência eram eliminados continuamente e a vida no império se tornara puro terror. Flechas e espadas apontaram para as figuras de negro. Quando a primeira foi disparada, desviou-se por um círculo de vento que a fez voar por cima do muro. As outras encontraram o mesmo resultado.

Os soldados com espadas pararam o ataque quando Eleandil ergueu a mão e depois apontou a fina linha de fogo que circulava o quarteto.

- Vocês não escaparão daqui – disse o erfel.

- Eu usaria essa frase para vocês, mas odeio essas frases de efeito. Dizer o óbvio me cansa. Eleandil, você é o novo eriand. Cuide bem de sua posição.

- Diga a Berforam que eu sobreviverei e o caçarei!

- Ele não esperaria menos de você. Não espera menos de ninguém que tenha treinado. Só que também pede para que nenhum de vocês espere clemência por parte dele.

- Como ele pode ter abandonado a deusa que lhe deu filhos e o protegeu por tantas batalhas? Ele negará isso ago....

Kessarel balançou a cabeça e levantou a mão para interromper o novo eriand.

- Ele também pede para poupá-lo dessa pieguice toda de falar sobre as glórias e bênçãos do passado. Quero dizer... Ele não pede isso, mas eu ouvi tanto disso nos últimos dias que estou incluindo esse pedido. Melhor vocês saberem que as coisas mudam e pessoas inteligentes sabem quando precisam se contradizer.

Os Espadas de Glórienn ergueram seus arcos. Apontaram flechas de ponta prateada para Kessarel e seus guerreiros. Bastava a ordem de Eleandil para que disparassem. Kessarel sorriu e depois quase gargalhou.

- Desculpe o sorriso de vilão poderoso cheio de segredos. É um dos meus prediletos. Pretende realmente deixar que seus companheiros atirem, eriand?

- Sua magia não é capaz de deter nossos milagres de guerra. Você sabe do que a flecha de um Espada de Glórienn é capaz – disse Eleandil.

Kessarel fitou-o diretamente nos olhos.

- Eu posso lhe garantir que essas flechas não me atingiriam. E também lhe garanto que o dano delas será maior em suas almas do que em seus corpos se elas se voltarem contra vocês.

Os guerreiros sagrados olharam para Eleandil procurando resposta. O elfo, o único sem arco, pensou naquelas palavras. Olhou para a espada ensangüentada e lembrou-se das mortes dos companheiros de guerra. Nenhuma delas deveria ter ocorrido. Os milagres deveriam salvá-los. As dúvidas que lavaram a força de sua alma durante a batalha logo voltaram.

- Não atirem – ordenou.

Esperava que Kessarel sorrisse, mas ele olhou seriamente para Eleandil. O novo eriand então compreendeu a profundidade daquele teste.

- Os elfos se ajudarão e apoiarão nossa mãe, não importa o que aconteça – disse.

A verdade era que ele não sabia ao certo o que estava acontecendo, mas as mortes dos colegas, tombando quando os milagres deveriam mantê-los vivos lhe diziam que a Deusa Mãe não estava os alcançando como antes. Falha de fé ou falha divina? Deuses falham?

- Estamos do lado da nossa Mãe.

- Mãe... De fato... – disse Kessarel.

- Nós a ajudaremos a reerguer o império.

Agora o elfo de cabelos negros sorriu.

- Vou embora, Eleandil, mas deixe-me dizer-lhe uma coisa. Não se ajuda um deus, mesmo que você chame essa divindade de mãe ou de pai. Só existem três coisas que você pode fazer por um ser divino – disse, levantando a mão e começando a mostrar os dedos um a um. - Você morre por um deus. Você mata por um deus. Você ora por um deus. – Cerrou o punho. – Você não ajuda um deus. Olhe para esse muro. Pense no que você faz por ele? Conserta, dá vida ao interior, enfeita, mas não fica diante dele quando as pedras dos goblinóides são arremessadas.

Kessarel andou até perto dos outros três elfos de negro, enquanto tantos indivíduos atrás de Eleandil tentavam entender. Um clérigo mais próximo chorou. Outro se ajoelhou e misturou suas lágrimas à terra.

- Quando a noite chegar, os portões se abrirão. Escolham o que pretendem e lembrem-se que não haverá volta nessa escolha.

O quarteto desapareceu, transformando-se em sombras e desvanecendo sob a luz do sol.

Eleandil ajudou um dos clérigos a se levantar. O outro ainda molhava a terra com as lágrimas. Sujava o rosto com barro e perguntava ao solo e ao sangue derramado nele onde estava a verdade sobre tudo o que acreditara.